Crédito continua disponível para quem utiliza trabalho escravo

Proposta contra financiamentos a pessoas e empresas que entrem na “lista suja” do trabalho escravo emperra por falta de mecanismos que deveriam ser criados pelo Ministério da Fazenda e o Banco Central
Por Leonardo Sakamoto
 01/06/2004
Trabalhador libertado da escravidão no sul do Pará

Um ano depois do lançamento do Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo pelo próprio presidente Lula, o Ministério da Fazenda e o Banco Central ainda não colocaram em prática a proposta de levantar restrições ao crédito às pessoas e empresas que utilizam mão-de-obra escrava.

A proposta número 9 do plano, que possui 76 medidas para erradicação dessa prática, prevê a inserção de “cláusulas contratuais impeditivas para a obtenção e manutenção de crédito rural e de incentivos fiscais nos contratos das agências de financiamento, quando comprovada a existência de trabalho escravo ou degradante”. Segundo o plano, essa ação deveria ser aplicada no “curto prazo”, e os responsáveis seriam as duas instituições.

O Ministério da Fazenda informou que está estudando junto com o Banco Central mecanismos para suspender todas as formas de crédito rural nas instituições bancárias. Enquanto isso, bancos federais não estão impedidos de conceder crédito agrícola a pessoas e empresários relacionados na “lista suja” do trabalho escravo. Essa relação, organizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego e emitida em 10 de novembro de 2003, trouxe a público 52 empresas e indivíduos com condenação definitiva na esfera administrativa. O objetivo do governo federal era transformá-la em um importante instrumento de combate ao trabalho escravo ao proibir o financiamento público, repasses de fundos constitucionais e benefícios fiscais a quem comprovadamente cometeu esse crime. O governo promete atualizar a “lista suja” a cada seis meses. A próxima deve sair em maio.

O Banco do Brasil, maior financiador da produção agrícola no país, suspendeu somente os novos créditos do Fundo Constitucional de Financiamento no Centro-Oeste (FCO), administrado pela instituição, obedecendo a portaria do Ministério da Integração Nacional. Porém, nada foi feito com relação a outras modalidades de crédito. “O Banco do Brasil está acompanhando definições que orientem a participação dos bancos nesse caso”, explica a instituição. O BB fornece crédito rural em 4.488 municípios do país, a maior abrangência entre todas as instituições que operam esse tipo de empréstimo – de acordo com anuário estatístico divulgado pelo Banco Central relativo ao ano de 2001.

A assessoria de comunicação da Caixa Econômica Federal informa que o banco espera uma orientação para realizar uma mudança na política de concessão de crédito. A assessoria lembrou que o banco, desde o ano passado, está operando a concessão de seguro-desemprego para trabalhadores libertados da escravidão.

No caso dos dois bancos federais, essa “orientação” viria do governo federal.

Técnicos do Ministério da Fazenda informaram que a instituição tomou a iniciativa e está discutindo junto com o Banco Central a melhor maneira de criar mecanismos para suspender todas as formas de crédito rural para os produtores que estão na “lista suja” do trabalho escravo. De acordo com esses técnicos, como isso envolveria eventuais processos judiciais, os instrumentos para isso ainda estão em estudo. Nos próximos dias, haverá uma reunião entre o Ministério da Fazenda e o Banco Central para tratar do assunto. Acreditam que, em breve, esses mecanismos serão divulgados e entrarão em ação.

Um exemplo de como isso pode ser feito: a expedição de uma portaria com uma recomendação de limitação de crédito. Foi esse o procedimento adotado pelo Ministério da Integração Nacional junto aos administradores dos Fundos Constitucionais de Financiamento no ano passado.

Fundos Constitucionais

A portaria nº 1150, de 18 de novembro de 2003 do MIN, determinou que o Departamento de Gestão dos Fundos de Desenvolvimento Regional encaminhasse a “lista suja” semestralmente aos bancos administradores dos Fundos Constitucionais de Financiamento. E recomendava que os agentes financeiros “se abstenham de conceder financiamentos” às pessoas físicas e jurídicas que integrem a relação.

Mantidos com 3% da arrecadação dos impostos de Renda e sobre Produtos Industrializados (IPI), os fundos constitucionais do Nordeste, Norte e Centro-Oeste alcançaram R$ 3,015 bilhões em recursos aplicados no ano passado. Informações divulgadas pelo Ministério da Integração Nacional (MIN) mostram que a previsão, para este ano, é disponibilizar R$ 6,697 bilhões, dos quais R$ 1,403 bilhão para o Centro-Oeste, R$ 787 milhões para o Norte e R$ 4,5 bilhões para o Nordeste.

Na região Norte, a administração do fundo cabe ao Banco da Amazônia (Basa) e, no Nordeste, ao Banco do Nordeste do Brasil (BNB), sendo que ambos também vêm cumprindo a recomendação do ministério. “Para nós, é uma questão de princípios não financiar quem pratica trabalho escravo, trabalho infantil e degradação ambiental”, afirma Milton Cordeiro, diretor de Crédito do Basa. Os financiamentos aprovados antes da portaria deverão ser liberados, mas pessoas e empresas que estão na lista e tentaram obter novos empréstimos saíram de mãos vazias. “Há clientes que nos procuram querendo saber como sair da lista, regularizar a sua situação perante o governo e até participar da campanha de erradicação do trabalho escravo”, diz Luiz Paulo Alvarez, representante do Basa na Câmara de Fiscalização e Promoção do Trabalho Rural no Pará.

Assis Arruda, diretor de Negócios e Gestão do BNB, informou que a proibição de concessão de créditos a quem utilizou trabalho escravo também se aplica à instituição. “Está na norma do banco”, afirma.

Para verificar o cumprimento dessas medidas, o diretor do Departamento de Gestão dos Fundos de Desenvolvimento Regional do Ministério da Integração Nacional, Luiz Rabi, informou à Agência Carta Maior que o MIN vai preparar um ofício para a Controladoria Geral da União (CGU) a fim de solicitar a verificação do cumprimento da recomendação da portaria nº 1150 no Banco do Brasil, Basa e BNB. O documento deve ser preparado ainda essa semana e segue para a assinatura do ministro Ciro Gomes. Esse processo é necessário, uma vez que a CGU tem poder de pedir a quebra do sigilo bancário das instituiç&oti
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Mas os fundos constitucionais não são a única maneira de se obter crédito agrícola – os bancos possuem outras modalidades de empréstimos. Tanto o Banco do Brasil quanto a Caixa Econômica Federal possuem linhas de crédito para a produção agropecuária – nelas ainda não foram levantadas restrições aos fazendeiros da “lista suja”.

Enquanto isso, o Basa e o BNB já alteraram sua política de crédito. “No nosso caso, isso vale para todos os créditos e não apenas do fundo constitucional. Qualquer modalidade de crédito”, afirma Milton Cordeiro, do Banco da Amazônia. Questionado sobre a possibilidade de os clientes migrarem para outros bancos que concedam crédito, ele garante que a política de restrições será mantida.

Mas para evitar a migração de clientes por conta de uma cláusula social, o ideal seria que fosse feita uma recomendação a todas as instituições financeiras, públicas e privadas, para o levantamento da restrição de crédito a quem utiliza trabalho escravo no país com base na “lista suja” do governo.

Primeiro semestre de 2004

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