Projeto de transposição não garante água aos necessitados

A despeito da disputa ferrenha com base em diferentes estudos sobre os impactos socioambientais, não resta dúvida de que o empreendimento se dará com base na infra-estrutura hídrica já existente e não prevê, de fato, a democratização do acesso à água no semi-árido nordestino
Por Antônio Biondi e Maurício Hashizume
 20/12/2003
Açude do Atalho, em Brejo Santo, Ceará (Aldo Maranhão)

Há como fazer brotar das maltratadas águas de um dos mais explorados rios do País um plano de combate à desigualdade social que tanto aflige os nordestinos e nordestinas no semi-árido ao longo da história? Em busca da resposta para a pergunta anterior, repórteres da Agência Carta Maior, parceira do site Repórter Brasil, se desdobraram em incursões in loco, em pesquisas de material de referência e em dezenas e dezenas de entrevistas para elaborar uma reportagem especial sobre o projeto de transposição do Rio São Francisco. A iniciativa do projeto surgiu como resultado do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) instalado em junho de 2003 e está atualmente sob coordenação do Ministério da Integração Nacional (MIN).

A inauguração da série se dá justamente no dia em que uma liminar obstruiu a votação do Conselho Nacional dos Recursos Hídricos (CNRH), formado em sua maioria por membros do Poder Executivo, que decidiria no voto os fins de utilização das águas que o governo federal pretende transportar do “Velho Chico” para bacias do Nordeste Setentrional nos Estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. A liminar barrou o que seria uma das mais relevantes definições sobre o futuro do projeto, já que a posição contrária à retirada da água para ampliação do agronegócio de exportação – da fruticultura à criação de camarões (carcinicultura), tomada pelo Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHRSF) corria grande risco de ser desbancada – uma vez que 29 dos 57 integrantes do Conselho são membros do governo federal.

Na primeira reportagem, o enfoque fica por conta das repercussões socioambientais relacionadas ao projeto de transposição. Depois, será dissecado o conflito institucional que cerca o imbróglio, os aspectos político-econômicos que envolvem a obra e às alternativas de abastecimento de água na região do semi-árido.

Os marcos legais para a realização do empreendimento conduzido pelo governo federal prevêem a apresentação de um Estudo de Impacto Ambiental, juntamente com um Relatório de Impacto no Meio Ambiente (EIA/Rima) para ser submetido a audiências públicas antesda concessão da licença prévia, sinal verde para o início da ousada e polêmica obra. As audiências já foram marcadas pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama) e serão realizadas mês de dezembro.

O desafio assumido pela reportagem foi tentar dar contornos a um “estudo de impacto social” do que vem sendo chamado pelo governo de Integração do Rio São Francisco às Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional. Muitas são as justificativas apresentadas para essa custosa intervenção estatal: a má distribuição dos recursos hídricos no Nordeste Setentrional, o incentivo à criação de novos pólos de desenvolvimento para geração de emprego e renda, a busca de uma solução mais perene para uma região historicamente excluída etc.

A principal referência utilizada pelo Ministério da Integração Nacional (MIN) para dar sustentação à empreitada consiste em um levantamento da Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo esses parâmetros internacionais, o índice de 1 mil m³/habitante/anoé o mínimo de consumo de água, incluindo aí até o uso econômico de subsistência, para uma vida saudável. Um volume menor do que esse caracteriza a situação de estresse hídrico. Segundo o chefe-de-gabinete do MIN, Pedro Brito, um dos principais responsáveis pelo projeto dentro do governo federal, em algumas regiões onde a água será levada esse índice atinge apenas 500 m³/habitante/ano, metade do mínimo. “O estresse hídrico é evidente. Esse é um dado irrefutável. Essas pessoas não podem ficar sem água. E nãohá como substituir a água por nada”.

Barcas no Velho Chico em Juazeiro, Bahia (Aldo Maranhão)

Em contraposição aos dados colocados por Brito, o professor de Hidrologia e Irrigação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, João Abner Guimarães Filho, lembra que o próprio EIA/Rima do Ministério da Integração Nacional prevê uma demanda de consumo prioritário – humano, animal e industrial – para 2025 na ordem de 43,8 m³/s. “Esse volume pode ser perfeitamente atendido pelas fontes locais já existentes. Para isso, bastaria uma infra-estrutura adequada de adutoras. Essa solução já vêm sendo desenvolvida pelos governos dos Estados do Rio Grande do Norte e do Ceará com bons resultados”.

O professor destaca ainda que 13 milhões de habitantes da bacia do rio São Francisco dispõem de 360 m³/s para atender 335 m³/s de seus usos já outorgados pela Agência Nacional de Águas (ANA). “Já o Ceará, com uma população de 7,5 milhões de habitantes, apresenta uma oferta potencial de 215 m³/s para atender um consumo atual de cerca de 54 m³/s; o Rio Grande do Norte, com uma população 2,7 milhões de habitantes dispõe de uma vazão garantida de 70 m³/s para atender uma demanda de 33 m³/s. Até mesmo na Paraíba, o menos dotado de recursos hídricos da região, apresenta-se com um superávit significativo, pois sua disponibilidade é de 32 m³/s para uma demanda de 21 m³/s”.

A despeito da “guerra dos números”, o fato é que o projeto de transposição, da forma como foi colocado, atenderá diretamente apenas 5% da superfície do semi-árido. Na realidade, o papel do governo federal se restringe à construção da obra e à definição daCompanhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) como gestora do projeto de grandeza nacional. A definição final dos critérios e das formas como a água transportada será distribuída e cobrada dos usuários ficará a cargo das companhias estaduais de abastecimento. Abner chama a atenção, por exemplo, para o fato de que nenhuma das barragens da região do Seridó, onde o quadro das secas é mais acentuado no Rio Grande do Norte, receberá as águas da transposição. Abner explica que apenas alguns dos maiores reservatórios da região r
eceberiam as águas da transposição, como é o caso das barragens de Castanhão no Ceará (6,7 bilhões de m³ de capacidade de armazenamento); Engenheiro Armando Ribeiro Gonçalves (2,4 bilhões de m³) e Santa Cruz (600 milhões de m³) no Rio Grande do Norte; e, Boqueirão (420 milhões de m³) e Engenheiro Ávidos (260 milhões de m³) na Paraíba. “Dessa forma, a problemática das secas na região mudaria muito pouco com a implantação do projeto, tendo em vista que a água do São Francisco passaria muito distante dos locais mais secos, onde o quadro é mais grave”.

Mesmo assim, Pedro Brito garante que já existe estrutura nos Estados receptores para distribuir essa água, principalmente por meio de açudes. “Essa crítica poderia ser totalmente fundada há dez anos. Hoje, já existe infra-estrutura no próprio Castanhão para distribuir água para os mais necessitados”. Para o deputado federal Fernando Ferro (PT-PE), defensor da obra e relator da proposta de emenda constitucional (PEC) que cria um fundo especial para a revitalização da região sob influência da bacia do Rio São Francisco, a participação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no processo de integração, com projetos de regularização fundiária e assentamentos nas regiões que serão atendidas, seria a garantia de que a água não se concentraria na mão dos que menos necessitam. Procurada pela reportagem, a assessoria do próprio Incra, no entanto, não assume tamanha responsabilidade de garantir a justiça social do projeto.

Nesse sentido, o exemplo do Piauí vale ser realçado. Um piauiense tem uma disponibilidade hídrica per capita disponível cinco vezes maior que a de um paulista. “O fato do Piauí ser um Estado pobre é um problema político. Ter água não explica a solução da seca e pobreza, tanto que na beira do São Francisco tem muita miséria. Existem comunidades há dez quilômetros do rio que são abastecidas por carros-pipas", explica Abner.

Cicinho da Comunidade de Guaribas, Crato, Ceará (Aldo Maranhão)

O caso Piauí traz à tona uma questão fundamental que freqüentemente é deixada de lado no intenso debate sobre a transposição: a relação da distribuição da água com a questão agrária no semi-árido. Cícero Luciano Ferreira Alves, Cicinho, 25 anos, presidente da Associação Pró-Desenvolvimento das Guaribas, vive no município de Crato-CE, por onde passará o Canal Norte (veja abaixo) da transposição. Ele afirmou à reportagem da Agência Carta Maior que “as águas da transposição vão passar por muitas terras, por muitos proprietários, que vão querer alguma coisa em troca”. Ele prossegue: “Vai ter vários projetos. Para essa água chegar aqui no Cariri, acho que eu e você nem vamos tomar conhecimento”. Cicinho mora na comunidade das Guaribas, que luta há décadas para trazer água para as cerca de 100 famílias que vivem no local. Após várias tentativas frustradas, conseguiram aprovar uma outorga de uso de uma fonte, que fica a pouco mais de um quilômetro da comunidade, e já têm garantidos os R$ 111 mil necessários para executar o projeto. Embora a fonte seja pública, o proprietário do terreno em que ela se encontra barrou o pequeno empreendimento na Justiça, alegando danos ambientais.

Estudo realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) concluiu que 70% dos açudes públicos do Nordeste não estão disponíveis para a população. Ou seja, assim como no que se refere à repartição da terra, a influência político-econômica na distribuição da água (que será tratada em matéria específica na série inaugurada por esta reportagem) certamente exercerá grande influência. Para Roberto Malvezzi, o Gogó, membro da coordenação nacional da CPT, fica claro que a solicitação da água para o Nordeste Setentrional tem outras finalidades que não a de garantia de abastecimento para a parcela mais excluída do Nordeste Setentrional.

Em face de problemas como esse, a obra de transposição tem lógica de ponto questionado em um documento elaborado em agosto deste ano por um grupo de pesquisadores especialistas que fazem parte da Sociedade Brasileira de Pesquisa Científica (SBPC). De acordo com o documento, “(…) é mais racional que se cumpra uma estratégia de desenvolvimento e implementação que, na perspectiva das bacias receptoras de água, caminhe de jusante para montante, otimizando disponibilidades de água (inclusive investindo na integração de bacias hidrográficas em rios de domínio estadual, como está sendo feito no Ceará) e confirmando demandas, de modo a assegurar que o projeto constitua uma alternativa complementar e não implique o abandono ou a subutilização de fontes locais de água, garantindo intervenções capilares de ponta, que propiciem a obtenção de efeitos benéficos para: as populações mais pobres (aspectos sociais envolvidos); as áreas irrigadas que exigem obras e ações complementares (assistência técnica, gerencial, apoio creditício e logísticas de escoamento e de comercialização da produção) e para os sistemas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário (com redução de desperdícios e perdas de água, com redução dos problemas de poluição, que inviabilizam o aproveitamento de mananciais locais)”.

Diferenças entre o Eixo Norte e o Eixo Leste

O mesmo estudo da SBPC, que contou com a participação do colaborador da Agência Carta Maior João Suassuna (leia último artigo publicado sobre o assunto), sublinha “diferenças fundamentais quanto à justificação a respeito dos dois eixos propostos [no atualprojeto de transposição]”. Segundo a avaliação do documento da SBPC, o Eixo Leste é voltado para o abastecimento humano das regiões mais secas de Pernambuco e da Paraíba e para projetos de irrigação, em sua maior parte na própria bacia do São Francisco. Os especialistas reforçam, no entanto, que o Eixo Norte baseia-se no princípio do aumento da sinergia dos grandes reservatórios do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba e tem inequivocamente como objetivo a irrigação. “O projeto do Eixo Norte apresenta muitas incertezas no que se refere à viabilidade econômica e não há clareza quanto
ao benefício social e à distribuição de renda que poderá ser gerada com o projeto. Além disso, em ambos os casos, a capacidade gerencial necessária para que as instituições públicas brasileiras venham a administrar o transporte de água em canais com centenas de quilômetros e a capacidade dos Estados e da União de implementar as obras de modo a efetivamente utilizar a água não condiz com o quadro atual, de dezenas de projetos inacabados e outros quase destruídos em função da má gestão. Portanto, seriam extremamente oportunas e prioritárias ações focadas na conclusão de inúmeras obras inacabadas existentes”.

Local projetado para saída do Eixo Norte da transposição, em Cabrobó, Pernambuco (Aldo Maranhão)

“A avaliação técnica, social e econômica dos dois eixos de transposição propostos, vistos de forma mais ampla, sinaliza que o Eixo Leste é mais justificável, dado que pode vir a resolver problemas crônicos da região. Quanto ao Eixo Norte pesam contra sua racionalidade muito mais questões quanto às reais necessidades, ao alcance social, à viabilidade econômica e gerencial”, conclui o documento. A opinião dos pesquisadores tem o aval do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHRSF), que aprovou justamente a utilização da água transportada do São Francisco apenas para dessedentação humana e animal, em casos de comprovada indisponibilidade hídrica. A cidade de Campina Grande-PB, por exemplo, se encaixaria nessa categoria. De acordo com Yvonilde Medeiros, integrante do Comitê como representante da sociedade civil, o Eixo Leste, “em princípio e com algumas adaptações, aparentemente se justifica porque está de acordo com os critérios e prioridades aprovados pelo Comitê”.

A diferenciação entre os dois eixos não se sobrepõe, no entanto, às questões centrais que devem ser consideradas na realização de um projeto do porte da transposição, como a existência de alternativas, as transformações efetivas que serão geradas, os impactos positivos e negativos do projeto e os reais beneficiários da transposição.

Assuntos que serão debatidos nas próximas reportagens da Agência Carta Maior sobre o tema e que o geógrafo Aziz Ab’Sáber, professor emérito da Universidade de São Paulo, resume aqui na qualidade de um dos maiores conhecedores do Nordeste. Ab’Sáber acredita que a transposição possa ser feita, “se houver recursos e se não for feita demagogicamente”, como se fosse resolver os problemas do Semi-Árido. Na opinião de Ab’Sáber, o EIA/Rima do projeto foi “feito apenas por obrigação administrativa. É muito restrito”. Para ele, seria crucial que a proposta de baseasse em um atendimento integrado das populações mais pobres e economicamente de melhor estado. Ab’Sáber cita o caso do rio Jaguaribe, no Ceará, em que existe um grande número de produtores vazenteiros, que plantam culturas de vazante nas margens dos rios, aproveitando-se da irrigação natural propiciada a essas áreas pelas cheias anuais do rio. Os vazenteiros plantam sobretudo mandioca, feijão e milho, garantindo o abastecimento das feiras do sertão. Ab’Sáber explica que eles se utilizam de áreas públicas para essas culturas, e que se for liberada mais água dos açudes no Jaguaribe, como o Castanhão, “eles não poderão continuar produzindo essa horticultura excepcional”. Ab’Sáber afirma que os “os técnicos a favor da transposição dizem que o ‘vazentismo já era’. Só que o povo não era. Ele tem que ser pensado. Socioeconomicamente, socioculturalmente”. Por fim, Ab’Sáber ressalta que a realização da reforma agrária em toda a Bacia do Jaguaribe é fundamental para o sucesso de uma empreitada como a transposição. “Para democratizar os benefícios”.

Vale do Rio São Francisco, segundo semestre de 2004

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM