Plano quer reduzir confinamento de jovens em abrigos

Elaborado por representantes de ministérios e da sociedade civil, projeto aguarda aprovação no Conselho Nacional de Assistência Social e do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Hoje, 86% dos jovens que se encontram nos abrigos possuem família, o que viola o ECA
Por Fernanda Sucupira
 19/07/2005

Os 15 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), celebrados semana passada, impulsionaram uma série de reflexões sobre os descumprimentos a vários pontos dessa legislação que ainda são comuns no país. Um dos exemplos mais graves de desrespeito é encontrado na questão do abrigamento: 86% dos jovens que se encontram nos abrigos brasileiros possuem família, com a qual a maioria ainda mantém vínculos, e 52% estão nessas instituições há mais de dois. O ECA, neste caso, está sendo rasgado. Os abrigos são apontados no estatuto como última opção para crianças e adolescentes e, antes dele, deve ser priorizada a orientação e apoio sócio-familiar, o apoio sócio-educativo em meio aberto, e a colocação familiar.

Esses números, divulgados no início do ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em seu Levantamento Nacional dos Abrigos, ajudam a pôr fim ao senso comum de que a maioria nos abrigos é formada por órfãos. Segundo a pesquisa, realizada junto a 589 instituições que recebem recursos do governo federal, apenas 5,2% dos jovens se enquadram nessa situação. Entre os motivos para a institucionalização dessas crianças e adolescentes, a pobreza aparece em primeiro lugar, em 24% dos casos.

A situação dos abrigos no Brasil tem chamado a atenção do governo e de entidades da sociedade civil, e não é de hoje. Em outubro de 2004, foi criada uma comissão intersetorial por decreto presidencial, com representantes de diversos ministérios e da sociedade civil. Esse grupo elaborou o Plano Nacional de Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, que coloca como prioridade absoluta nas ações dos gestores públicos a manutenção dos vínculos com a família original. O plano, que contém uma série de diretrizes para as políticas públicas e propostas de ações governamentais para efetivar esse direito garantido no ECA, aguarda aprovação por parte do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

“Todo o esforço deve ser feito para que cada família possa criar seus próprios filhos. Atualmente há muita facilidade de afastar a criança do convívio familiar, o que deveria ser uma medida provisória e excepcional. A família precisa ser tratada, olhada, assistida para poder receber a criança de volta, mas ainda há uma falha das políticas públicas nesse sentido”, afirma Alexandre Reis, representante da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) que coordenou a comissão. A idéia principal é que não adianta tentar resolver os problemas da criança e do adolescente sem resolver a família como um todo. Portanto, ao invés das políticas se focarem no jovem isoladamente, elas devem passar a vê-lo como parte indissociável do núcleo familiar.

Além de priorizar a assistência à família, um dos pilares do plano é o enfrentamento da cultura de institucionalização no país, que vai na contramão do ECA. De acordo com o estatuto, a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do pátrio poder, e, não existindo outra razão que justifique o abrigamento, a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, que deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio. No entanto, há uma tendência de institucionalizar a criança no Brasil como primeira solução às dificuldades que a família passa, sendo esse o motivo principal em quase um quarto dos casos. Muitos acreditam que dentro dos abrigos, com teto e comida garantida, as crianças estão em melhores condições do que se estivessem junto a sua família de origem, na maioria das vezes bastante pobre.

Uma das alternativas ao abrigamento proposta no plano é a implementação de programas de família acolhedora, que já existem em algumas cidades brasileiras como Campinas e Rio de Janeiro. Eles prevêem que famílias da mesma comunidade acolham provisoriamente as crianças, como uma espécie de guardiões, recebendo ajuda financeira do governo, enquanto a família de origem vai sendo preparada para recebê-las de volta.

Também foram incorporadas ao documento propostas de políticas públicas que deram certo em outros países ou em cidades brasileiras e que poderiam ser multiplicadas nacionalmente. “Na Índia, as crianças institucionalizadas voltam às famílias de origem com auxílio governamental, e essa ajuda acaba sendo inferior ao que é gasto com elas nos abrigos”, exemplifica o desembargador Marcel Esquivel Hoppe, representante na comissão da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude (ABMP).

Decisão deve sair em outubro
Entre as mais de 100 ações governamentais propostas no plano estão os “mutirões institucionais”, para rever a situação de cada criança e cada adolescente e conferir se eles já podem retornar à família. Embora o ECA preveja que, nos casos de real necessidade, a permanência no abrigo dure o tempo mais curto possível, isso não costuma ser respeitado. O abrigamento é considerado um processo perverso, caracterizado pelo confinamento – com muros altos e portões trancados – , pela ociosidade fora do horário escolar, e pelo afastamento da família de origem, por causa das visitas com datas e horários pré-estabelecidos. Essas instituições ainda costumam apresentar elevado número de crianças, às vezes divididas entre meninos e meninas, e em diversos casos irmãos acabam sendo separados.

“É preciso garantir o mínimo de permanência dos vínculos porque as seqüelas muitas vezes são irreversíveis, principalmente quando as crianças são afastadas nos primeiros anos de vida. O abrigo é uma solução provisória que se transforma em permanente”, afirma Cláudia Cabral, diretora executiva da Associação Brasileira Terra dos Homens, que também participou da elaboração do plano.

As propostas apresentadas pela comissão, formada por representantes de diversos ministérios – como Saúde, Desenvolvimento Social, Direitos Humanos e Educação -, do Ipea, de conselhos mistos, de organizações não governamentais nacionais e internacionais, por promotores, juízes e defensores públicos, se basearam não apenas nos artigos do ECA, como também em conhecimentos técnicos e científicos sobre os malefícios da institucionalização para o desenvolvimento da criança. “Enquanto se dá muita atenção à questão dos adolescentes em conflito com a lei, crianças e adolescentes estão calados e esquecidos nos abrigos. É um problema grave que atinge milhares de meninos e meninas no Brasil e precisa ser revisto. Os gestores públicos precisam romper a inércia e atacar isso de frente”, defende Reis, representante da SEDH.

Desde abril, o Conanda e o CNAS – dois conselhos mistos, que reúnem representantes do governo federal e da sociedade civil, e têm papel deliberativo em relação a cada área – estão analisando e debatendo diretrizes e propostas e até outubro devem se reunir para resolverem juntos pela aprovação ou não do plano como uma política nacional. “Seria mais simples aprovarmos isoladamente, mas uma deliberação conjunta dá mais força para a efetivação dessas políticas públicas”, acredita José Fernando Silva, vice-presidente do Conanda. O recente rebaixamento do status da Secretaria Especial de Direitos Humanos, à qual está ligado o Conanda, preocupa os membros do conselho e pode enfraquecer o plano. “O fato de Nilmário Miranda não ser mais ministro traz um problema de hierarquia. Nesse processo, isso facilitou o diálogo da secretaria com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [a que se vincula o CNAS]”, diz Silva.

Da Agência Carta Maior

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM