A Boca do Lixo ainda respira

Localizada na região central da capital paulista, a área que já representou o maior pólo cinematográfico do país hoje só é referência de prostituição e comércio de eletrônicos
Texto e Fotos: Carlos Juliano Barros e Laura Lopes
 15/06/2004
Rua do Triunfo: poucas produtoras ainda se encontram lá

“A Boca do Lixo ainda existe”. Na década de 60, quando o jornalista Percival de Souza começou sua carreira na crônica policial o submundo de São Paulo tinha endereço. No centro da cidade, o famoso Quadrilátero do Pecado – delimitado pelas ruas e avenidas Duque de Caxias, Timbiras, São João e Protestantes – contava com a maior concentração por metro quadrado de prostitutas e bandidos de todos os tipos.

A região, que nos anos 90 foi rebatizada de “cracolândia”, já não é mais a referência das atividades ilícitas na capital paulista. A prostituição e o crime organizado diluíram-se por toda cidade. Se no passado a Boca possuía até um certo glamour, com histórias fascinantes de uma marginália romântica, hoje a região perdeu esse estranho encanto. No bairro de Campos Elíseos, pomposos nomes de ruas, como Triunfo, Aurora e Vitória, não refletem o abandono em que elas se encontram. O novo Plano Diretor do município define a região como uma Zona Especial de Interesse Social 3. Quer dizer que possui infra-estrutura, mas precisa de investimentos para incentivar a moradia popular e oxigenar o seu tradicional comércio.

Porém, no que se converteu a famigerada Boca do Lixo? Em prédios antigos e deteriorados, cortiços e casas de prostituição – tanto de mulheres como, em boa medida, de travestis – convivem com intensa atividade comercial, cujo maior expoente é a Rua Santa Ifigênia. (ver pop-up)

É difícil acreditar que, na década de 70, uma pequena quadra da Rua do Triunfo abrigou um dos maiores pólos de produção cinematográfica do país. Por lá, passaram nomes atualmente consagrados e que, certamente, não põem os pés na Boca há tempos. Mas ainda podem ser encontradas personagens de um capítulo mágico do cinema brasileiro.

Representantes da época em que mais se produziram filmes no país misturam-se a homens embriagados, travestis e prostitutas. Hoje, mais fácil do que ver um garoto fumando crack é esbarrar em alguma figura do cinema nacional daqueles tempos, pelos botecos da Rua do Triunfo. Não raro, Ozualdo Candeias, Aníbal Massaini, Cláudio Portiolli, José Lopes Índio, entre outros, estão zanzando pelos Campos Elíseos atrás de algum contemporâneo para conversar.

1,2,3… gravando

Por ficar próxima às estações da Luz e Sorocabana, a Boca do Lixo se transformou em local de passagem de pessoas e produtos. Por conta da localização estratégica, muitas distribuidoras de filmes estrangeiros se firmaram na região. Já nos anos 20 e 30, empresas renomadas como a Paramount, a Fox e a Metro se instalaram por lá. Décadas mais tarde, a Rua do Triunfo se transformou em reduto do cinema: distribuidoras, fábricas de equipamentos especializados, serviços de manutenção técnica, enfim, um mar de empresas do ramo cinematográfico. Era cena comum ver homens pilotando carroças carregadas de latas de filmes pelas vias públicas.

José Mojica, o Zé do Caixão: um dos pioneiros da Boca

No final dos anos 60, o ponto de encontro de estudantes de cinema, atores e diretores era o restaurante Costa do Sol, na rua 7 de Abril. Entretanto, perceberam que poderiam travar contato direto com exibidores e distribuidoras se mudassem para a Rua do Triunfo. E assim o fizeram. O restaurante, agora, era o Soberano – que ainda existe, mas com o nome Triumpho’s. Isso quem conta é José Mojica Marins, entre um gole e outro de licor de menta. “É para molhar a garganta”, justifica o criador do Zé do Caixão, famoso personagem do terror nacional que completou 40 anos em outubro do ano passado. Mojica é categórico ao dizer que o primeiro produtor a se instalar na rua foi Oswaldo Massaini, com a Cinedistri Ltda., em 1949. Essa empresa foi responsável por grande parte da produção do cinema da Boca, e a única brasileira que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, pelo longa O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte.

Depois da transferência da trupe do cinema para a Triunfo, a rua se tornou um local “bonito demais”, lembra Mojica. “Lindo era ver o desfile dos grandes atores”. Foi assim que a Boca se tornou uma escola. Quem freqüentava a região aprendeu, sobretudo, a fazer cinema barato. Além disso, a Boca do Lixo se especializou em um novo gênero do cinema, a partir da década de 80. Com um sorriso malicioso na boca, Mojica afirma que foi o primeiro no Brasil a produzir um filme de zoofilia – sexo explícito com animais. 24 horas de sexo ardente (1985) fez tanto sucesso que ficou um ano em cartaz. Conta também que lá nasceram os famosos testes de sofá – “tinha mãe que levava filha virgem para conseguir um papel nos filmes eróticos”. Mojica montou escritório na Boca em 1966 e saiu da região no início dos anos 90, quando o então presidente da república Fernando Collor “acabou com o cinema nacional”, ao reduzir drasticamente as verbas destinadas à sétima arte.

Dos anos 60 até o final dos 80, a produção do cinema da Boca foi muito fértil. “São Paulo chegou a ultrapassar a produção carioca, com mais de 100 filmes por ano. A Boca representava uns 80% disso”, lembra o baiano José Lopes, mais conhecido como Índio. No início, as chanchadas; no auge, pornochanchadas, faroestes e cinema marginal; na decadência, porno-eróticos. De cabelos longos, como os de índios norte-americanos, José Lopes é freqüentador assíduo da Boca do Lixo. Com jeito simples e vestes modestas, adora cerveja e um bom papo. Naquela época, fez de figuração até efeitos especiais. No total, participou de cerca de 70 produções. Índio conta que no apogeu do cinema da Boca pessoas de diversas áreas investiam em filmes. “Tinha gente de tudo quanto é tipo querendo colocar dinheiro aqui. Afinal, era uma época em que o cinema dava retorno”. E continua, “com isso, criaram-se muitas produtoras pequenas que só faziam um filme”, recorda. Anônimos e figurões circulavam lado a lado pela Rua do Triunfo.

Apesar da concentração de artistas, a Boca ainda continuava uma região perigosa. Reduto também da malandragem paulistana, as ruas Vitória, Andradas, Aurora, Gusmões e Timbiras carregavam o ar de ilegalidade. Com mais de 80 anos, o diretor Ozualdo Candeias lembra que havia um pacto não oficial entre a bandidagem e o pessoal do cinema, algo automático, espontâneo. “Ninguém mexia com a gente”. Caminhonei
ro e “gigolô de prostituta pobre”, como ele próprio se define, Candeias dirigiu 15 filmes, de longas a curtas-metragens, dentre os quais A Margem (1967) – considerado o precursor do cinema marginal. Os diretores que se encaixam nessa tendência preocupavam-se em retratar excluídos e personagens do submundo, de forma experimental e barata. Como define Rogério Sganzerla por meio do protagonista do seu O bandido da luz vermelha: “quando a gente não pode fazer nada, avacalha. Avacalha e se esculhamba”.

Candeias: “aventureiros deturparam a Boca”

Irônico, Candeias diz que a Boca está desmoralizada. “Hoje não tem mais morte. O que tem é comércio de eletrônicos!”. Ele sempre passa pela Rua do Triunfo, mas jura que nunca procura se aproximar das pessoas. “Eu tenho o cheiro da Boca e a psicologia daqui”, poetiza, sentado em um bar instalado no porão de um casarão antigo e degradado. Em frente a esse mesmo boteco, outro prédio da Triunfo guarda uma personagem que sonha com o dia em que a rua se tornará um marco arquitetônico do cinema. Há 43 anos na Boca, Cariolano Rodrigues Mineiro, o Rodrigo Montana, criou a “Associação São Paulo, a Cidade e o Cinema”. Seu projeto mais ambicioso é fazer o “calçadão da Broadway Paulistana”, com estátuas, chafariz, placas com nomes importantes do cinema, museu, biblioteca, sala de exibição… Proprietário da Montana Cinematográfica, ele coleciona recortes de revistas que servem de inspiração para seu projeto. Hoje diz que está parado e disfarça quando o assunto é filme pornô. “Fiz uns dois para um amigo, mas faz tempo”, desvia a conversa. “Tive a idéia de criar a associação para ajudar as pessoas do cinema que estão paradas e passando apuros. Nós precisamos de trabalho”, relata o homem que é um dos muitos que vivenciaram a época de maior produção cinematográfica do Brasil, mas hoje já não encontram espaço no mercado. “Aqui vai ter uma casa de saúde e uma de repouso para o pessoal do cinema”, sonha bem alto.

Para quem pensava estar na Hollywood brasileira, o projeto de Montana é muito lógico. Rodrigo Pereira, jornalista e estudioso do cinema nacional, conta que assim pensavam as pessoas dali. “Porém, nada mais longe de Hollywood que a Boca do Lixo. Eles tinham a ilusão de que o cinema fosse dar resultados duradouros, como no cinema americano”, comenta. No entanto, no começo da década de 80, as pornochanchadas já não davam mais retorno e começou a onda dos filmes eróticos. “Foram os aventureiros que deturparam a Boca”, reclama Mojica. Com o declínio das pornochanchadas, grande parte dos profissionais se envolveu em produções porno-eróticas. Muitos trocavam o nome para não terem o seu trabalho atrelado a esse tipo de filme. “Só eu tive coragem de manter o nome verdadeiro nos créditos”, conta o criador do Zé do Caixão. A supervalorização do cinema da Boca por muitos de seus filhos se dá, explica Pereira, porque “para esse pessoal, relembrar é manter vivas as memórias do passado. É manter-se vivo”.

Índio: de ator a produtor de efeitos especiais

Apesar das ricas lembranças, fica enroscado na garganta de todos aqueles que viveram o cinema da Boca do Lixo o desprezo de pessoas que passaram por lá e agora negam a sua origem. “Muita gente que está na Vila Madalena (novo reduto do cinema paulista) discrimina o pessoal da Boca. Mas eles se esquecem de todos que passaram aqui. Tarcísio Meira, Xuxa, Vera Fischer, Walter Salles, Carlos Reichenbach…”, lamenta Índio. Na Triunfo de hoje, há apenas três produtoras e uma distribuidora. Restam também hotéis e botecos, prédios de prostituição, edifícios abandonados e invadidos, muita degradação e uma aparência suja e desbotada, cinza.

Nasce o submundo

A Boca do Lixo se tornou o maior reduto da prostituição paulistana a partir de 1954. Antes, “essa atividade estava confinada, principalmente, na região do Bom Retiro”, explica Maria Izilda Matos, coordenadora do Núcleo de Estudos da Mulher da PUC-SP. O confinamento não era oficial, mas um “acordo de cavalheiros”. Porém, um decreto governamental que extinguiu aquela zona fez dos Campos Elíseos – onde antes também já havia prostitutas – a referência do meretrício em São Paulo. Por ficar próxima às estações rodo e ferroviária da Luz e contar com uma rede de casas e hotéis baratos, a Boca era uma região de passagem, onde a lei de malandros e prostitutas dividia espaço com o poder dos policiais. “Naquela época, o delegado do 3° Distrito Policial (responsável pela região) era o mais famoso da cidade”, conta Percival.

Com a transferência do coração financeiro da cidade para a Avenida Paulista, os bairros centrais ficaram à míngua. Se, entre os anos 40 e meados dos 70, achavam-se boates de relativo luxo na Boca, a prostituição de homens e mulheres de baixa renda, além da invasão do crack – mais recentemente – foram apenas a confirmação de sintomas do abandono que já se verificavam anos antes.

A boca de crack

“Pareciam leprosos saindo da catacumba, embrulhados em cobertores e com aparência cadavérica”. Imagem tão impactante retrata os meninos e meninas dependentes de crack, que viviam na região da Boca do Lixo na primeira metade dos anos 90. Sônia Depieri, assistente social do Departamento de Narcóticos da Polícia Civil (DENARC), lembra emocionada que essas crianças dormiam sob caminhões estacionados na rua durante a noite. A maioria morreu vítima de overdose, acredita ela.

“A cracolândia ainda existe, mas em menor escala e bem menos explícita”, garante José Matallo Neto, delegado do 3º Distrito Policial, que cobre a região. Ainda se vêem adolescentes deitados pelo chão das ruas do entorno da Estação da Luz, mas são poucos. Vários fatores contribuíram para essa diminuição. Com o grande destaque dado pela mídia à cracolândia, a polícia intensificou a repressão à venda e ao consumo da droga. De acordo com o delegado, no início do ano passado grandes operações tentaram barrar o tráfico. Em 1999, o governo estadual investiu em pontos turísticos refinados para revitalizar a área, como a Estação Júlio Prestes e a Sala São Paulo – sede da Orquestra Sinfônica do Estado. “Limparam a
região”, alfineta Sônia.

Eliana Cruz: “algumas prostitutas têm idade para ser a nossa avó”

A Prostituição, hoje

A escada do prédio baixo na Rua dos Andradas parece não ter fim. É impossível contar o número de mulheres que ficam, uma em cada degrau, fazendo propostas indecorosas aos clientes – que só têm o trabalho de escolher a garota. Bastam R$ 10 para desfrutar da companhia de uma delas por 15 minutos em um dos cubículos, separados por divisórias de escritório. Todos são sujos e mal-iluminados. Nas paredes, pichações de batom. Esses tantos mini-quartos compõem um único apartamento. Ao longo da escada encontram-se mulheres das mais diferentes idades, com curvas mais ou menos generosas. Em comum, só a dinâmica da prostituição a que se submetem: um programa para elas, outro para o dono do apartamento. Quando a mulher só consegue um cliente por dia, não há dúvida quanto ao destino do dinheiro. Vai para o dono.

Val* (nome fictício) tem 24 anos e, mãe de dois filhos, começou a fazer programas ainda adolescente. Já trabalhou em um prédio na Rua Barão de Limeira, no mesmo esquema. Depois de dois anos “parada”, resolveu se prostituir novamente. “Se você sobrevive à primeira vez, volta a fazer sempre que precisar”, profetiza. Val é morena e tem uma barriga saliente, “que não diminui nunca” – como ela reclama – apesar da sua parca alimentação. Às vezes, fica em jejum o dia inteiro mas, quando a fome aperta, devora um hot-dog na saída. Até existe um restaurante ao lado que vende quentinhas; um funcionário percorre o Andradas anotando os pedidos. “Mas cinco reais é muito caro. Tudo o que ganho fica para os meus filhos.”

Val concluiu o ensino médio em um supletivo, fato que a diferencia da maior parte das colegas de profissão. “Algumas são até analfabetas”, afirma. Quando se analisa o mundo paralelo da rua, qualquer generalização é arriscada. Porém, a baixa escolaridade e a falta de experiência em outros trabalhos são problemas comuns entre as meretrizes da Boca do Lixo. Outra constante é a rotatividade. As que ficam na rua, principalmente, acabam perambulando pelos bairros centrais à procura de melhores pontos. “A gente tem a impressão de que a prostituição vai acabar por falta de clientes”, brinca Eliana Cruz, educadora social do Serviço à Mulher Marginalizada (SMM), uma ONG que dá orientações de todo tipo a meretrizes de baixa renda do centro de São Paulo. A mesma depressão econômica que leva à escassez dos interessados empurra um contingente cada vez maior de mulheres para essa atividade. “Há dias em que a gente chega no Parque da Luz e não reconhece ninguém”, comenta Eliana.

O circuito de prostituição da Boca do Lixo, assim como em todo centro da cidade, é abastecido por uma rede de “hotelecos” e casas, nas mais variadas combinações. Há mulheres que trabalham na rua e usam os quartos mediante um aluguel, que não passa dos R$ 10 por programa. Outras fazem um acordo com o dono do hotel e ficam, dia e noite, seduzindo os homens, na porta do estabelecimento. “Aí é mais seguro em relação à abordagem da polícia e à disputa por pontos”, explica Eliana. Há ainda aquelas que trabalham em casas, sob a supervisão de uma gerente que também faz programas. Via de regra, não existe nenhum tipo de controle violento sobre a mulher, desde que cumpra à risca as cláusulas desse contrato não verbal. “Se ela faltar dois dias, já colocam outra no lugar”, resume a educadora.

Em geral, “elas começam num lugar bom, porque são novas, bonitas. Depois vão decaindo, e chega uma hora em que acabam no Parque da Luz, na Praça da Sé”, relata Eliana. Todavia, mesmo nesses locais – em que algumas chegam a trocar seus serviços até por vale-transporte – também trabalham mulheres que, se não cobram uma fortuna, pelo menos conseguem uma média de R$ 30,00 por programa.

Bernadete : “não tem idade; tem a necessidade”

Prostituição e violência

Bernadete trabalha desde os 12 anos como cabeleireira e, quando completou 17, passou a dividir seu tempo entre os salões de beleza e a prostituição no centro de São Paulo. Sua história de vida tem um capítulo marcante. Em 2002, ela fundou o Sindicato das Meretrizes do Estado de São Paulo. Porém, a formalização da entidade vem se arrastando na justiça, até porque depende também da regulamentação do profissional do sexo.

Na década de 70, quando a Boca do Lixo era o reduto da bandidagem paulistana e manchete das páginas policiais, Bernadete passava o dia em um salão na Alameda Barão de Campinas, a uma quadra do Quadrilátero do Pecado. “Às vezes a gente atendia mulheres que faziam programas na Boca. Elas andavam com giletes entre os dedos para se proteger”, conta.

Apesar de nunca ter feito programas naquela região, hoje Bernadete anda pelas ruas da Boca oferecendo preservativos a suas “colegas”, como costuma dizer. Já viu de perto os chamados “lava-rápidos”, em que a alta velocidade da relação é inversamente proporcional ao baixo valor desembolsado pelo cliente: cinco reais para a prostituta, cinco para a dona da casa. Nesses lugares, as mulheres que fazem programas não trabalham diariamente. O lava-rápido é uma válvula de escape quando o desespero pelo dinheiro bate forte.

Bernadete também conhece a realidade dos cinemas da Rua Timbiras, onde o sexo oral sai por míseros dois reais. Quando perguntada se alguma vez já encontrou menores vendendo o corpo, responde espirituosamente: “não tem idade; tem a necessidade”.

Se na época em que a Boca do Lixo era o sinônimo de submundo existiam mulheres capazes de botar muito malandro para correr, hoje a situação é um pouco diferente. Em alguns lugares próximos à Boca, como no Parque da Luz, fica difícil detectar à primeira vista uma profissional do sexo. “Algumas estão vestidas como a nossa avó”, alerta Eliana. E algumas, realmente, já são avós. Por isso, para compreender a prostituição daquela região, é preciso abandonar preconceitos e estereótipos. “Muitas têm um cotidiano de dona-de-casa, sustentam suas famílias”, completa.

Outra idéia comum é a de que prostitutas são dependentes de algum tipo de droga. A soci&oa
cute;loga Selma Lima percorreu a Boca do Lixo e o Parque da Luz, durante três anos, para fazer sua dissertação de mestrado sobre o impacto da entrada do crack naquela área. Ao final de sua pesquisa, concluiu que é impossível generalizar a relação entre meretrizes e o consumo de entorpecentes. “Usar álcool ou qualquer tipo de droga, quando se está na rua, pode fazer parte da sociabilidade. Não é necessariamente uma dependência”, argumenta.

Também não é comum encontrar prostitutas que se dedicam ao tráfico. Quando muito, fazem o serviço de “aviãozinho”, repassando pequenas quantidades de drogas. “O tráfico existe, mas não predomina. Se a polícia aborda a prostituta e encontra droga, ela vai presa e sua vida acaba, porque tem contas para pagar no fim do mês”, explica Ilza Monteiro, assistente social do SMM.

Preconceito

Bernadete chega ao salão da Igreja Santa Ifigênia, localizada na rua de mesmo nome, com alguns sacos de roupas usadas para distribuir às suas colegas. Assim como ela, lá se encontram mulheres de meia-idade que já não conseguem competir em pé de igualdade com as mais novas. Porém, não vislumbram outro meio de sobrevivência senão a prostituição. Às terças-feiras, religiosamente, “discutimos várias questões, de acordo com a necessidade delas: prevenção; vivência na rua; violência policial”, explica Ivanete Dal Farra, coordenadora da Pastoral da Pastoral da Mulher Marginalizada, que organiza a reunião.

“A prostituta carrega um estigma muito pesado e é esta a nossa luta: fazer com que ela seja reconhecida como pessoa”, diz Ivanete. Poucas são aquelas que, como Bernadete, assumem a profissão. “Meu filho não gosta de conversar sobre o meu trabalho. Mas ele diz que sabe o quanto eu me esforcei para criá-lo”, afirma. Porém, Val – a garota do prédio da Rua dos Andradas – é casada e seu marido nem imagina o que ela faz todos os dias. E se soubesse? “Ele me bateria”. E ele teria razão? “Sim”, responde, sem titubear. Val até tentou arranjar um emprego de garçonete no restaurante de um conhecido antes de voltar a fazer programas. Não conseguiu. E, se conseguisse, o salário de R$ 300 não seria suficiente para cobrir o orçamento. Em um mês de movimento bom, no prédio da Andradas, ela tira o triplo do dinheiro que receberia como garçonete. Mesmo assim, quando Val, sem opção, decidiu retomar a vida de prostituta, passou o dia inteiro chorando. Às vezes, ela acorda no meio da noite, com crises depressivas.

São Paulo, primeiro semestre de 2004

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