Reforma Agrária não avança com Lula, adverte relatório internacional

Campanha Global pela Reforma Agrária aponta violência e trabalho escravo como resultados da lenta criação de assentamentos e vê parcialidade na Justiça
Por Nelson Breve/Agência Carta Maior
 10/06/2004

Preocupação e esperança. A conjugação dos dois sentimentos reflete o espírito com que a Missão Internacional de Investigação da Campanha Global pela Reforma Agrária concluiu o levantamento da situação fundiária brasileira. O grupo de missionários ligados a duas organizações internacionais que lutam pelo respeito aos direitos humanos e justiça social no campo – Organização Internacional de Direitos Humanos pelo Direito à Alimentação (FIAN), com sede em Heidelberg, Alemanha, e Via Campesina, coalizão global de organizações camponesas, com sede em Tegucigalpa, Honduras – visitou, na última semana, assentamentos e acampamentos de trabalhadores rurais sem terra para dar sustentação ao relatório sobre a Reforma Agrária no Brasil. O documento será apresentado oficialmente em setembro ou outubro ao governo brasileiro e a organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a Organização para a Alimentação e Agricultura da ONU (FAO), o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a União Européia.

A preocupação se deve à constatação de que a Reforma Agrária avança muito lentamente no País. Por várias razões de responsabilidade dos três Poderes da República: graves problemas de operacionalidade do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), legislação insuficiente para dar agilidade aos processos de desapropriação e parcialidade do Judiciário nas decisões envolvendo conflitos de terra. “Não avançar com a Reforma Agrária é particularmente grave porque retarda o combate às causas estruturais do trabalho escravo”, advertiu Hendra Herap, representante da Federação de Sindicatos Camponeses da Indonésia, que conversou com vítimas do trabalho escravo na região de Marabá (PA) – onde a Missão verificou que as perspectivas de lucro proporcionadas pela venda ilegal de madeira, exportação de carne e de monoculturas, como a soja, o algodão e a cana de açúcar, são o motor da expansão violenta da fronteira agrícola, que transgride direitos humanos, causa destruição irreparável ao meio ambiente e concentra ainda mais a posse da terra.

A manutenção da esperança é porque o governo Lula, no exterior, é identificado como progressista, comprometido com uma ordem mundial mais justa e com o respeito aos direitos humanos. “Há uma grande expectativa internacional em relação ao atual governo, que tem compromisso com a mudança para um mundo mais justo, um mundo diferente”, observou a coordenadora da Campanha pela Reforma Agrária do Secretariado Internacional da FIAN, Sofia Monsalve Suárez. Por causa dessa imagem, ela lamenta que a Reforma Agrária não esteja avançando como se esperava, e considera importante mostrar à opinião pública mundial que o governo não está cumprindo suas próprias metas de assentar 115 mil famílias neste ano. O grupo esteve na terça-feira (8) com o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, que fez um belo discurso mas não indicou caminhos para resolver os problemas. Até maio, só 17 mil famílias haviam sido assentadas. “E não dá para falar que o problema é falta de dinheiro”, comentou Gilberto Portes, do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo. No Sul do Pará, por exemplo, existem 12 mil famílias acampadas. A meta oficial para este ano é de assentar 8.500, mas até agora não houve um assentamento sequer.

Em Pernambuco, onde atualmente estão acampadas 40 mil famílias, a situação é idêntica, segundo organizações camponesas ouvidas pelos missionários. Com a agravante de que os índices de desenvolvimento humano da região estão entre os piores do mundo. A Missão visitou dois acampamentos emblemáticos na Zona da Mata Nordestina: Engenho Prado e Usina Aliança. No primeiro, o processo de desapropriação de uma área de 800 hectares, onde funcionavam cinco engenhos do Grupo João Santos, se arrasta há mais de 15 anos. Em 1997, 280 famílias foram assentadas e passaram a produzir e vender o excedente nas feiras locais. Mas o título de posse ficou embargado por uma ação judicial dos proprietários contestando o laudo de vistoria que atestou a improdutividade.

No ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou a desapropriação e a Justiça estadual concedeu a reintegração de posse. As famílias foram retiradas, a lavoura e as casas construídas foram derrubadas por tratores. Era uma vez um assentamento tido como modelo para combater a fome por meio da Reforma Agrária. Agora, todos estão acampados na beira da estrada, aguardando o resultado de um recurso da Advocacia Geral da União (AGU) ou a transferência para outro assentamento. Na Usina Aliança, 600 famílias estão sofrendo atos de violência. No ano passado, dois trabalhadores foram assassinados. As famílias seguem sem condições mínimas para se alimentarem, segundo o relatório da Missão. A falta do título das terras impede que tenham acesso ao crédito, às sementes e outros recursos produtivos. A situação precária das famílias em ambos os casos se intensifica ainda mais por causa da irregularidade com que recebem cestas básicas do Programa Fome Zero. “A principal causa das violações de direitos humanos é a falta de acesso à terra e aos recursos produtivos”, aponta Sofia Monsalve.

E um dos principais fatores que estariam obstruindo a Reforma Agrária, de acordo com a investigação dos missionários, é a falta de sensibilidade da Justiça para o cumprimento da função social da terra. O excesso de recursos protelatórios nos processos de desapropriação e decisões parciais motivadas pelos “vínculos estreitos” do Poder Judiciário com as elites locais. Por causa disso, o grupo solicitou audiência com o presidente do STF, Nelson Jobim. Os missionários foram recebidos por ele quarta-feira (9) junto com representantes de movimentos camponeses brasileiros – tendo à frente o presidente da Comissão Pastoral da terra (CPT), Dom Tomás Balduíno. Foi a maior autoridade do governo brasileiro com quem conseguiram conversar.

O caso do Engenho Prado foi abordado como exemplo de falta de sensibilidade do Judiciário, que não estaria observando a função social da terra ao conceder liminares em favor dos proprietários. “35 mil famílias foram despejadas no ano passado”, observou Dom Tomás. O ministro disse que os magistrados não podem usar a subjetividade para interpretar a lei. Aproveitando um comentário do bispo sobre a Reserva Indígena Raposa Serra Sol, Jobim lembrou que muita gente defende a demarcação em terras contínuas, mesmo sabendo que existe na regi&a
tilde;o atingida uma cidade com 13.800 habitantes, cujas famílias estão lá há quase 60 anos, que podem ser despejados de uma hora para outra. “E a função social da terra, como fica?”, questionou o presidente do STF, ouvindo o silêncio como resposta.

Jobim acabou desviando o foco dos problemas para os outros Poderes. Observou que muitos processos de desapropriação que deságuam no Supremo acabam anulados por vício de origem, como ausência de notificações oficiais do Incra aos proprietários ou notificação realizada no mesmo dia da vistoria, o que está em desacordo com a lei. O ministro concordou que existe uma falha no sistema que estende por anos o processo entre a desapropriação e a posse definitiva das terras, causando constrangimentos enormes, como o de Engenho Prado, por conta de procedimentos irregulares. Ele sustentou, no entanto, que cabe ao Congresso corrigir as imperfeições da lei. Mas recomendou que a discussão seja conduzida “mais com a razão do que com a emoção”.

A impunidade dos crimes contra os direitos humanos também foi abordada na reunião. Jobim disse estar otimista em relação à aprovação em breve da emenda constitucional que federaliza esse tipo de crime, retirando a competência da Justiça estadual.

Essa é uma das recomendações que estarão contidas no relatório da Missão. A outra é o cumprimento das metas do Plano Nacional de Reforma Agrária. Outras providências são enfatizadas como importantes: reestruturação do Incra, desburocratização dos processos de vistoria, fortalecimento da Polícia Federal, medidas legais para erradicação do trabalho escravo, como a aprovação da emenda constitucional que torna passíveis de desapropriação as terras onde seja constatada essa atividade ilegal e desumana.

A mudança na política agrária, hoje voltada para o agronegócio, é considerada essencial para o desenvolvimento humano e econômico do País. O relatório preliminar considera que “o modelo agrícola voltado ao agronegócio não prioriza a alimentação nem o combate à pobreza, torna a terra e os trabalhadores reféns do mercado e inviabiliza um projeto de agricultura familiar sustentável voltada a produção de alimentos para os brasileiros”. Dom Tomás Balduíno lembrou que o Relatório de Conflitos no Campo de 2003 contém um estudo mostrando que os países com mais áreas de conflitos são os que tiveram avanço veloz do agronegócio.

O grande objetivo do relatório, segundo Sofia Monsalve, é causar constrangimento internacional para o governo brasileiro, pressionando-o a acelerar a Reforma Agrária no País. “O governo não tem só compromissos financeiros com o FMI. Tem também com organismos internacionais de defesa dos direitos humanos”, registrou Dom Tomás, com esperança de que a visita da Missão tenha repercussão eficaz junto às instituições governamentais. É bom que as autoridades brasileiras fiquem de olhos abertos, pois o relatório poderá atrapalhar negociações comerciais de blocos intercontinentais. Uma cópia será remetida às autoridades da União Européia que negociam o acordo comercial com o Mercosul. “Não só obrigação do Brasil, cuidar dos conflitos no campo, mas da União Européia também. Não é possível um tratado que desconsidere a violação dos direitos humanos. Nem para o Brasil nem para a EU”, adverte Sofia.

Esse tipo de tática pode reforçar o preconceito de algumas autoridades brasileiras em relação ao comportamento de organizações não governamentais internacionais em relação às políticas públicas brasileiras. Durante a viagem do presidente Lula à China, o ministro Roberto Rodrigues (Agricultura) insinuou que essas entidades e a imprensa internacional estariam favorecendo os concorrentes de produtos brasileiros ao jogar a opinião pública mundial contra o agronegócio nacional. Sofia garante que a intenção da Missão não é essa. Ele lembrou que sua entidade já fez investigações e denúncias semelhantes em outros países, como o Equador e até mesmo a Espanha. “Não é que nós estamos favorecendo os concorrentes brasileiros. Trabalhamos em concordância com os pactos internacionais, para que sejam cumpridos aqui ou em qualquer lugar do mundo”.

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