Catorze trabalhadores são libertados no Pará

Grupo do Ministério do Trabalho libertou 14 pessoas em situação degradante de trabalho na Fazenda São Luís, município de Ourilândia do Norte - região Sudeste do Pará. A ação deve resultar em indenização para os trabalhadores
Por Leonardo Sakamoto
 27/11/2003

Xinguara (PA) – Foram libertadas 14 pessoas em situação degradante de trabalho na Fazenda São Luís, município de Ourilândia do Norte – região Sudeste do Pará. A ação, que teve início na tarde desta quarta-feira (26), foi coordenada por um grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), contando com a participação do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal.

Movidos por denúncias de maus-tratos e privação de liberdade, os auditores do trabalho encontraram peões morando em barracos feitos de palmas de babaçu, sem condições de higiene, onde se amontoavam homens, mulheres e crianças. Virna Damasceno, coordenadora do grupo móvel, afirmou que havia trabalhadores submetidos a condições desumanas, presos por dívidas com a fazenda e pagamentos atrasados. O proprietário, Luís Antônio Sacarelli** (leia nota abaixo), intimado pela equipe do MTE, disse que pagaria os direitos dos trabalhadores até a noite desta quinta, em um total de R$ 25 mil.

Euzébio Teixeira estava havia cinco meses sem receber. Morava com a mulher e dois filhos, um menino de quatro anos e uma menina de cinco meses, em um barraco de seis metros quadrados, erguido com folhas de babaçu sobre o chão nu. Não recebia dinheiro pelo serviço de preparar o pasto para o gado e toda a comida só podia ser retirada através de Luís Carlos, gerente da fazenda. "Por dias, o almoço era só arroz. Carne? Ah, é ruim de arrumar. Só quando quebra gado por aí e a gente consegue alguma coisa", desabafa Elisângela Alves da Silva, 20 anos, esposa de Euzébio.

"Reino da Alegria"

Sob um calor forte e a poeira da estrada de terra em que foi encontrada, Andréa(*) diz que fazia a comida dos cerqueiros e limpava o alojamento. Não ganhava nada pelo serviço e nem imaginava que tinha direitos a alguma coisa. Completou 14 anos no mês passado.

Sua mãe morreu no parto do irmão mais novo há sete anos. Depois disso, ela foi "dada" a uma vizinha, pois o pai não tinha dinheiro para garantir seu sustento. Esses anos em casa alheia foram os piores de sua vida. "A mulher que cuidava de mim brigava muito comigo." As marcas das agressões ficarão para sempre, como uma grande cicatriz no lábio superior, que não combina com o seu sorriso grande e fácil.

O pai acabou pegando ela de volta e, desde então, ela o acompanha em todos os serviços. Valdemar Rodrigues da Silva é "peão de trecho", fazendo um serviço aqui, outro ali, de trecho em trecho, sem rumo ou morada certa. Por isso, aprendeu a cozinhar desde cedo e aos cinco já ajudava o pai. Limpou casas, lavou roupa para o patrão, cuidou de porcos. Por causa das constantes mudanças, Andréa por quatro anos entrou em um escola, mas não conseguiu terminar a série, saindo na metade para acompanhar Valdemar. Hoje está no segundo ano do ensino fundamental na Escola Municipal "Reino da Alegria", no povoado de Fogão Queimado, a seis quilômetros da sede da fazenda. Estuda na parte da tarde, quando o serviço não lhe toma do dia.

Seu primo, Roberto(*), de 13 anos, ajudava os maiores a puxar arame e levantar mourões. Os cerqueiros estavam havia pouco tempo na fazenda quando a fiscalização chegou. Mas a situação de exploração já começava a se instalar, com comida como pagamento, alojamentos insalubres e sem previsão de data para o dinheiro. Com a ação do grupo móvel, Andréa tem para receber R$ 840,00, o primeiro pagamento de sua vida. Infelizmente, é pouco para uma infância inteira roubada.

Enquanto esperavam o desenrolar da fiscalização, ela e Roberto conversavam sobre a vida. "Meu maior sonho", diz Andréa, "é o meu pai ter uma casa para nós aquietá, ficar em um lugar."

"Já rodei esse país inteiro"

Geraldo(*) fugiu da miséria do Nordeste há 14 anos, rumando em direção às promessas de fartura e prato cheio da Amazônia. Foi ser peão de trecho. Rodou por garimpos de Minas Gerais, Amapá, Goiás, Pará. Conseguiu ouro, mas não enricou. "Tinha que dividir o que eu achava com o dono da terra e com os companheiros de garimpos."

Havia seis meses trabalhava na Fazenda São Luís, sem ver a cor do dinheiro. Só a dívida da comida e dos instrumentos de trabalho que ele pegava com o gerente da fazenda que aumentava a cada dia. "O gerente dizia que não tinha dinheiro, nem cheque e que não podia acertar." Com uma dor de dente que estava lhe tirando do sério, pediu as contas mais uma vez para ir se tratar na cidade mais próxima. Ouviu um outro não.

"Olha, moço, estou esse tanto de anos como peão de trecho e nunca levei tapa de ninguém, nunca fui para a cadeia, nunca tive problema. Essa aqui foi a pior coisa que aconteceu na minha vida." Geraldo mostra com indignação a sua cabana de folhas de babaçu. "Quando tinha época da cheia [chuvas], só a rede dentro do barraco ficava seca. O resto molhava tudo."

Geraldo foi libertado aos 53 anos da Fazenda São Luís e, se o proprietário cumprir sua palavra esta noite, vai receber a maior indenização entre todos os libertados: R$ 4.687,00. Geraldo diz que tem saudades de sua terra. "Faz tempo que a gente quer voltar…" E apesar de ter ficado reduzido à condição de um não-cidadão por tanto tempo, mantém seu orgulho. "Voltar para casa pior do que saiu fica ruim."

Os direitos dos trabalhadores rurais freqüentemente são ignorados na chamada “fronteira agrícola”, onde a floresta amazônica perde espaço a cada dia para grandes fazendas de gado. Péssimos alojamentos e alimentação, atraso ou não-pagamento de salários e até privação de liberdade sob ameaça de morte acontecem com freqüência na região. Homens se tornam escravos do dia para a noite.

Para impedir que isso aconteça, grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho realizam vistorias de surpresa, aplicando multas e resgatando pessoas quando são constatadas irregularidades. De acordo com levantamento realizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), Pará e Mato Grosso são os Estados com maior incidência de utilização de trabalho escravo. Piauí, Tocantins e Maranhão são grandes fornecedores de mão-de-obra. Neste ano, a Bahia entrou no rol dos que mais utilizam trabalho escravo, com libertações de mais de 800 pessoas de uma só vez. A fiscalização do Ministério do Trabalho já libertou mais de 4.000 pessoas em 2003.

Como alguém se torna um escravo

A escravidão de hoje é diferente daquela existente no século 19, mas tão perversa quanto. Devido à seca, à falta de terra para plantar e de incentivos dos governo
s para fixação do homem no campo, ao desemprego nas pequenas cidades do interior ou a tudo isso junto, o trabalhador acaba não vendo outra saída senão deixar sua casa em busca de sustento para a família. Ao ouvir rumores de que existe serviço farto em fazendas, ele vai para esses locais espontaneamente ou é aliciado por gatos (contratadores de mão-de-obra que fazem a ponte entre o empregador e o peão). Estes, muitas vezes, vêm buscá-lo de ônibus ou caminhão – o velho pau-de-arara.

Já na chegada, o peão vê que a realidade é bem diferente. A dívida que tem por conta do transporte aumentará em um ritmo constante, uma vez que o material de trabalho pessoal, como botas, é comprado na “cantina” do próprio gato, do dono da fazenda ou de alguém indicado por eles. Os gastos com refeições, remédios, pilhas ou cigarros vão para um “caderninho”, e o que é cobrado por um produto dificilmente será o seu preço real. Um par de chinelos pode custar o triplo. Além disso, é costume do gato não informar o montante, só anotar. Saber o valor correto não adiantaria muito, pois, na maioria das vezes, o local de trabalho fica em áreas isoladas e os peões não têm dinheiro. Cobra-se por alojamentos precários, sem condições de higiene.

No dia do pagamento, a dívida do trabalhador é maior do que o total que ele teria a receber – isso considerando que o acordo verbal feito com o gato é quebrado, tendo o peão direito a um valor bem menor que o combinado. Em outras situações, até os próprios gatos da fazenda são enganados pelo proprietário. Ao final, quem trabalhou meses sem receber nada acaba devedor do gato e do dono da fazenda e tem de continuar suando para poder quitar a dívida. Um poço sem fundo.

(*) o nome foi alterado para preservar a vítima

**O juiz Carlos Henrique Borlido Haddad, da Vara Federal de Marabá, rejeitou, em primeira instância, as denúncias contra os acusados Luiz Antonio Zapparoli Sacarelli e Luiz Carlos Joaquim de Oliveira, relativos ao caso relatado nesta matéria. A sentença, que se baseou no princípio da atipicidade do crime (uma vez que o flagrante ocorreu antes da última mudança de tipificação do crime de exploração de mão-de-obra análoga à escravidão), foi publicada no dia 11 de março de 2009 no Diário da Justiça Federal da 1ª Região (Ed. 44). O Minitério Público Federal (MPF) já recorreu da decisão.

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