Justiça Comunitária

Para levar a Justiça às populações mais carentes, projetos têm sido implantados em todo o Brasil. O princípio é estimular a comunidade a buscar os melhores caminhos para resolver os seus conflitos através do diálogo, conduzido por “agentes de cidadania”
Por Leonardo Sakamoto
 10/07/2004
Teonília de Jesus em seu salão de beleza no DF – solução consensual

Apesar de o acesso universal à Justiça estar garantido na Constituição, na prática grande parte dos brasileiros não recorre ao Poder Judiciário para a solução de um problema. Isso acontece porque há um descrédito da instituição com relação à sua capacidade de dar uma solução satisfatória e rápida à demanda da população ou porque a interface entre ela e a sociedade é considerada muito complicada para os leigos. O povo acaba enterrando para baixo do tapete o problema junto com sua cidadania ou, em casos extremos, tenta resolvê-lo por conta própria, utilizando-se até de violência. Dessa forma, passa-se a imagem de que o direito à Justiça institucional está restrito às parcelas mais ricas da população – da mesma forma que a impressão se manifesta também no direito à saúde, à educação, à habitação, à qualidade de vida.

Além disso, quando o Estado é ausente em uma área, abre-se espaço para outros atores preencherem o vazio deixado. Em locais da periferia da cidade de São Paulo ou das favelas e subúrbios cariocas, organizações criminosas como o Comando Vermelho se autoproclamaram juízes das comunidades e resolvem conflitos – é claro, tudo regido por um código de ética do traficante, seqüestrador ou ladrão.

Para tentar mudar esse quadro, projetos de justiça comunitária têm sido implantados em todo o Brasil, com bons resultados, por ONGs (organizações não-governamentais), instituições de ensino e Tribunais de Justiça, entre outros. Muitos têm o apoio financeiro da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), órgão com status de ministério ligado à Presidência da República.

A idéia principal é simples: estimular a comunidade a buscar os melhores caminhos para resolver os seus conflitos através do diálogo, conduzido por “agentes de cidadania” – normalmente líderes da região e moradores respeitados ou engajados em projetos sociais e previamente formados para exercer esse papel. O trabalho deles é parecido com o dos agentes de saúde, atuando tanto no campo da prevenção – com um serviço de orientação jurídica para conscientizar a população de seus direitos e deveres – quanto na solução de conflitos. Os mediadores não proferem sentenças ou dizem quem está certo ou errado. O objetivo não é reproduzir uma situação de julgamento e sim proporcionar um espaço para que os lados envolvidos encontrem por si mesmos um acordo mutuamente aceitável, através de perguntas, pedidos de explicação e muita conversa.

Em Salvador (BA), a organização não-governamental Juspopuli é responsável por quatro escritórios de mediação em Calabar, Engenho Velho da Federação, Fazenda Grande do Retiro e Palestina, comunidades carentes da cidade, com 1757 atendimentos em 2003. “Alguns bairros não tinham acesso à Justiça ou mesmo a qualquer outro tipo de serviço estatal”, lembra Vera Leonelli, coordenadora do projeto. Ela também é responsável por 14 unidades do Balcão de Justiça e Cidadania, que oferece mediação popular, implantado pelo Tribunal de Justiça do estado em parceria com as Faculdades Jorge Amado.

No Rio Grande do Sul, há a atuação das Promotoras Legais Populares – projeto precursor no campo da mediação popular. A organização Viva Rio, nas comunidades pobres do Rio de Janeiro, o Centro Popular de Mediação, em Olinda, Pernambuco, e o Tribunal de Justiça do Acre também desenvolvem projetos nesse sentido.

Outro trabalho que vem colhendo bons frutos é o “Projeto Justiça Comunitária”, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF), em convênio com a SEDH, e em parceria com órgãos como o Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil. De acordo com Marcelo Girade Corrêa, secretário executivo do projeto, foram atendidos cerca de 900 casos, além de mais de 4 mil pedidos de orientação, desde o início de seu funcionamento em 2001. Há escritórios nas cidades-satélites de Ceilândia e Taguatinga.

Agentes de Cidadania e coordenadores do Projeto Justiça Comunitária, em Taguatinga (DF)

Clientes da Justiça

Durante cinco meses, a família de uma freguesa utilizou os serviços do pequeno salão de beleza de Teonília de Jesus, em Taguatinga (DF), mas pendurava a conta. Em pequenos negócios espalhados em regiões mais carentes, a prática de vender fiado é fundamental para a sobrevivência – uma vez que o salário dos trabalhadores nunca dura um mês. A desculpa para o não pagamento da dívida – que já somava mais de R$ 800,00 – era sempre a mesma, que o marido não tinha dinheiro. Cansada e sem muitas perspectivas de receber, a cabeleireira procurou o serviço de mediação do escritório de sua cidade e apresentou o caso. Um agente de cidadania entrou em contato com a freguesa, explicou como funcionava a mediação e marcou-se uma data para a reunião entre as duas partes.

Chegou-se, por fim, a um consenso: como a devedora não tinha como dispor de todo o valor à vista, a conta foi parcelada em 25 vezes de R$ 51,00 – já aplicada uma tabela de correção de valor. “Desde então, ela tem pagado todo dia 12 e já usou o salão novamente. Mas, agora, paga à vista.” A relação entre as duas é considerada boa pela cabeleireira.

Pode parecer pequeno para quem vê de fora, mas isso faz grande diferença em uma comunidade. Não só pelos valores financeiros envolvidos, mas porque, em muitos casos, as partes de um conflito são vizinhos, moram próximos um do outro e, por isso, vão se encontrar no dia-a-dia.

Teonília gostou tanto dos serviços de mediação que já os utilizou mais duas vezes. Em uma dela, um caso semelhante ao primeiro – com uma cliente devendo mais de R$ 1 mil. No outro, seu ex-marido não estava pagando a ajuda financeira para o filho, de 11 anos. “Eu falava com ele, mas ficava na promessa.” Com a intermediação do escritório, foi feito um acordo para o repasse de R$ 42,00 por mês. Isso já faz um ano e ele tem cumprido o combinado.

Os es
critórios de mediação do Distrito Federal atendem casos de direito da família (principalmente pagamento de pensão e guarda dos filhos), direito do consumidor, problemas com moradia e orientação previdenciária. Os casos que não englobam a esfera criminal podem ser resolvidos através da mediação – os escritórios apenas orientam e encaminham nas outras situações. Quando há descumprimento dos acordos, o agente de cidadania indica o procedimento jurídico que deve ser adotado e encaminha o caso à Defensoria Pública.

Apesar de haver usuários desses serviços com nível superior e instrução e boa renda, os clientes mais usuais são os que mais freqüentemente vêem seus direitos serem desrespeitados. Por exemplo, em Taguatinga, 80,9% dos casos foram trazidos por mulheres enquanto que nos escritórios da Juspopulis esse número é de 74,6%. E quase 35% dos solicitantes da mediação na cidade-satélite do DF tem renda individual mensal de até dois salários mínimos, sendo que 24,3% declararam não ter renda nenhuma. No projeto de Salvador, os números são de 33,5% e 54,5%, respectivamente.

Agentes de cidadania

A fase mais importante de um projeto de mediação é a seleção e formação dos agentes de cidadania, que vão realizar os serviços de mediação, prestar esclarecimentos e orientar à população. No Distrito Federal, eles foram recrutados nas comunidades, através de divulgação em locais públicos, como escolas, hospitais, associações de bairros e igrejas. Os requisitos básicos: ter no mínimo 18 anos, o ensino fundamental completo e ser atuante e conhecer a sua comunidade.

O interesse em participar é grande, tanto que, neste ano, quando foram abertas quatro novas vagas para o atendimento em Ceilândia, 106 pessoas se inscreveram para a seleção, que vai da análise de currículo à pesquisa na própria comunidade sobre a atuação prévia do candidato.

A capacitação dos agentes das duas cidades-satélites – realizada por profissionais do Tribunal de Justiça de forma voluntária – inicia-se com cursos de sensibilização nas áreas do direito onde há atendimento. Mas a formação é continuada e multidisciplinar, respondendo assim às demandas que vão surgindo com o acúmulo de experiência dos projetos. Eles ainda contam com o apoio de assessores jurídicos que acompanham os casos. No Distrito Federal, funcionários do Tribunal de Justiça prestam esse serviço; na Juspopulis, consultores da organização e estudantes de cursos de direito, principalmente da Universidade Federal da Bahia.

Vale aqui uma comparação com outros projetos que levam atendimento jurídico a comunidades carentes. Há os que utilizam estagiários, advogados e outros profissionais da área de direito ao invés de membros treinados da população. A tendência, nesses casos, é que não eles não atuem em facilitar o caminho do diálogo entre as partes – como na mediação – mas que indiquem um caminho para que seja construído um acordo – o que é chamado de conciliação. Com um operador do direito na posição de intermediário, acaba-se seguindo uma lógica mais próxima do que acontece no poder Judiciário, ao invés de se construir uma solução a partir da concordância das partes.

Equipe do Projeto Justiça Comunitária do Distrito Federal, tendo Marcelo Girade ao centro

Tanto nos escritórios da Juspopulis quanto nos das Faculdades Jorge Amado a forma mais adotada é a da mediação, pois tende a favorecer a democracia. Quando as partes conseguem por si mesmas construir um consenso sobre a questão, são maiores as chances de que o acordo seja cumprido. Afinal de contas, ele foi alcançado através do diálogo e da possibilidade de todos colocarem sobre a mesa os seus pontos de vista. Na experiência de Taguatinga, em 90% dos casos, chega-se a uma solução. De acordo com Marcelo Girade, os acordos desenvolvidos nos escritórios de mediação do Distrito Federal são encaminhados para o Judiciário para que sejam referendados e passem a ter validade legal. Porém, em muitos casos, isso não nem é necessário, com o respeito mútuo pela decisão acertado em um acordo verbal.

Democracia que também se reflete pela facilidade com que as partes se expressam entre si e com o mediador, sem que seja preciso que qualquer um deles domine os instrumentos jurídicos. “Moro em um lugar carente. E falo com meus vizinhos a linguagem deles”, lembra Luzia Lopes de Araújo, agente de cidadania em Taguatinga. Além de falarem a mesma língua, os mediadores vivem e entendem a realidade das pessoas que procuram o serviço. “O líder da comunidade que está trabalhando com a disputa de pensão sabe o que R$ 30,00 significa na vida daquelas pessoas”, afirma Vera Leonelli.

Os projetos de mediação popular sofrem críticas, é claro. As mais ouvidas dizem a respeito a uma possível “banalização do direito” ou que essas iniciativas criam direito e poder paralelos, desprezando os códigos e a jurisprudência. Girade, discorda, e diz que, no caso do DF, o projeto só nasceu porque o magistrado estava atuando na comunidade. E por causa desse contato com a população é que foram pensados instrumentos jurídicos para melhorar o acesso à Justiça. “O Estado continua lá. Não é a substituição do seu papel, mas sua transformação. Aumenta-se, dessa forma, o alcance do cidadão ao Estado.” Vale lembrar que muitos projetos são administrados por Tribunais de Justiça, como no DF, Acre e Bahia.

Resolver os pequenos conflitos, que não envolvem crimes, pode ajudar o poder Judiciário, evitando um aumento ainda maior na longa fila de processos a serem apreciados e julgados. Ao mesmo tempo, isso pode criar na população um sentimento de que os problemas podem ser resolvidos e, o melhor, através do diálogo. “Isso constrói uma cidadania mais forte, mais efetiva”, explica Vera. “Não apenas de fórmulas objetivas à solução de conflitos, mas instrumentaliza a comunidade para o pleno exercício da cidadania.”

O trabalho de conscientização e orientação contribui para impedir o aparecimento dos conflitos. “Um dos grandes resultados é mudar a imagem da Justiça, mostrando como a população pode utilizá-la e como se prevenir para não precisar nem usá-la”, diz Girade.

Hélio Bicudo, vice-prefeito do município de São Paulo e presidente da Comissão Municipal de Direitos Humanos
defende uma mudança radical na visão no comportamento do Judiciário. Lembra que o Estado não participa da vida e do cotidiano da população e defende a presença física da Justiça dentro das comunidades carentes. “Por que alguém tem que sair de Parelheiros [bairro afastado do centro da cidade] para vir ao fórum da Barra Funda? O juiz tem que morar lá, na favela. Há alguns anos, nas cidades pequenas do interior, o juiz conhecia as pessoas, sabia muito bem o que estava acontecendo na cidade. A justiça era feita com muito mais eficácia do que é hoje.” Esse quadro ideal, com a aproximação física e de relacionamento do Judiciário com as comunidades carentes, viria a reforçar o papel do mediador na solução de conflitos simples.

Nova profissão?

Os agentes de cidadania recebem uma ajuda de custo dos projetos cujo valor varia de acordo com o lugar. No Distrito Federal, o valor é de um salário mínimo por mês, exigindo-se uma dedicação mínima de quatro horas diárias. O dinheiro é utilizado para gastos com deslocamento (os agentes fazem visitas às partes do conflito), telefone e alimentação. Os escritórios chegaram a ter 30 mediadores em Ceilândia e 25 em Taguatinga, mas hoje possuem 18 e 16 (dos quais, 14 são mulheres) respectivamente. De acordo com Girade, houve interrupção no repasse da verba do convênio com a SEDH em 2003, pois o projeto estaria sendo reavaliado. A Secretaria é responsável por essa ajuda de custo dos agentes, enquanto o TJDF cuida do restante, da infra-estrutura ao material de divulgação. Por causa da suspensão nos repasses, o atendimento em Ceilândia chegou a ser interrompido. Segundo ele, até 2004, os gastos do tribunal foram de R$ 1,4 milhão. Entre 2001 e 2003, a SEDH diz informa desembolsou R$ 261,73 mil com este projeto.

“Para mim, esse dinheiro é fundamental, pois não posso pagar os ônibus que tenho que tomar ao fazer os atendimentos”, revela Gilvete Borges, agente do escritório de Taguatinga. Lá, para que o trabalho não fosse interrompidos, como em Ceilândia, muitos utilizaram recursos do próprio bolso.

Segundo Rachel Cunha, assessora especial da SEDH, a interrupção no repasse dos recursos é um problema que sempre ocorre por conta da renovação anual dos convênios. Ela lembra, porém, que a idéia é a secretaria apenas contribuir inicialmente para a implantação e consolidação das atividades e, depois, o parceiro buscar formas de apoio visando à auto-sustentação. Porém, muitas vezes, os parceiros sejam eles governamentais ou não governamentais, não têm condições de dar continuidade ao projeto na sua plenitude, sem a SEDH. De acordo com Rachel, o apoio e a previsão de recursos à mediação popular estão incluídos no Plano Plurianual (PPA) 2004-2007, que estabelece metas para os investimentos governamentais no período.

Agentes de Cidadania de Taguatinga (DF)

Infelizmente, os recursos destinados à área de Direitos Humanos do governo federal são insuficientes se comparados à quantidade de ações desenvolvidas e planejadas. Vale lembrar que a mesma secretaria cuida ainda de combate à tortura, defesa dos direitos dos portadores de deficiência física, do combate ao trabalho escravo, ao preconceito racial e de gêneros, entre outras áreas com muito a se fazer no país.

No projeto da Juspopulis, são 16 mediadores atuando em quatro comunidades, recebendo uma ajuda de custo que varia de acordo com o tempo que cada um pode se dedicar. O projeto tem financiamento da SEDH e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). De acordo com Vera, um dos maiores desafios é prover uma remuneração fixa aos agentes de cidadania. “Talvez até a criação de uma categoria como os agentes de saúde, cujo trabalho é muito parecido.”

Rachel Cunha informou que um dos objetivos, para 2004, é de “interiorizar os projetos dos Balcões de Direitos, em muitos dos quais se insere a mediação, para atender populações indígenas, quilombolas, assentamentos rurais e trabalhadores rurais residentes em municípios identificados como focos de aliciamento de mão-de-obra para trabalho escravo”.

Os participantes e idealizadores dos projetos esperam, agora, a sensibilização de outros setores da administração pública para a ampliação e institucionalização dos escritórios de mediação popular. Afinal de contas, o país precisa cada vez mais de soluções assim – simples, pacíficas, tomadas em conjunto.

Nei Robson e Ana Cristina são mediadores em Taguatinga. Contam um caso que atenderam sobre o problema causado pela poeira de uma casa de materiais de construção que era levada pelo vento para um condomínio ao lado. No primeiro encontro de mediação, não houve acordo. O proprietário esperava receber um terreno para guardar o material e não sairia antes disso. O caso tinha sido levado até à Justiça comum. Mas durante os diálogos entre as partes, alguém sugeriu que o material fosse aguado duas vezes por semana – o que impediu que o pó incomodasse os moradores.

Primeiro Semestre de 2004

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