Primeiros passos

O Brasil é pioneiro em iniciativas de inclusão digital, palavra cada vez mais em moda. Através da ação do governo e de ONGs, comunidades de baixa renda começam a ter acesso à informática e à Internet
Por Carlos Juliano Barros
 01/08/2003
Cidade Tiradentes: telecentro revitalizou a região

A mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), com dados de 2001, revela que apenas 12,6% dos domicílios brasileiros possuem computador. Quando se leva em conta o acesso à internet, o número cai para 8,6%. É a primeira vez que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), responsável pela pesquisa, realiza esse tipo de levantamento.

Nos últimos anos, o termo “inclusão digital” tornou-se uma febre. Iniciativas de empresas; políticas governamentais; mobilização da sociedade civil. Diversas são as estratégias para romper as barreiras do acesso das classes menos favorecidas às tecnologias digitais. A luta para democratizar o conhecimento, o principal produto da chamada “sociedade da informação”, constitui uma forma de ataque às desigualdades sociais.

Em janeiro, um relatório organizado pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e divulgado durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, apontou o Brasil como líder no quesito “inclusão digital” entre os países da América Latina. Mas os dados do IBGE não deixam dúvidas de que o caminho a percorrer ainda é muito longo.

Conceito amplo – A idéia de conectar computadores em rede surgiu nos Estados Unidos, durante o período da Guerra Fria. “Era uma política pública do governo norte americano que buscava enfrentar a aparente superioridade tecnológica da então União Soviética”, explica o sociólogo Sérgio Amadeu, presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI).

Rogério da Costa: inclusão digital não se resume ao acesso de classes de baixa renda ao mundo da informática

Na década de 70, o mundo assistia a uma transformação sem precedentes. Com um volume de informação nunca visto antes, produzido por meio de tecnologias cada vez mais complexas, a exclusão social adquiriu nova face. “Naquela época, já existiam estudos sobre as enormes diferenças entre os países que dominavam as tecnologias e aqueles que apenas a consumiam”, afirma Amadeu. Por isso, “é impossível falar desse assunto sem levar em conta a oposição de países desenvolvidos e subdesenvolvidos”, completa o professor Rogério da Costa, do Departamento de Semiótica da PUC-SP.

Dessa maneira, a inclusão digital não se resume a medidas que permitam aos cidadãos de baixa renda ter acesso ao computador. Na verdade, é necessário avaliar o peso que essas novas tecnologias representam para a economia do país, na produção de bens e serviços. “Precisamos sair do campo romântico para entender o patamar de inclusão digital de uma sociedade”, afirma Costa. Se um país não possui uma infra-estrutura de telecomunicações de boa qualidade, por exemplo, todo esse processo fica comprometido. Também se torna difícil imaginar uma nação desenvolvida cujas empresas não se estruturem através de tecnologias digitais. Trazer e capacitar pessoas para o mundo da informática consiste em uma das etapas. Mas, no Brasil, é o que comumente se considera inclusão digital.

Kiminoshin Yoshida

Políticas públicas

As iniciativas governamentais mais substanciais na área de disseminação das tecnologias digitais se concentram nas regiões sul e sudeste. “É necessário transformar o combate à exclusão digital em política pública e cada esfera do governo deve se empenhar nessa direção”, afirma Amadeu. O estado de São Paulo tem experiências já sedimentadas nesse sentido. A prefeitura da capital, através da Coordenadoria do Governo Eletrônico (www.telecentros.sp.gov.br), por exemplo, mantém 47 telecentros – pontos de acessos comunitários a computadores – espalhados pelas zonas periféricas da cidade. O governo estadual segue a mesma linha. Por meio de seu programa Acessa São Paulo (www.acessasaopaulo.sp.gov.br), disponibiliza 120 infocentros, metade na capital e o restante no interior.

O primeiro telecentro foi instalado em Cidade Tiradentes, extrema zona leste da capital, em 2001. Kiminoshin Yoshida, encarregado do contato entre a Prefeitura e a população local, relata que o lugar se encontrava completamente deteriorado. “A bandidagem havia tomado conta. Era um ponto de tráfico de drogas, desmanche de carros”, lembra. A chegada do telecentro incentivou a vinda de outros serviços que revitalizaram a região. Nas redondezas, foram construídos uma padaria comunitária e um posto de saúde.

Yoshida ressalta a importância do envolvimento das comunidades beneficiadas com o projeto. Elas abraçam a causa, garantindo a manutenção e a segurança dos computadores. Todo telecentro possui um conselho gestor, formado por lideranças locais. “Elas garantem respeito e seriedade ao projeto”, justifica. Esse conselho, no entanto, não possui funções deliberativas, ou seja, não define os rumos da administração do telecentro. Todavia, aponta eventuais falhas no serviço e serve como uma ponte entre a população e a Prefeitura.

Jesulino: Telecentro abriga também um banco de sementes

Cada telecentro tem, em média, 20 computadores, dos quais 15 reservados para cursos básicos de informática e oficinas, como jornalismo comunitário e criação de sites, por exemplo. O restante das máquinas fica disponível para uso livre. O referencial pedagógico da prefeitura se baseia no princípio de “enfrentar problemas do cotidiano”, resume Yoshida. Dessa forma, os cursos não têm um formato tradicional. “É como se uma pessoas entrasse em uma empresa e o patrão lhe pedisse alguma coisa pelo computador”, acrescenta. Os 47 telecentros distribuídos pela cidade possuem cerca de 95 mil pessoas cadastrados.

A organização dos infocentros, do governo do estado, é um pouco diferente. “A filosofia é a mesma, mas a prefeitura dá alguns cursos. O que a gente faz é oferecer tecnologia”, def
ine Fernando Guarnieri, coordenador do Acessa São Paulo. A explicação é muito simples. A missão do programa é atender ao maior número possível de pessoas. “O que um indivíduo que nunca mexeu em um computador precisa é que alguém sente ao seu lado e lhe dê explicações à medida que ela precisar. Cursos limitam o número de pessoas”, completa. Porém, a demanda da população por esse sistema é inegável. A fim de contornar esse problema, o Acessa São Paulo fez um convênio com o Comitê para Democratização da Informática (CDI), uma ONG que, por meio de suas Escolas de Informática e Cidadania (EIC), oferece cursos para pessoas que não podem pagar por eles.

Fernando Guarnieri: Acessa São Paulo já soma mais de 2 milhões de atendimentos

Quando uma comunidade é agraciada com um infocentro, ela tem de arcar com os custos de manutenção do prédio e remuneração dos monitores. O governo do Estado fiscaliza a administração da entidade com o intuito de garantir duas regras básicas: a gratuidade e o acesso mais democrático possível. De acordo com o Acessa São Paulo, mais de dois milhões de pessoas já passaram pelos infocentros.

Software livre

Uma das bandeiras mais importantes no programa de inclusão digital da Prefeitura de São Paulo é a utilização do sistema operacional GNU/Linux, em detrimento do Microsoft Windows. Motivos não faltam. O primeiro é o econômico, já que é um software livre, quer dizer, não possui um proprietário determinado. “Qualquer política massiva de inclusão digital deve ser sustentável. Não podemos continuar pagando milhões de dólares de royalties em licenças de software”, argumenta Amadeu, que coordenou o início do projeto. No ano passado, a prefeitura estima que R$ 2,5 milhões foram economizados em licenças, o que barateou o custo dos equipamentos e alavancou investimentos.

Carlos Seabra: "Mais importante que surfar na Internet é aprender a fazer onda".

Além disso, o GNU/Linux tem código aberto. Qualquer pessoa pode mexer em sua estrutura e, a partir daí, criar novos programas. É o que se chama de “fomento”, uma forma de estimular a competência nacional na área de informática. “Se quisermos construir um país transparente e desenvolver nossas empresas de software, é desejável pegar o caminho do software livre”, afirma Carlos Seabra, diretor da Escola do Futuro da USP, instituição que, entre outras coisas, capacita os monitores do Acessa São Paulo. Mas também não se deve criar a ilusão de que o uso do GNU/Linux seja suficiente para solucionar os problemas nessa área. “Não adianta instalar esse sistema em uma máquina velha, levar para a favela e dizer que se está fazendo inclusão digital. É preciso tomar cuidado com argumentos que mais parecem demagogia”, analisa Seabra.

Nem todos os envolvidos com o tema pensam da mesma forma. O CDI (www.cdi.org.br), que atua em parceria com o Acessa São Paulo, não vê a utilização do GNU/Linux como uma medida decisiva. “Não dá para ser contra. Mas para nós é uma questão pragmática e não ideológica”, afirma Rodrigo Alvarez, coordenador geral do CDI-SP. Apesar de os programas abertos e livres representarem uma grande economia para qualquer empresa, a verdade é que a grande maioria ainda se vale dos softwares proprietários. “90% das empresas precisam de pessoas gabaritadas para usar Microsoft. Treiná-las para softwares livres é, de certa forma, excluí-las novamente”, justifica. Na prática, uma pessoa com noções básicas de informática não enfrenta muitos problemas na utilização de um ou de outro. “Ninguém fica mais ou menos cidadão por usar software livre ou proprietário”, argumenta Seabra. Contudo há o consenso de que a escolha de sistemas operacionais como o GNU/Linux pode constituir uma importante ferramenta no desenvolvimento tecnológico de uma comunidade. “Qual a possibilidade de a população da periferia comprar um software proprietário?”, conclui Yoshida.

Terceiro setor

O significado de terceiro setor, em linhas gerais, é o seguinte: ações da iniciativa privada que visam a um bem público. “As empresas estão se dando conta de que responsabilidade social vai além do pagamento de impostos”, explica Alvarez.

Dia da Inclusão Digital: Iniciativa do CDI movimenta postos de informática em todo país

O CDI surgiu para conciliar a vontade das empresas, de investir em projetos de inclusão digital, com a demanda de comunidades de baixa renda, alijadas dessas tecnologias. Atualmente, o CDI é uma das maiores ONGs do mundo que trabalham com essa preocupação. Além do Brasil, está presente em 10 países.

No início de 2002, a entidade mantinha nove EICs, em São Paulo. Hoje, esse número subiu para 58. A dinâmica pedagógica de uma EIC funciona pela “metodologia de projetos”, como define Alvarez. As pessoas que freqüentam os cursos discutem problemas locais e usam o computador para expressar suas opiniões sobre o assunto.

As comunidades, onde se localizam as EICs, têm de arcar com os custos de manutenção das salas e remuneração dos instrutores. A forma encontrada por algumas delas foi a cobrança de mensalidades simbólicas. “Não queremos incluí-las digitalmente de forma assistencialista. Nosso papel é incentivar que elas próprias procurem soluções”.

Desde 2001, o CDI promove o Dia da Inclusão Digital, um ato público que busca sensibilizar a sociedade para a importância da causa. Nesse evento, computadores são ligados em algum local de grande movimento. Lino, um boliviano que há anos mora em São Paulo, teve acesso pela primeira vez à internet nas máquinas instaladas no terminal rodoviário do Tietê, pelo CDI. “Quero me atualizar”, explica. Ele conta que nunca ouviu falar de pontos comunitários de informática, como telecentros, infocentros ou EICs. “O déficit de pessoas não atendidas ainda é muito grande, mas todas as experiências são válidas, pois est&atild
e;o conseguindo ótimos resultados”, garante Guarnieri.

Cotidiano

O trabalho de Marcos consiste em comprar e vender carros queimados. Meses atrás, ele passava horas ligando e comparecendo a leilões de sucatas. Às vezes, não gostava do produto e perdia a viagem. Desde que começou a freqüentar um ponto de acesso comunitário de computadores, na zona leste, não usa mais o telefone para fazer seus contatos. Pelos jornais, ele pega os endereços dos sites dos leilões e, dessa forma, economiza tempo e o dinheiro. Pela foto na internet, ele vê o estado da sucata e nem sai de casa se ela não lhe interessar. Outra vantagem: a redução na conta de telefone foi bem significativa.

Certamente, o uso do computador mudou o dia-a-dia de Marcos. Mas não se pode dizer o mesmo de sua condição social. O que se entende então, por inclusão digital, consiste em “dar vazão a atividades que a própria pessoa já faz, por meio de outra ferramenta”, diz Seabra. Na verdade, o exemplo de Marcos não configura um caso explícito de inclusão digital, pois, de alguma forma, ele já usava tecnologias digitais – como o telefone ou o celular – no seu cotidiano.

A transformação, portanto, não implica melhores empregos, salários astronômicos. É claro que existem casos de pessoas que revolucionaram suas vidas, através da informática. Porém, são exceções. Incluir digitalmente um cidadão pressupõe um envolvimento visceral com essas novas tecnologias. O jovem que tem uma banda e divulga suas músicas pela internet; a dona-de-casa que pesquisa na rede novas receitas e divide com as amigas. São formas de consolidar uma teia de informações que estimula a interação da comunidade.

Telecentro Cidade Tiradentes

O telecentro instalado em Cidade Tiradentes, por exemplo, não constitui apenas uma sala equipada com computadores, mas uma referência para a própria comunidade. Além das máquinas, uma biblioteca e uma televisão também são uma opção de entretenimento para os usuários. Às vezes, profissionais, como dentistas e psicólogos, ministram alguma palestra. “Muitos jovens nos procuram como uma forma de combater a ociosidade”, explica Jesulino Alves, que trabalha na gerência dos telecentros da região leste. A chegada da tecnologia digital e a criação do espaço potencializaram o surgimento de movimentos de moradores do bairro.

A partir de encontros, no próprio telecentro, foi criada uma ONG de defesa ambiental. “O intuito é conscientizar a população a respeito da reciclagem, evitando a concentração de lixos nas ruas, além de preservar o resto da Mata Atlântica no entorno da região”, justifica Jesulino. O telecentro também sedia um banco de sementes. “Aqui existem poucas ruas arborizadas”, explica. A ONG também tem planos de cultivar uma horta comunitária.

Atividades, além da informática, têm sido uma iniciativa comum entre aqueles que buscam não só a inclusão digital, mas também a melhoria da qualidade de vida, estimulando a formação de uma identidade coletiva e cooperativa, através dessas novas tecnologias. “Mais importante que surfar na internet, é aprender a fazer onda”, filosofa Seabra.

Ilusão digital

Rafael da Silva, 16 anos, é monitor de um Telecentro localizado no Rio Pequeno, bairro da zona oeste de São Paulo. Quando perguntado sobre a principal demanda dos usuários, ele não hesita em responder: “ impressão de currículos”.

A idéia de que o domínio da informática constitui um diferencial na disputa por um emprego é lugar-comum. Nesse ponto, a inclusão pode transformar-se em ilusão. “Se um sujeito não souber colocar uma vírgula no lugar certo, ele não vai conseguir o trabalho. Mesmo que tenha o diploma de um curso de informática”, afirma Seabra. “Se isso fosse suficiente, bastaria distribuir canetas na periferia para acabar com o analfabetismo”, compara.

O perigo é conceber a inclusão digital como um saída mágica para a resolução das mazelas sociais, especialmente o desemprego. “No Brasil, nós associamos muito rapidamente a inclusão social à inclusão digital”, alerta Rogério da Costa. Na esperança de se conseguir um trabalho, esse pode ser um discurso sedutor para qualquer pessoa. “Não se pode confundir o ideal de construir uma sociedade mais justa com a utilização de argumentos demagógicos”, define Seabra.

Os programas do estado, da prefeitura, e o CDI garantem que não têm o objetivo de abrir portas para o mercado de trabalho. Mas essa é uma fronteira muito tênue. Nem todos que utilizam esses pontos de acesso estão preocupados com o fortalecimento da identidade comunitária. “A inclusão digital não resolve todos os problemas sócio-econômicos”, pondera Amadeu. Para ele, trata-se de fazer valer o “direito inalienável de se comunicar, seja pobre ou rico”.

São Paulo, outubro de 2002

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