Governo federal concede trégua de seis meses a rádios comunitárias

Segundo o gabinete da Presidência, enquanto os trabalhos do grupo interministerial criado para discutir a questão da fiscalização e da outorga para emissoras comunitárias não forem concluídos, nenhuma rádio poderá sofrer penalizações, muito menos ser fechada pela ação da Anatel e da Polícia Federal
Por Bia Barbosa
 02/03/2005

Há 13 anos, a rádio comunitária de Heliópolis, que funciona em uma das maiores favelas de São Paulo, presta um importante serviço os moradores daquela comunidade. Por suas ondas, a população, além de ouvir música, é informada sobre o que de mais relevante acontece no bairro – desde programas no posto de saúde até abertura de vagas nas escolas da região – e discute como resolver coletivamente os principais problemas de Heliópolis. Hoje, cerca de 200 pessoas estão envolvidas no funcionamento da rádio, que tem o orgulho de poder dizer que realmente funciona dentro dos princípios da radiodifusão comunitária.

Em janeiro deste ano, a Rádio Heliópolis recebeu um comunicado da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) ordenando seu fechamento imediato. A ordem, segundo a agência, teria sido originada por uma denúncia anônima de interferência indevida em sinal alheio feita seis meses antes. Como todas as rádios comunitárias que funcionam atualmente em São Paulo, a Heliópolis não possui a concessão do Ministério das Comunicações para operar. O município, na verdade, ainda não recebeu do governo federal aquilo que é chamado de “aviso de habilitação”, e que autoriza as cidades a terem emissoras comunitárias em operação. A partir deste aviso de habilitação, as emissoras de cada município podem entrar com o pedido de outorga junto ao ministério.

Em São Paulo, no entanto, alega-se que o estudo técnico que determinaria uma posição no espectro eletromagnético para as rádios comunitárias ainda não foi totalmente concluído, apesar da espera de anos das comunidades. Enquanto isso não acontecer, o aviso de habilitação não pode ser dado. Isso significa que todas as emissoras em operação em São Paulo são, oficialmente, consideradas “ilegais”, como a Heliópolis.

A notificação da Anatel assustou os moradores do bairro, principalmente aqueles envolvidos diretamente com a rádio. “No ano 2000, recebemos uma ameaça anônima, de alguém que se identificou como da Polícia Federal, dizendo que era questão de honra fechar a rádio. Por medo, tiramos a emissora do ar por cinco dias. A carta da Anatel nos assustou, mas pensamos: não estamos matando nem roubando. Estamos dando bem-estar à uma população muito carente. Ajudamos o posto de saúde a divulgar suas campanhas, ajudamos as escolas a informarem a população sobre abertura de vagas, temos um programa de educação sexual pelo rádio. Trabalhamos para o nosso país e para o nosso Estado. A gente não se sente ilegal. Então decidimos que não sairíamos do ar”, conta Geronino Souza, o Gerô, um dos coordenadores da rádio.

Teve início então, a partir de articulações da Mesa de Trabalho da Amarc–SP (Associação Mundial de Rádios Comunitárias), uma grande mobilização para evitar o fechamento da Rádio Heliópolis. Mobilização que resultou, na última semana, numa conquista importante para todas as rádios comunitárias do país. Segundo informou Gilberto Carvalho, assessor direto de Lula, o gabinete da Presidência da República trabalha com a seguinte orientação: enquanto os trabalhos do grupo interministerial criado para discutir a questão das rádios não for concluído, ou seja, enquanto não houver uma regulamentação definitiva para as rádios, as ações fiscalizatórias não devem antecipar nenhuma penalização para as emissoras comunitárias.

Segundo a Presidência, portanto, não caberia essa ação fiscalizatória por parte da Anatel na Rádio Heliópolis e em nenhuma outra rádio enquanto o grupo interministerial estiver em funcionamento. Como o prazo para a conclusão das análises do grupo é de 180 a partir da sua instituição, isso significa uma trégua de seis meses para todas as emissoras comunitárias do país.

Instituído em novembro de 2004 e instalado no início de fevereiro para avaliar aspectos da fiscalização e da outorga de emissoras comunitárias no Brasil, o grupo interministerial tem como um de seus principais desafios encontrar uma solução para os mais de sete mil processos de pedido de autorização que estão na fila aguardando uma resposta do ministério. O próprio governo afirma que só tem condições de analisar 1.500 processos por ano. Dependendo das conclusões do grupo, pode ser proposta a alteração da legislação de radiodifusão comunitária (9.612/98). Segundo informou o secretário de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações, Sérgio Diniz, que integra o grupo, a possibilidade de mudanças na lei pode aparecer no que se refere à fiscalização e à velocidade de outorga das rádios.

Coordenado pelo Ministério das Comunicações (Sérgio Diniz e Carlos Alberto Freire Resende), o grupo conta com a participação de mais sete órgãos do governo: Casa Civil (André Barbosa Filho e André Fonseca de Paula Leite), Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da Presidência da República (Alexandre Pinheiro de Moraes Rego e Jorge Antônio Menna Duarte), Secretaria-Geral da Presidência da República (Silvio dos Santos e Célio Celso Cruz Júnior), Assessoria Especial da Presidência da República (Cezar Santos Alvarez e Carla Márcia Cecchia Parisi), Ministério da Justiça (Sérgio Torres Santos e Marcos Aurélio Pereira de Moura), Ministério da Educação (Tânia Maria Maia Magalhães Castro e Denise Frank Paulsen) e Ministério da Cultura (Adair Rocha e Alfredo Manevy).

É a segunda tentativa do governo Lula para solucionar a questão das rádios comunitárias no país. Em 2003, outro grupo de trabalho foi instalado pelo Ministério das Comunicações para analisar os processos que já se encontravam parados. Em caráter consultivo, o grupo deveria contribuir na definição de critérios para nortear os processos de solicitação de outorgas e de mecanismos para dar mais transparência a esses processos, além de acelerá-los. O relatório final do GT de 2003 chegou a apontar alterações na legislação que regulamenta o setor. O governo não declarou se pretende levar em conta o relatório do GT anterior no decorrer dos trabalhos do grupo recém-instalado. O governo também deve promover, no segundo semestre deste ano, uma Conferência Nacional de Rádios Comunitárias para, a partir do debate com a sociedade civil, estabelecer caminhos para o funcionamento e expansão dessas emissoras no país.

Sintoma da repressão
A notificação recebida pela Heliópolis no início do ano não é uma caso isolado de repressão a uma rádio comunitária no país. Na mesma época, outras 16 emissoras foram notificadas em São Paulo, nove no Rio de Janeiro e 16 em Belo Horizonte. Na semana passada, por exemplo, uma operação da Polícia Federal com 24 agentes e 24 técnicos da Anatel, fechou oito rádios em Uberaba, no interior de Minas Gerais. Foram apreendidos computadores, microfones, CD players, mesas e caixas de som. Os responsáveis responderão a processos criminais e, se forem condenados, podem cumprir pena de um a dois anos de prisão. A lei que criminaliza o trabalho comunitário dessa emissoras data da época da ditadura militar e deu bases para que, somente entre 2002 e 2003, 7.612 rádios tenham sido fechadas pela Polícia Federal. Do outro lado, num período muito maior – de 1998 até 2003 – foram licenciadas somente 2.199 emissoras.

“O que aconteceu com a Rádio Heliópolis não é um movimento isolado. Por isso, a vitória que conseguimos para a emissora abre um precedente importante. Com isso, as ações em andamento no Rio de Janeiro também foram suspensas. A partir do que aconteceu com a Heliópolis, queremos discutir a questão das rádios comunitárias como um todo no país. Queremos mostrar para a Anatel e para o governo que é possível termos rádios que cumpram seu papel na luta pela democratização da comunicação no Brasil”, afirma o vereador de São Paulo Chico Macena (PT), que participou da mobilização em favor da emissora.

Da Agência Carta Maior

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