São Paulo discute nova escravidão

“Era como Xuxa dizendo que viu um duende.” Foi assim que Marinalva Dantas, coordenadora de um dos grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), descreveu a descrença das pessoas perante a constatação da existência de trabalho escravo no início das atividades dessas equipes em 1995. Longe das fazendas em que costuma passar grande parte de seu tempo, libertando trabalhadores, ela falou a uma platéia de jornalistas e movimentos sociais que participou, no último dia 26 de maio, do seminário “A Nova Escravidão no Brasil”. combate às novas formas de escravidão na capital paulista.
Por Maurício Monteiro Filho
 04/06/2004

“Era como Xuxa dizendo que viu um duende.” Foi assim que Marinalva Dantas, coordenadora de um dos grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), descreveu a descrença das pessoas perante a constatação da existência de trabalho escravo no início das atividades dessas equipes em 1995. Longe das fazendas em que costuma passar grande parte de seu tempo, libertando trabalhadores, ela falou a uma platéia de jornalistas e movimentos sociais que participou, no último dia 26 de maio, do seminário “A Nova Escravidão no Brasil”. O evento, uma parceria entre a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a ONG Repórter Brasil, reuniu representantes de setores envolvidos no combate às novas formas de escravidão na capital paulista. O seminário também foi palco do lançamento do Guia para Jornalistas, da Campanha Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, que pode ser adquirido gratuitamente no site www.reporterbrasil.org.br.

Já na época em que Marinalva começou seu trabalho, a escravidão estava longe de ocupar o terreno das fábulas. Apesar de não estarem presentes nas manchetes de jornais ou nas preocupações das políticas públicas, aqueles “duendes” – dolorosamente reais – amontoavam-se aos milhares em barracões precários, de chão batido, cobertos pela lona preta que parece ter se tornado símbolo dos excluídos do país. Hoje, não é mais necessário convencer ninguém de que o trabalho escravo existe – o próprio governo brasileiro o assumiu diante da Organização das Nações Unidas, em março deste ano, que há, pelo menos, 25 mil trabalhadores privados de liberdade.

O seminário discutiu a distinção entre a escravidão que hoje se pratica daquela que foi legalmente extinta pela Lei Áurea. A forma contemporânea baseia-se, na maioria dos casos, na chamada escravidão por dívida – os trabalhadores são aliciados em seus estados de origem (Maranhão, Piauí e Tocantins têm sido grandes fornecedores de escravos) – pelos chamados “gatos” (contratadores de mão-de-obra que fazem a ponte entre o fazendeiro e o peão). De lá, partem para as fazendas de gado do Pará, às lavouras de soja e algodão do Mato Grosso ou às carvoarias do Maranhão. Já ao sair de casa, ficam endividados com o gato por conta do transporte ao local de trabalho. O valor vai aumentando, uma vez que o trabalhador terá que pagar também pelos equipamentos, por alimentos de péssima qualidade e pela lona das barracas – tudo adquirido do gato ou da própria fazenda a preços acima dos normais. Ao fim do serviço, que pode durar meses, segundo a alegação do gato, ele deve mais do que o montante a que teria direito receber. Assim, pela força ou pela retenção de documentos, ele permanece na fazenda até saldar a dívida, o que dificilmente acontece.

Segundo Patrícia Audi, coordenadora nacional do Projeto de Combate ao Trabalho Escravo da OIT, a impunidade privilegia os empregadores criminosos. Apesar do crescimento das libertações de trabalhadores – em 1995, foram 84 e no ano passado, 4932 – raríssimos são os casos de condenação penal.

Mas o trabalho escravo não está restrito à região de fronteira agrícola amazônica. Como lembrou Sidney Silva, representante da Pastoral do Migrante Latino-Americano, centenas de bolivianos estão presos a dívidas nas tecelagens de bairros paulistanos, como o Brás e o Pari, e vivendo em situação degradante, escravizados por imigrantes coreanos e pelos próprios compatriotas. A solução deste problema passa por mudanças na lei de imigração, pois uma vez libertados, esses trabalhadores são expulsos do país.

Outro ponto discutido foi o fortalecimento da legislação sobre o tema, como a necessidade de aprovação da proposta de emenda constitucional que prevê o confisco das terras em que forem encontrados trabalhadores escravizados. Tanto essa lei como outras iniciativas federais esbarram na força da bancada ruralista. Com a propaganda cada vez mais instituída de que o agronegócio é a saída para o Brasil, o campo tornou-se território livre para violações ao meio-ambiente e aos direitos humanos. E isso distancia drasticamente o país da solução apontada no seminário por Ela Wiecko de Castilho, recém-empossada procuradora federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, como a única para o fim do trabalho escravo no Brasil. “O problema só acabará com a reforma agrária, com limitação do latifúndio, mesmo produtivo.”

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