Riqueza no lixo

Ao mesmo tempo em que é líder mundial na reciclagem de alumínio, o Brasil despreza a verdadeira riqueza contida nas milhares de toneladas de lixo que produz diariamente: a matéria orgânica. Para combater esse desperdício, o Ceagesp criou um projeto viável que transforma esses rejeitos em matéria-prima.
Texto: Juliana Borges e Mauricio Monteiro Filho
Fotos: Juliana Borges
 20/08/2004
 Projeto de Legaspe é pioneiro no aproveitamento de rejeito orgânico.

O Brasil gera, diariamente, cerca de 100 mil toneladas de lixo. Desse total, a maior parte – aproximadamente 60% – é constituída de material orgânico, isto é, restos de frutas, legumes, verduras e alimentos em geral.

Entretanto, essa verdadeira riqueza vem sendo ignorada. Para se ter uma idéia, no país todo, apenas 1% da parcela orgânica presente no lixo é reciclada. É contra esse quadro que, desde março de 2003, luta o geógrafo Luciano Legaspe, chefe do Departamento de Serviços Gerais da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp).

Ele coordena um projeto da instituição que visa a acabar, por meio da reciclagem, com o desperdício. "Em geral, as sobras orgânicas são consideradas lixo, mas para nós elas são matéria-prima", afirma. A idéia é aproveitar integralmente esses resíduos e possibilitar seu retorno ao consumo humano, seja na forma direta, como alimento, ou indireta, transformado em ração ou adubo. "Partimos do princípio comprovado de que reciclar é mais barato do que jogar fora. Temos um projeto pioneiro, que não existe em nenhum outro lugar. Nosso objetivo é dar conta do material orgânico descartado, com o qual a sociedade tem maior problema em lidar", explica o geógrafo.

Isso porque, quando reaproveitadas, essas sobras apresentam um potencial enorme, podendo servir até para a geração de energia elétrica. Contudo, uma vez abandonadas nos aterros, geram grave impacto ambiental e são as grandes responsáveis pela sobrecarga dessas áreas.

Por essa razão, Legaspe optou por trabalhar exclusivamente com esse material. Para isso, elaborou uma metodologia específica. Todo descarte orgânico gerado no entreposto é classificado em três bases de hierarquia de alimentos: reutilizáveis, passíveis de transformar em ração animal ou destinados à produção de adubo orgânico.

No primeiro caso, a partir de um processo de coleta seletiva, os técnicos da Ceagesp avaliam o material orgânico considerado impróprio para a comercialização, em virtude de danos físicos ou do alto grau de maturação, e separam a fração que ainda pode ser utilizada para consumo humano. Essa parcela é destinada ao Banco Ceagesp de Alimentos, que se encarrega da distribuição a entidades sem fins lucrativos cadastradas, uma vez que, embora não satisfaçam aos critérios do mercado consumidor, esses alimentos mantêm condições de consumo adequadas.

 Na Agrorgânica, composto do Ceagesp substitui os fertilizantes químicos

Em outubro do ano passado, quando foi iniciada a coleta seletiva, das quase 9 toneladas doadas pela Ceagesp a entidades de assistência social, mais de 5 eram de alimentos reutilizados. No mês seguinte, das cerca de 36,7 toneladas doadas, 19,2 vieram desse processo.

Mais do que direcionar para o consumo humano o alimento que se tornaria lixo, esse sistema representa uma economia significativa para a Ceagesp. Entre coleta, transporte e custos dos aterros sanitários, o preço pago por tonelada de material descartado é de R$ 142,51. Com a reciclagem, o valor cai para R$ 62,99.

Outro destino dos resíduos da Ceagesp é a produção de ração líquida animal, que pode ser empregada na alimentação de suínos, aves e bovinos. Entre 30% e 50% da fração orgânica gerada no entreposto pode ser aproveitada para esse fim. De março de 2003, quando foi iniciada a produção do insumo, a outubro, já foram processadas 250 toneladas.

A ração é um bom exemplo da filosofia idealizada por Legaspe. "Trabalhamos tanto no plano macro como no micro. Dessa maneira, podemos atingir grandes empresas e pequenos produtores", afirma ele. Assim, foi desenvolvido um equipamento para produção doméstica da ração líquida, que consiste numa panela com uma hélice movida a motor. Com ele, um trabalhador rural pode produzir de 100 a 200 litros por dia, a partir de sobras de frutas, legumes e verduras de suas próprias plantações.

Além de não produzir resíduo ou qualquer espécie de impacto ambiental, essa técnica permite uma diminuição drástica dos custos de criação. A ração representa cerca de 70% dos gastos com animais, que podem ser reduzidos em 20% a 30% com a utilização da variedade reciclada.

O último estágio de reciclagem, para alimentos que não têm condições de consumo por seres humanos nem de se tornar ração animal, é a compostagem, que consiste na transformação das sobras agrícolas em adubo orgânico. Com o emprego desse insumo, reduz-se a utilização de sua variedade química e de defensivos agrícolas, o que resulta numa agricultura ecologicamente consciente.

Além disso, o produto orgânico também barateia o cultivo. Para se ter uma idéia, no ano 2000, o Brasil utilizou 19 mil toneladas de fertilizante químico, das quais cerca de 10 mil eram importadas. "Ao mesmo tempo, adubo orgânico é desperdiçado todo dia. Com isso, temos duas despesas: a de importar e a de jogar fora", diz Legaspe.

Com o adubo orgânico, o projeto também atuará nas frentes macro e micro: produzirá o insumo em escala industrial, para fins comerciais, e estabelecerá parcerias com os pequenos agricultores que todos os dias passam pela Ceagesp. Além de aprender a técnica da compostagem, esses produtores poderão receber do entreposto a matéria orgânica limpa para transformar em fertilizante.

A multiplicação das experiências do projeto não se restringe apenas a parcerias desse tipo. Ainda neste ano, está prevista a criação da Escola de Reciclagem, na própria Ceagesp, em São Paulo. "Queremos apresentar nossos conhecimentos em cursos para a sociedade. De um pequeno agricultor a um grande fazendeiro ou uma dona-de-casa, todos poderão aprender a reciclar", explica Legaspe.

 Para Roxane Santos, técnica agrícola do MST, projeto já melhorou vida no assentamento

Parcerias

Além dos convênios com as entidades de assistência social, o projeto estabeleceu parcerias com empresas, movimentos sociais e pequenos pr
odutores.

É o caso do assentamento Dom Tomás Balduíno, do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Localizado em Franco da Rocha, distante 35 quilômetros de São Paulo, o assentamento vem recebendo, desde dezembro de 2003, matéria orgânica limpa para a produção de ração líquida e adubo orgânico. É para lá que, três vezes por semana, um caminhão com capacidade para até 8 toneladas parte da Ceagesp, levando sobras de frutas, legumes e verduras.

Quando chega a seu destino, o material é direcionado ou para a compostagem, feita lá mesmo, ou para a preparação de ração. "Para nós, a melhora foi muito grande, pois o alimento vem sem nenhum custo", conta Roxane dos Santos, técnica agrícola e assentada em Franco da Rocha. "Já estamos reservando espaço em feiras em Jordanésia (no município de Cajamar) e em São Paulo para vender os alimentos produzidos com o uso do adubo", diz ela, entusiasmada.

No plano industrial, o projeto rendeu também uma parceria com a empresa Vomm Equipamentos. A fábrica, detentora da tecnologia de produção da ração líquida – também chamada de pastone –, recebe da Ceagesp a matéria orgânica que, depois de processada, é distribuída a pequenos criadores, sem nenhum custo para eles. Em troca, uma vez abatidos os animais alimentados com a ração, a Vomm recebe um percentual pela venda da carne. Atualmente, passado apenas um ano do início do projeto, mais de mil animais recebem o pastone.

 Vezzani, da Vomm, vê no pastone a solução para o desperdício.

Segundo Enrico Vezzani, diretor da empresa, a qualidade da carne produzida é superior à dos animais que são alimentados com ração comum. "Esse modelo coloca o Brasil muito à frente de outros países. Para 8 quilos de sobras orgânicas, produz-se 1 quilo de carne. Com o que é desperdiçado no país, seria possível alimentar todos os que têm fome", afirma ele.

Cassiano Franco, da ONG Recicle Milhões de Vidas e dono da empresa Agrorgânica, viu no projeto de Legaspe uma maneira de melhorar a realidade com que convivia há cerca de 20 anos, desde que começou a estudar a relação entre aterros sanitários e qualidade de vida. "Na Bahia, vi muitos casos de crianças que viviam próximo a aterros com gastroenterite em função da contaminação da água pelo chorume", relata. Dentista por formação, ele se tornou sanitarista na prática, tendo acompanhado a implantação de vários aterros, entre eles o Sítio São João. "Da maneira que está, dentro de cinco anos não haverá mais espaço para depósitos de lixo em São Paulo."

Na agricultura orgânica, que não utiliza fertilizantes químicos, Franco encontrou uma solução para a sobrecarga dos aterros. Seguindo a filosofia de Legaspe, passou a transformar o que antes era considerado lixo em matéria-prima. Assim, sua empresa tornou-se uma das parceiras da Ceagesp e processa grande parte das sobras orgânicas produzidas no entreposto. "A vantagem desse composto é que não contém metais pesados e é rico em sais minerais. Além disso, chega a reter 100% de seu peso em água, o que significa que sempre haverá líquido disponível para as plantas", explica ele.

 "Em cinco anos, não haverá mais espaço para depositar lixo", alerta Franco.

Políticas públicas

No último dia 23 de janeiro, foi inaugurada em São Paulo a maior usina do mundo de geração de energia elétrica a partir do lixo. Localizada no aterro Bandeirantes, a Usina Termelétrica Bandeirantes atingirá uma produção de 20 MW através da queima do metano.

Essa iniciativa representa o início de uma evolução política no que toca ao aproveitamento da matéria orgânica contida no lixo. Além do ganho ambiental que se obtém pela queima do gás, um dos que contribuem para o efeito estufa, a ação representa o primeiro passo em direção a um objetivo que é consenso entre autoridades e especialistas: o fim dos aterros.

Até então, a política de reciclagem de São Paulo se resumia a iniciativas modestas. Além da coleta seletiva domiciliar e dos pontos de entrega voluntária, o município contava, até 2003, com duas usinas de compostagem, ambas criadas na década de 70. Em junho do ano passado, a unidade mais antiga encerrou suas operações. "A usina de São Mateus foi desativada por apresentar condições técnicas inadequadas. Sobrevive ainda a de Vila Leopoldina, que está com os dias contados", diz Fabio Pierdomenico, diretor do Departamento de Limpeza Urbana do Município de São Paulo (Limpurb).

O único programa voltado especificamente para o aproveitamento das sobras orgânicas é o chamado Projeto Feira Limpa, implantado pelo próprio Luciano Legaspe, no período em que foi funcionário do Limpurb. O sistema consiste em disponibilizar, além das tradicionais lixeiras coloridas para a coleta seletiva da parcela seca, recipientes para acondicionar os orgânicos que forem descartados da comercialização. Atualmente, o projeto funciona em 45 feiras da cidade.

Das cerca de 8,5 mil toneladas de lixo geradas no município por dia, apenas 900 toneladas de resíduos orgânicos são destinadas à reciclagem. "É um problema de mercado. Se produzirmos mais, não haverá demanda pelo composto", justifica ele. Além disso, o processo de compostagem da usina de Vila Leopoldina é incompleto: a unidade elabora um pré-composto, produto que é vendido principalmente a agricultores e indústrias do interior dos estados de São Paulo e Minas Gerais, onde finalmente é transformado em adubo.

 Para Pierdomenico, do Limpurb, prioridade deve ser a fração seca.

Em São Paulo, somente em 2001 a reciclagem voltou a ocupar lugar de destaque na pauta dos órgãos públicos. Naquele ano, foi constituído um grupo de trabalho que envolveu 11 secretarias, encarregado de definir uma política municipal relativa à destinação do lixo. Entre os objetivos do órgão está a elaboração do Plano Diretor de Gerenciamento
dos Resíduos Sólidos. "A principal meta é a redução em 30% a 40% do volume que chega aos aterros", antecipa Pierdomenico.

Está em andamento uma concorrência para definição da nova concessionária dos serviços de coleta, tratamento, transporte e destinação final do lixo. O contrato, no valor de mais de R$ 1 bilhão, prevê a criação de duas novas usinas de compostagem, o aumento do número de cooperativas de catadores e a ampliação da chamada coleta seletiva porta a porta, dos atuais 45 distritos para todos os 96 da cidade.

Modelo equivocado

Luciano Legaspe define seu projeto como uma "aposta ao contrário". Isso porque, no compasso das experiências dos países ricos, o foco das iniciativas de reciclagem no Brasil sempre foi a chamada parcela seca do lixo, isto é, papel, plástico, vidro e metais. Dessa maneira, o projeto inverte a lógica usual, pois centraliza os esforços sobre a matéria orgânica.

"O Brasil consegue reciclar apenas 1% de sua fração orgânica. É muito pouco. Copiamos a tecnologia de reciclagem dos países desenvolvidos", critica o geógrafo. Segundo ele, precisamos desenvolver uma técnica própria, aproveitando as particularidades do lixo aqui produzido. Afinal, os países ricos só reciclam a parcela seca por apresentarem fartura desses materiais em seus resíduos. "No Japão, as sobras orgânicas representam apenas 18% do lixo", diz Legaspe. "Nos países desenvolvidos, a ausência desse tipo de matéria-prima é um problema sério."

Ainda assim, desprezando a riqueza do lixo brasileiro, governo e iniciativa privada optaram por um modelo equivocado de reciclagem. A diferença é que, com essa escolha, as empresas lucraram e os órgãos públicos arcaram com os custos resultantes do caos que se tornou o sistema de limpeza urbana nas grandes cidades.

 Europeus são exemplo no aproveitamento de matéria orgânica, diz Calderoni.

Segundo o professor Sabetai Calderoni, doutor em ciências pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduado em planejamento pela Universidade de Edimburgo, na Escócia, as prefeituras gastam entre 5% e 12% de sua arrecadação na coleta e disposição final de resíduos. Autor do livro Os Bilhões Perdidos no Lixo, ele é categórico: "O Brasil devia estar cuidando mais da reciclagem de matéria orgânica. Isso geraria um ganho econômico muito grande: o fim dos aterros". Em sua opinião, a opção pelo reaproveitamento da fração seca foi sustentada pela iniciativa privada, que capitaneou o processo desde seus primórdios. "Existe uma enorme cadeia que envolve catadores e sucateiros e é comandada pelas indústrias", afirma o professor. Além disso, no caso especial do alumínio, uma vez que a produção do metal demanda um dispêndio imenso de energia, a reciclagem tornou-se prioridade.

Desde então, a opção pela fração seca vem se mantendo devido à ausência do poder público na vanguarda do pensamento sobre reciclagem. "Existe uma tradição política equivocada. As instituições públicas se acostumam a um tipo de ação e se tornam resistentes a inovações", complementa Calderoni.

Pierdomenico, diretor do Limpurb, discorda, pois, segundo ele, o motivo da priorização do reaproveitamento da parcela seca é ambiental. "Papel, plástico, vidro e metal geram um impacto maior do que a matéria orgânica, pois ficam muito mais tempo na natureza." O professor rebate: "Os secos são praticamente inertes. O grande problema dos aterros são os orgânicos, que geram chorume e metano".

De qualquer maneira, um modelo não elimina o outro. O ideal seria equilibrar investimentos entre a reciclagem dos orgânicos e da fração seca. "Ambos devem ser escolhidos, pois têm sua contribuição a dar. Não é razoável optar por um ou outro", diz Calderoni. Para ele, se a reciclagem do alumínio, em que o Brasil ocupa o primeiro lugar no mundo, pode representar um significativo índice de conservação de energia, o aproveitamento das sobras orgânicas é uma ótima alternativa para a geração. "Na União Européia, 65% do lodo de esgoto é aproveitado na fabricação de cimento, adubo e, principalmente, na produção de energia elétrica. Na Suíça, por exemplo, esse percentual chega a 100%", afirma o professor.

Como o exemplo europeu, o projeto desenvolvido na Ceagesp demonstra que alternativas não faltam quando se trata de reciclagem de matéria orgânica. Mais longe, prova que, se adotado em larga escala, o país só tem a ganhar, tanto na área ambiental como na econômica e mesmo na social. "Eu acredito que, se o Brasil se empenhar na reciclagem não só como uma forma de ganhar dinheiro, mas também como uma nova potencialidade de gerar emprego e uma mudança cultural, o país vai melhorar sua qualidade de vida, como um todo, de maneira significativa", conclui Legaspe.

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