Local impróprio

Projeto de construção de termoelétrica em Cubatão, já aprovado pela Secretaria do Meio Ambiente, pode elevar em mais de 6 vezes a concentração de ozônio em baixa atmosfera, onde é altamente nocivo à flora e à saúde humana.
Por Maurício Monteiro Filho
 01/05/2001

 

Votação conturbada no Consema concedeu lincensa prévia à CCBS

Cidade que em 1981 chegou a ser conhecida como a mais poluída do mundo, Cubatão (SP) abriga uma das principais concentrações de mangues do país, além de grande parte do que sobrou da Mata Atlântica brasileira. É justamente nesse local que a Petrobras, em consórcio com a multinacional japonesa Marubeni Corporation, pretende construir uma usina termoelétrica, a Central de Cogeração da Baixada Santista (CCBS), um projeto orçado em US$ 650 milhões, financiado por uma parceria entre o Banco Mundial, o BNDES e um conglomerado de bancos japoneses.

A CCBS produzirá energia elétrica a partir da queima do gás natural proveniente do campo de Merluza, localizado na bacia de Santos e já interligado ao gasoduto Bolívia-Brasil. Dos 4 milhões de metros cúbicos por dia que serão consumidos pela usina, 2 milhões serão fornecidos por Merluza e os outros dois importados da Bolívia. O empreendimento utilizará o processo de cogeração, o qual, a partir de uma mesma fonte, no caso o gás natural, libera energia térmica e elétrica. A energia térmica será produzida em forma de vapor d’água e transmitida, à razão de 400 toneladas por hora, para a Refinaria Presidente Bernardes de Cubatão (RPBC), ao lado da qual ficará a CCBS. O projeto, dividido em duas fases, consiste na implantação de uma usina com potência final de geração de 950 MW, dos quais cerca de 90% serão vendidos e o restante destinado ao abastecimento da refinaria.

Esse projeto integra um conjunto de diretrizes do governo federal que pretende mudar a matriz energética brasileira, o Programa Prioritário de Termoeletricidade (PPT). Anunciado no início de 2000 pelo Ministério das Minas e Energia, o PPT busca uma transformação radical da política energética do Brasil, e a previsão é de que sejam implantadas, até 2003, 49 termoelétricas, distribuídas pelo território nacional. Desse total, 42 usinas serão movidas a gás natural, das quais 17 serão construídas no estado de São Paulo. Edson Satoshi, diretor do Departamento de Saúde, Meio Ambiente e Tecnologia do Sindicato dos Petroleiros de Santos, explica o contexto do programa: "O governo federal, nos últimos anos, deixou de investir na área de geração de energia. Na década de 80, o investimento médio anual girava em torno de US$ 12 bilhões. Durante a administração Fernando Collor, houve uma queda para US$ 7 bilhões, e agora, nestes dois governos de Fernando Henrique Cardoso, não se foi além de US$ 5 bilhões". O presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras, Fernando Siqueira, afirma que tal diminuição significa a perda da autonomia no setor de geração de energia, no qual o Brasil já chegou a ocupar posição de destaque em nível mundial. Para ele, essa política coloca o país numa situação de profunda dependência externa, tanto na geração quanto na distribuição de energia.

Equívoco geográfico

Diversos aspectos positivos podem ser enumerados quanto à substituição das usinas hidrelétricas por termoelétricas movidas a gás natural, mas é quase ingênuo da parte do governo federal, neste caso representado pela Petrobras, iniciar o projeto por uma região cujo histórico de agressões ambientais é tão vasto. A própria prefeitura de Cubatão, em seu site oficial na Internet, atribui à falta de planejamento a implantação de um pólo industrial de base naquela região. A serra do Mar, onde se encontra grande parte dos 5% remanescentes de Mata Atlântica no Brasil, forma um paredão ao lado da cidade, justamente no local onde as indústrias estão instaladas, e isso reduz em muito a taxa de dispersão dos poluentes. Desse modo, a concentração de gases acaba afetando intensamente não só o ecossistema da serra, como também a larga faixa de manguezais que existe do outro lado do município.

O consórcio Petrobras-Marubeni, por sua vez, através de intensa propaganda, tenta passar a idéia de que o "Vale da Morte", como é conhecida aquela região, está recuperado e já não sofre mais os efeitos da concentração industrial que o levaram a ser considerado o pior lugar do mundo em termos ambientais. Porém, segundo a opinião da maioria dos ambientalistas, num local saturado como Cubatão, qualquer fonte poluidora deve ser combatida com todos os recursos disponíveis. "Essa história de que a região está recuperada é uma farsa. A termoelétrica vai piorar o que já está ruim", declara, com indignação, Manoel Serpa, da Pastoral Operária de Cubatão.

Patrício Junqueira, o funcionário da Marubeni encarregado de prestar esclarecimentos sobre o projeto, afirma que a usina vai substituir quatro caldeiras que utilizam óleo como combustível, e que isso significa a redução de cerca de 7 toneladas de poluentes no ar por dia, o que vai representar "ganhos ambientais para a região". Mas não é o que dizem alguns especialistas.

Célio Bermann contesta os métodos empregados no EIA-Rima

A termoelétrica, apesar de reduzir a concentração de poluentes importantes, como o dióxido de enxofre, provocará um aumento significativo de outros gases nocivos no ar de Cubatão, especialmente de ozônio em baixa atmosfera. "Só isso já seria motivo para a condenação do empreendimento", aponta o professor Célio Bermann, do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP). A despeito de suas propriedades benéficas em grandes altitudes, o ozônio próximo ao solo, formado por reação fotoquímica, provoca severos danos ao sistema respiratório humano e é extremamente fitotóxico por seu poder desfolhante, responsável pelo chamado "efeito paliteiro". Além do ozônio, cujo aumento de potencial de formação chegará a 643% com a implantação total da CCBS, haverá a liberação de quase 2 toneladas de monóxido de carbono ao dia, elevando em 483% a concentração desse gás, só na primeira fase de operação da usina.

Inusitado é que essas informações constam do capítulo referente às emissões atmosféricas do EIA-Rima (estudo e relat&oacut
e;rio de impacto ambiental) elaborado pela Jaako Pöyry Engenharia Ltda., e a conclusão ao final do mesmo capítulo é de que a concentração de ozônio sofrerá "diminuição na formação do ozônio" (texto original do estudo). Além disso, puderam ser constatadas irregularidades na metodologia empregada na análise. Como indica o professor Célio Bermann, os dados numéricos foram estimados sobre casos muito específicos e não fornecem um panorama definido da situação de Cubatão após a implantação da CCBS. "O modelo utilizado não está claro", comenta Bermann. Como solução a esse problema, os empreendedores pregam o monitoramento da região após o início das operações da fase 1, para um cálculo mais exato do volume de emissões. Contudo, trata-se de uma alternativa inaceitável, pois é muito difícil reverter um processo já deflagrado de poluição ambiental, ainda mais sobre uma área saturada, onde o efeito negativo dos gases tóxicos é cumulativo. "Qual a probabilidade de que se possa reverter um processo de câncer?", reforça Carlos Bocuhy, do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema).

Carlos Bocuhy: "faltou tempo para uma avaliação mais precisa do EIA-Rima"

Cartas marcadas

Na reunião do Consema do dia 29 de janeiro de 2001, realizada para concessão de licença prévia ao empreendimento, esses dados foram levados ao conhecimento dos conselheiros da entidade por meio de parecer técnico do Ministério Público. Mas, após longos discursos dos empreendedores, o conselho, diante de manifestações acaloradas de grupos contrários à implantação da empresa, se retirou para o gabinete do secretário estadual do Meio Ambiente, Ricardo Trípoli, para votar a portas fechadas a concessão da licença. Com a recusa da bancada ambientalista de conselheiros, que conta com seis membros, de participar da votação, o resultado foi amplamente favorável à CCBS. O conselheiro Bocuhy, membro da bancada ambientalista, enfatiza a função de formador de juízo do Consema e declara que esse papel foi prejudicado, uma vez que faltou tempo para um estudo mais aprofundado do EIA-Rima e de suas sucessivas atualizações, além dos pareceres técnicos da Cetesb e do Ministério Público. "Tratava-se de um caso de saúde pública. Portanto, não deveríamos votar sem que antes fosse feito um exame mais acurado da questão. Eu diria que o Consema votou no escuro, de maneira mal-informada e contra o interesse público maior, ou seja, a saúde pública." Bocuhy ainda vai além do campo ambiental e critica a atuação política da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema). "Nesse aspecto, ficou configurada a tutela do interesse da empresa, a Petrobras, que, sendo estatal, recebeu uma atenção maior, que transcende o papel da Sema. O que teria motivado a secretaria a advogar dessa forma?" O conselheiro se refere também à postura do diretor presidente da Cetesb, Dráuzio Barreto, que, em reprimenda pública, pressionou o assistente técnico do Ministério Público, Élio Lopes, a não levantar críticas ao empreendimento.

O professor Aziz Ab’Sáber, doutor em geografia pela USP, avalia o processo sob uma ótica mais abrangente. Tendo estudado a região por anos a fio, chama a atenção para um conceito essencial à compreensão dos danos representados por um projeto como o da CCBS: o chamado "domo de poluição". "Todo centro urbano ou industrial eleva uma espécie de leque volumoso de poluentes para o ar, que depois desce para as periferias da própria cidade, de forma que nenhum lugar do corpo urbano fica imune à poluição." Como explica o professor, o caso de Cubatão tem graves ramificações, pois a pequena parcela de gases poluentes que atravessa a serra do Mar impelida pelos ventos oceânicos irá juntar-se àqueles emitidos pela região central da cidade de São Paulo e aos provenientes da região do ABCD, formando uma espécie de cúpula de poluição que se estende do litoral à capital e seu entorno.

Um outro problema, de ordem econômica, diz respeito aos custos de produção, já que o gás natural proveniente do gasoduto é comprado em dólar e a energia será revendida em real. Além disso, a geração de um megawatt-hora numa termoelétrica é cerca de 70% mais cara do que numa hidrelétrica. Portanto, fica o questionamento sobre quem arcará com o ônus da dolarização da energia e do aumento do custo na geração: empreendedores ou população? "Na verdade, quem vai bancar será o consumidor final. Somos nós mesmos", antecipa Edson Satoshi, do Sindicato dos Petroleiros de Santos. Manifestando-se contrário à construção da termoelétrica, ele alega que, uma vez que uma das justificativas da CCBS é o fornecimento de energia à refinaria, bastaria alterar o combustível empregado em seus fornos e caldeiras de óleo para gás natural ou substituir sua casa de força por uma central de cogeração de potência de cerca de 50 MW (o consumo atual é de 35 MW). Qualquer dessas alternativas seria muito mais indicada do ponto de vista ambiental e resultaria na auto-suficiência energética da RPBC.

Outra ressalva levantada por aqueles que são contra a construção da usina refere-se ao projeto de despoluição do rio Pinheiros, em São Paulo, orçado em R$ 200 milhões. A água desse rio, depois de limpa pelo método de flotação, poderia ser bombeada para a Baixada Santista já a partir de 2002. Com isso, a RPBC se tornaria auto-suficiente em geração de energia, uma vez que a hidrelétrica Henry Borden, que hoje trabalha com baixa potência devido ao reduzido volume de água que movimenta, operaria com capacidade total.

Mas não se deve esquecer que tanto esse processo de despoluição como a possibilidade de bombear as águas do rio Pinheiros para o litoral também têm sido motivo de críticas por parte dos ambientalistas, uma vez que o método de flotação não garante a retirada de metais pesados da água. No entanto, se esses projetos fossem postos em prática, a termoelétrica perderia sua função de fornecedora de energia para a refinaria, passando a produzi-la unicamente para venda, alternativa totalmente indesejável, tendo em vista as condições já existentes de agressão ao meio ambiente em Cubatão. Uma termoelétrica com esse fim poderia ser muito bem aceita, dada a situação de iminente racionamento de energia em todo o país, mas numa regi&atilde
;o menos devastada pela poluição.

Represa Billings também pode sofrer as conquências pela imprudência da Sema

Esperança é a lei

A forte oposição de grupos ambientalistas locais, como o Coletivo Alternativa Verde (Cave) e a Associação de Contaminados Profissionalmente por Organoclorados (ACPO), e de diversos sindicatos tem recebido também o apoio das esferas burocráticas. O Ministério Público apresentou em 16 de abril uma representação, elaborada pela promotora Liliane Garcia, contra a termoelétrica. Além disso, as seções da Ordem dos Advogados do Brasil de toda a Baixada Santista têm se manifestado contrariamente ao empreendimento. Manoel Serpa, da Pastoral Operária de Cubatão, está otimista quanto ao processo de natureza jurídica: "Em cidades do interior de São Paulo, como São José dos Campos e Santa Branca, termoelétricas deixaram de ser construídas por força de lei municipal". Tramita também na Câmara dos Vereadores de Cubatão o projeto de emenda à Lei Orgânica Municipal, de autoria da vereadora Rozemeri de França Abreu Santos, do PSDB, que proíbe a instalação de termoelétricas na região em virtude da saturação de elementos poluidores.

Apesar de provenientes de diferentes setores sociais, as críticas à CCBS são convergentes. No caso específico de Cubatão, o projeto deveria ser aprovado sob condição exclusiva de emitir taxa igual ou menor de poluentes atmosféricos do que os estabelecimentos já fixados na região. A CCBS, como atesta categoricamente o parecer técnico do Ministério Público, ao contrário, seria responsável pelo aumento na maioria das concentrações de poluentes.

Diante do emaranhado burocrático presente nesse processo, as vozes do povo ressentem-se da ignorância que lhes foi imposta. Muito desse fato, confirmado por grande parte dos entrevistados, cujas opiniões podem ser sintetizadas na expressão recorrente do professor Ab’Sáber de que "é preciso socializar o conhecimento", decorre da restrição de informações técnicas, limitadas às esferas burocráticas. Exemplo disso é o reduzido número de audiências públicas realizadas para esclarecer o projeto à população. No dia 12 de agosto de 1999, os habitantes da Baixada Santista tiveram o primeiro e único contato público com a CCBS. Desde essa data, os estudos ambientais relativos à empresa sofreram diversas atualizações, sem que nenhuma informação chegasse à população. Na reunião subseqüente – o encontro já citado do Consema, no dia 29 de janeiro de 2001 –, contando com a presteza do secretário do Meio Ambiente e da grande maioria dos conselheiros, que votaram a favor, a termoelétrica conseguiu uma expressiva vitória, à margem do conhecimento da população e em detrimento da saúde pública do litoral sul de São Paulo. Desde então, o destino dos milhares de habitantes da Baixada Santista e, indiretamente, como aponta o professor Ab’Sáber, de todo o estado de São Paulo está sendo decidido a portas fechadas, como aconteceu na votação do projeto no Consema.

Reprodução

A população, as organizações ambientalistas e grande parte dos sindicatos locais são intitulados, pelas entidades governamentais, de "a cultura do não", por sua recorrente postura de negação a projetos que possam prejudicar a eles e à sua região. São marinheiros, estivadores e operários que convivem com todo tipo de substâncias nocivas. Pessoas simples, que às vezes se aventuram pelos gabinetes cinzentos onde se delibera sobre a vida alheia, como é o caso de Élson Maceió, do Cave. Ele chegou a ser conselheiro do Consema por dois anos, mas, como mora em Guarujá, não pôde arcar com as despesas das constantes viagens à capital e voltou a ser um dos milhares que vacilam entre a asma provocada pelo ozônio e a mudez imposta pela burocracia, na expectativa de, um dia, tornar a decidir sobre o próprio futuro.

Cubatão, Maio de 2001

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