Artigo – Como sempre foi

Morte de Dorothy Stang no Pará joga luz sobre uma região da fronteira agrícola da Amazônia esquecida por seguidos governos brasileiros
Por Leonardo Sakamoto
 15/02/2005

Ao reagir de forma rápida ao assassinato da missionária norte-americana naturalizada brasileira Dorothy Stang, ocorrida sábado (12), o governo federal não está demonstrando competência, mas apenas corrigindo um erro histórico que ele mesmo cometeu. O crime poderia não ter acontecido caso o Estado tivesse tido a coragem de entrar nessa região de fronteira agrícola amazônica, e não deixado à própria sorte uma população que há anos luta pelo direito à terra e à sobrevivência. Em outras palavras, os governos, tanto o atual quanto os anteriores, são co-responsáveis não só por esta morte, mas pelas tantas outras que já aconteceram.
E foram muitas. Baseado em dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e considerando os municípios com duas ou mais mortes por conflitos agrários entre 2001 e julho de 2004, a ONG Repórter Brasil verificou que a região de fronteira agrícola do Pará – onde a floresta tomba diariamente para dar lugar a pastagens e plantações – responde por 27,45% do total de assassinatos no país por conflitos agrários. O restante Sul/Sudeste do Estado fica na segunda posição, com 16,67%.

Juntas, as duas regiões correspondem por 38,51% do total de área desmatada da Amazônia Legal – informações baseadas em pesquisa da ONG Repórter Brasil sobre dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. É interessante notar que os dois ramais rodoviários que ligam o Pará com o norte do Mato Grosso – o segundo colocado em área desmatada (15,54%) – a BR-158, a leste, e a BR-163, a oeste, são considerados tanto pelos governos estaduais quanto pelo governo federal como “eixos de desenvolvimento”. Locais em que, na verdade, a grilagem de terras, a pecuária extensiva, os latifúndios de soja e algodão crescem ao mesmo tempo em que a floresta e os trabalhadores tombam.

As madeireiras têm uma parcela significativa de culpa, mas não são os atores principais. Ao contrário do que reza o senso comum, a expansão da pecuária é a responsável pelo sumiço da Amazônia, ocupando hoje cerca de 75% das áreas desmatadas, de acordo com o Banco Mundial. Os pecuaristas seriam atraídos pelas taxas de retorno até quatro vezes maiores do que as do centro-sul do país. O clico de devastação se completa quando sojicultores e cotonicultores compram as pastagens para a expansão de suas culturas, empurrando os pecuaristas para novas áreas de florestas que serão em seguida desmatadas.

Desde a ditadura militar e seus planos de colonização do interior do país, esses grandes produtores rurais reinam sobre a Amazônia. A relação carnal que se estabelece entre o patrimônio público e a propriedade privada na região é um problema de difícil solução. Muito similar ao que se enraizou com o coronelismo nordestino da Primeira República, o detentor da terra exerce o poder político, seja através de influência econômica, seja através de coerção física. Nessa região, o já tênue limite entre a esfera pública e a privada se rompe.

Estabelecem suas próprias leis, utilizam trabalho escravo, mão-de-obra infantil. Elegem vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores. Assassinam sindicalistas, ameaçam juízes, procuradores, militantes. Matam freiras de 74 anos.

O agronegócio é intocável no Brasil. E isso não vai mudar, pois nenhuma decisão ministerial sairá a fim de rediscutir o padrão de desenvolvimento do país. Por que, se eles são, hoje, responsáveis por gerar divisas que sustentam nossa balança de pagamentos? Além disso, o governo teme madeireiros, pecuaristas e o restante do agronegócio, mas tem apenas compaixão por ribeirinhos, pequenos produtores rurais e moradores de reservas de exploração sustentável. O mesmo sentimento faz com que a meta de uma empresa como a Embrapa seja a de ampliar a monocultura exportadora. Mesmo considerando que as propriedades rurais pequenas e familiares produzem a maior parte do alimento da mesa do brasileiro.

A BR-163, Cuiabá-Santarém, será ampliada e asfaltada, como assim querem os governadores do Mato Grosso e do Pará. A região do Iriri/Terra do Meio, entre as duas rodovias, com o tempo vai desaparecer, transformando-se de um lado em um pasto gigantesco, com muita juquira para os peões roçarem. E, do outro, numa imensa plantação de soja e raízes de arbustos que só mãos conseguem arrancar. É claro que vozes continuarão se levantando contra tudo isso, assim como sempre foi. E conseqüentemente mais assassinatos, também como sempre foi. E o governo achará tudo isso um absurdo e encontrará os mandantes, mas não agirá nas causas e deixará os trabalhadores mais uma vez sozinhos. Como sempre foi.

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