Aumentam ameaças a defensores de direitos humanos na AL

Reunidos em São Paulo, representantes de entidades latinas defensoras dos Direitos Humanos apresentam um retrato crítico de seu trabalho no continente. Ao lutar por justiça, eles convivem com ameaças de morte, assassinatos, processos judiciais e desqualificação moral
Por Bia Barbosa
 26/08/2004

No final de 2003, um dos dirigentes regionais do Comitê para a Defesa dos Direitos Humanos de Honduras foi assassinado. Dias depois, homens invadiram a casa de outro membro do Comitê, Andrés Pavón Murillo, agrediram sua família e levaram documentos, fazendo com que parecesse um roubo comum. Em fevereiro, cortaram seu telefone. O Ministério Público do país nunca esclareceu os crimes. Pelo contrário, citou publicamente Murillo por declarações que havia feito em outra ocasião a respeito da lentidão da Justiça hondurenha. O defensor de Direitos Humanos se referia ao assassinato de mais de 170 jovens em presídios nacionais que nunca foram explicados pelo governo. Desde que o Comitê do qual faz parte iniciou uma campanha pelo esclarecimento das mortes, Murillo está sendo ameaçado. “Me deixavam mensagens no celular e a polícia nunca foi capaz de investigá-las. Ao mesmo tempo, a atitude do Ministério Público em me citar demonstra uma clara intenção do governo em me calar”, acredita o hondurenho. Hoje ele está sob proteção do Estado graças a medidas cautelares outorgadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).

A situação de Andrés Pavón Murillo não é diferente da de centenas de defensores de Direitos Humanos na América Latina. A par das especificidades de cada país, há um padrão regional de ameaças de morte, assassinatos, processos judiciais, criminalização dos movimentos sociais e desqualificação moral dos defensores. O governo da Colômbia, por exemplo, os considera terroristas. Para analisar os problemas e perigos enfrentados por estas pessoas no continente, acontece até esta sexta-feira (27) em São Paulo a III Consulta Latino-Americana de Defensores. O encontro, criado em 2001, reúne este ano representantes de mais de 20 países para compartilhar experiências no que concerne as estratégias de combate a perseguições, homicídios, campanhas difamatórias e outras formas de ataque. Também está na pauta a construção de uma agenda comum com a Representação Especial de Defensores de Direitos Humanos da ONU e com a Unidade Especial de Defensores da OEA.

“As ameaças aos defensores de Direitos Humanos estão aumentando em todos os países. Muitos Estados não entendem que um governo democrático também pode violar esses direitos. É fundamental que a sociedade dê uma resposta a isso”, acredita Santiago Cantón, secretário executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A Comissão deve concluir este ano um informe somente sobre a situação dos defensores no continente.

A importância do trabalho dos defensores, considerado crucial para a promoção dos Direitos Humanos através do mundo e para o fortalecimento da democracia e do estado de direito, e a conseqüente relevância de sua proteção já foram reconhecidas inúmeras vezes por diversos organismos internacionais, inclusive pela ONU. Em abril do ano 2000, a resolução 2000/61 da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas criou o cargo de Representante Especial da Secretaria Geral sobre os Defensores de Direitos Humanos, ocupado atualmente pela paquistanesa Hina Jilani. Mesmo assim, as violações a estes ativistas se perpetuam cotidianamente e se agravaram nos últimos três anos. Em vista à tendência de militarização na região e às políticas antiterroristas e de “segurança nacional” implementadas em todo o mundo após 11 de setembro de 2001, as condições para o exercício da defesa e promoção dos Direitos Humanos são cada vez mais complexas.

Após o atentado, somente na Colômbia, 95 líderes sindicais foram assassinados entre janeiro e junho de 2002, cifra que duplicou o número de ativistas assassinados no mesmo período do ano anterior. Os grupos paramilitares e o Estado foram os responsáveis pela maioria das agressões, mas houve aumento nos ataques contra defensores perpetrados por grupos armados de oposição.

“Vivemos um momento que interrompe uma idéia de evolução dos Direitos Humanos. O 11 de setembro estabelece um retrocesso muito grande e coloca em risco inclusive os avanços na área dos direitos civis e políticos. Você tinha avanços do ponto de vista da construção das democracias, do respeito às liberdades individuais, do Estado garantir a integridade das pessoas. Com os atentados, os Estados Unidos estabelecem um estado de terror mundial e, a partir disso, passam por cima de todos os tratados internacionais de Direitos Humanos”, explica Darci Frigo, da organização Terra de Direitos. “Além disso, com o Consenso de Washington, houve também um retrocesso na efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais. As medidas neoliberais impostas acabam impedindo que os países adotem polícias de inclusão social que garantam esses direitos coletivos. Então sofremos dois tipos de impacto”, afirma Frigo.

É neste contexto, de intensificação das reivindicações por saúde, educação, trabalho e moradia, que a situação dos defensores de Direitos Humanos passa a ser mais vulnerável. Da parte de alguns governos, houve propostas interessantes de proteção a essas pessoas. No entanto, a maior parte delas não foi capaz de transformar a realidade de ameaça e monitoramento constante sob a qual vivem os defensores de Direitos Humanos.

“O tema dos ativistas foi um dos primeiros que as entidades brasileiras colocaram para o presidente Lula. O governo respondeu com um plano cujos passos dados para aplicá-lo desconhecemos até hoje. Por isso é muito importante que cobremos dos governos as obrigações estabelecidas pela declaração das Nações Unidas sobre os defensores; que eles comecem a desenhar um plano para aplicar estes princípios. Podem começar, por exemplo, pelo combate à impunidade e pela investigação das agressões e ameaças”, aconselha Kerrie Howard, representante da Anistia Internacional, que avalia a situação dos defensores e defensoras de Direitos Humanos na América Latina e no Caribe há mais de dez anos.

>b>Ação e omissão
Segundo as organizações brasileiras, o atual contexto de altos índices de criminalidade e de descrédito na Justiça tem feito com que a população do país apóie a violência policial – o que, às vezes, pode significar apoio às violações de Direitos Humanos por parte das autoridades públicas. Desta forma, os defensores que atuam nas grandes cidades principalmente com questões de segurança pública e sistema penitenciário têm sofrido ataques que vão desde a sua desqualificação social e moral, associando-os a imagem de defensores de bandidos, até ameaças de morte e assassinatos.

No âmbito rural, a luta pela posse da terra também tem gerado diversos ataques aos defensores. Em documento elaborado para a III Consulta Latino-Americana, as entidades relatam que, nos últimos vinte anos, com o surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a intensificação do trabalho da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a mobilização e organização dos trabalhadores rurais, os latifundiários passaram a responder com ofensivas ainda mais contundentes às reivindicações dos defensores. “As estratégias adotadas pelos latifundiários para combater o projeto de reforma agrária incluíram a formação de “empresas de segurança” clandestinas, armamentos pesados, sessões de treinamentos, ataques a trabalhadores acampados, além de ameaças de morte e assassinatos de lideranças rurais. Essa situação não foi diferente em relação às comunidades indígenas. O processo de reconhecimento e de homologação das terras indígenas tem gerado inúmeros ataques e assassinatos de lideranças indígenas”, diz o texto.

De forma geral, os abusos cometidos contra defensores de Direitos Humanos no Brasil se exteriorizam através de atentados contra a vida e a integridade pessoal; ameaças e outras ações de hostilidade; violação de domicílio ou outras ingerências arbitrárias ou abusivas a instalações de organizações de direitos humanos; ingerências arbitrárias ou abusivas em correspondência ou comunicações telefônicas ou eletrônicas; identificação de defensores de Direitos Humanos como inimigos ou a identificação entre a filiação política do defendido e a do defensor; atividades de inteligência dirigidas contra defensores e restrições ao acesso à informação em poder do Estado; desqualificação moral dos defensores, associando-os a defensores de bandidos e traficantes de drogas; e criminalização dos defensores e de movimentos sociais através de processos judiciais indevidos, em que muitas vezes são processados e condenados por formação de bando ou quadrilha.

Isso significa que, ainda que o Brasil não imponha restrições formais à defesa dos direitos, os defensores com freqüência trabalham em ambientes e condições extremamente hostis. “O aparelho de segurança estatal, principalmente policiais e agentes penitenciários, e até de justiça do Estado têm sido os grandes agentes de violência contra os defensores de Direitos Humanos, quer seja por ação ou omissão. Em muitas ocasiões, esse mesmo aparelho é utilizado por outros agentes, a exemplo de fazendeiros, para a facilitação e ou até a prática efetiva de violência contra os defensores”, explicita o documento.

Em razão de uma recente cobrança por parte de algumas organizações em torno da temática dos defensores, o governo brasileiro deu continuidade a uma discussão iniciada no final da gestão de Fernando Henrique Cardoso. Em maio do ano passado, o Secretário de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, instituiu um grupo de trabalho que debateu por quatro meses os pontos necessários para a construção de uma política pública permanente para a defesa e proteção dos defensores de Direitos Humanos. Daí resultou uma Coordenação Nacional sobre os Defensores de Direitos Humanos, integrada pelo Centro de Justiça Global, Terra de Direitos e Movimento Nacional de Direitos Humanos, como representantes da sociedade civil, e que tem como incumbência implementar coordenações Estaduais em seis Estados piloto da federação. Os trabalhos resultaram ainda na minuta de um Projeto de Lei que institui a Proteção Especial para os Defensores de Direitos Humanos e em um Protocolo de Medidas para a Proteção dos Defensores de Direitos Humanos. No entanto, apesar de avanços no papel, essa Coordenação Nacional ainda apresenta um funcionamento muito frágil, não tendo avançado nem no que diz respeito à implementação das Coordenações Estaduais, nem na proteção efetiva dos defensores ameaçados.

Da Agência Carta Maior

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM