Artigo – Trabalho Escravo: faltam 12 meses para erradicar

Nos últimos três anos, o Brasil tornou-se referência na luta contra a escravidão contemporânea. Mas os problemas ainda são muitos. Além do corte no orçamento previsto para 2006, a taxa de atendimento às denúncias caiu de 57% (2003) para 27% (2005), deixando no cativeiro temporário de 2.500 a 3.000 pessoas a cada ano
frei Xavier Plassat
 28/11/2005

O inesperado surto de febre aftosa em rebanhos do Centro-Oeste do Brasil despertou no mundo uma onda de preocupação que foi bem alem do fato em si. Mais de 50 países já fecharam suas portas à carne bovina brasileira. Num setor que ia bater mais um recorde de exportação, o clima despencou da euforia para o desespero. Pela primeira vez, o ‘mercado’ externou sua desconfiança em termos que vão além da mera precaução face ao risco sanitário. Grandes jornais internacionais não pouparam manchetes para concentrar numa única reprovação o desastre ambiental, o descontrole sanitário e a vergonhosa escravização praticada por expoentes do latifúndio brasileiro.

Por ter sido um dos primeiros países da comunidade internacional a reconhecer a existência da chaga do trabalho escravo neste início do século 21, o Brasil tem assumido, interna e externamente, uma colossal responsabilidade, explicitada inclusive em política de Estado bem como em compromisso internacional: com a aprovação do Plano Nacional de Erradicação de março de 2003, o combate ao trabalho escravo passou a ter status de meta presidencial, a ser alcançada até o final do atual mandato. Mesmo compromisso foi firmado perante a Corte de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), e confirmado em Genebra perante a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a ONU. Nos últimos dez anos e mais firmemente nos últimos três, o Brasil tornou-se referência internacional na luta contra a escravidão contemporânea, adotando programas considerados inovadores, elogiados pela OIT.

O que tem de tão inovador neste “louvado esforço” do Brasil para acabar com o mal do trabalho escravo é, pela primeira vez, uma abordagem integrada do problema, visando quebrar na raiz a cadeia sistêmica que produz e reproduz o trabalho escravo. Que alicia populações assoladas pela miséria a serviço de empregadores calculistas, obcecados pelo lucro a qualquer custo, e inacessíveis ao rigor da lei. Ao tripé vicioso da impunidade, da ganância e da miséria, a idéia é de contrapor o tripé virtuoso da fiscalização, da repressão e da prevenção, e de articular ações do Estado e da sociedade. No que pese as insuficiências do Plano aprovado (falta de propostas concretas na área de prevenção e de políticas efetivas de inclusão social), este é o bojo do dispositivo esboçado, e ainda em construção, pelo esforço conjugado das várias instituições do Estado e da sociedade civil.

Embora parabenizados por muitos, os resultados do plano ainda são mitigados. Pior: são sujeitos a sofrerem um revés se determinadas tendências negativas já observadas não forem rapidamente combatidas. Entre elas estão: a resistência do legislador em aprovar textos importantes como a proposta de emenda constitucional determinando o confisco das terras onde forem flagradas práticas escravistas; a impotência do judiciário, preso a jurisprudências superadas, para pôr na cadeia os criminosos envolvidos nessas práticas; o pensamento suicida de setores patronais que continuam negando o óbvio; a inércia da máquina burocrática, espremida na ditadura do superávit primário e incapaz de atender a contento à demanda existente.

O caso da fiscalização é um bom exemplo. Nos últimos três anos foram libertados cerca de 12.500 trabalhadores encontrados em situação de escravidão em mais de 400 fazendas, geralmente denunciadas por fugitivos. Isto representa dois terços dos mais de 18.000 trabalhadores resgatados desde 1995, quando foi criado o Grupo Móvel de Fiscalização. Certo: a fiscalização ganhou inegável fôlego a partir de 2003. Certo: cerca de 180 proprietários acabaram sendo incluídos na temida ‘lista suja’, como é conhecido o Cadastro dos Empregadores flagrados, criado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE): por dois anos no mínimo, os incluídos tem barrado o acesso a financiamentos públicos subsidiados. Certo: vários deles amargam hoje uma merecida rejeição pelo mercado, na medida em que vem sendo desvendada a cadeia produtiva escravista. Certo: depois de concluída a maioria dessas operações de resgate, o Ministério Público do Trabalho, presente em todas, tem acionado a Justiça do Trabalho, pleiteando e conseguindo a condenação do infrator por danos morais coletivos com pagamento de indenizações não pequenas. Certo: isso tem contribuído sumamente a melhorar nosso conhecimento do perfil e das demandas dessas vítimas, jogando bases para futuras ações positivas de prevenção e inserção. Certo: isso tudo mudou realmente o clima preexistente de total impunidade, incentivando as vítimas da escravidão moderna a correrem, com certa expectativa de resultado, o risco de denunciar.

Aqui justamente está um dos pontos críticos a ser destacado.

Nos últimos três anos, as denúncias de trabalho escravo envolveram mais de 20.000 trabalhadores (de um total de 34.000 trabalhadores envolvidos desde 1996), em 700 casos identificados por meio de denúncia formalizada ou de fiscalização. Foram 412 fiscalizações exitosas do Ministério do Trabalho e Emprego, libertando 12.500 trabalhadores. É sabido que a maioria das denúncias (dois terços) transitaram pelo movimento social, essencialmente pela Comissão Pastoral da Terra que, há anos, é responsável por uma Campanha Nacional de Combate e Prevenção ao trabalho escravo (“De Olho Aberto para não Virar Escravo”). Os demais casos são detectados por meio de denúncia via outros canais ou, casualmente, por ocasião de fiscalizações de rotina.

Causa estranheza e indignação a constatação de que a taxa de atendimento às denúncias encaminhadas tenha caído nesses três anos de 57% (2003) para 33% (2004) e 27% (2005) – ficando numa média de 40% nesse período. Isso mostra que foi deixado sem fiscalização um número crescente de casos (72 em 2003, 97 em 2004, 107 em 2005), mantendo em situação provável de cativeiro temporário o inaceitável número de 2.500 a 3.000 pessoas a cada ano. Isso malgrado as desesperadas e arriscadas iniciativas tentadas pelos denunciantes (maioria deles fugitivos) para procurar socorro, sendo muitas vezes expostos a ameaças, perseguição e, se interceptados pelos seguranças da fazenda, submetidos a retaliação, humilhação, surra, e até liquidação. Cada denúncia não atendida mina a credibilidade do Estado, torna inúteis os custosos e também arriscados esforços de centenas de agentes do movimento social e das Igrejas para acolher e amparar as vítimas, e abala a esperança destas de sair do inferno que lhes é imposto, contrariando precisamente o chamado que todas as campanhas – promovidas pelo Estado, pela OIT, pela CPT – tenta
m popularizar entre os trabalhadores: ‘Diga não à escravidão! Denuncie!’

Motivo dessa falta de atendimento? O empenho da Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE, que coordena as operações do Grupo Móvel, está acima de qualquer suspeita, como está o dos fiscais – todos voluntários e cumprindo com louvável abnegação sua missão. Eles compõem as sete equipes existentes de fiscalização (por sinal três a mais que antes de 2003). Dificuldades recorrentes permanecem em relação à disponibilidade e agilidade da Polícia Federal que até hoje não se estruturou de forma a priorizar essas ações, nem tem orçamento específico para isso. Mas o problema essencial é mesmo o do descompasso gritante entre a altura da demanda e a estreiteza dos meios disponibilizados pelo Estado. Uma meta mínima de curto prazo deveria ser o de elevar para 70% a taxa de atendimento das denúncias encaminhadas ao Grupo Móvel. Para isso se faz necessária uma estruturação adequada dos serviços responsáveis e uma conseqüente dotação de recursos humanos, materiais e financeiros.

O escândalo deste final de 2005 é que, faltando 12 meses para ‘erradicar’ o trabalho escravo de acordo com a meta presidencial estabelecida, os recursos orçamentários do MTE destinados ao combate a esse crime, atualmente em apreciação no Congresso, apresentam um recuo de 20% (de R$ 3.426.868,00, em 2005, para R$ 2.845.000,00, em 2006). Descobre-se ainda que o número de auditores fiscais do trabalho solicitado para o novo concurso de 2006 foi de 300, mas o aprovado no cálculo orçamentário ficou em 100 – um número que não compensa nem a metade das saídas naturais do quadro funcional. E que, depois de muitos anos de cobrança para um reajuste, os custos operacionais da fiscalização terão que incorporar a elevação em 50% do valor das (ainda precárias) diárias pagas aos fiscais no exercício de suas missões.

A arquitetura do Plano de Erradicação é um conjunto coerente. A ação repressiva por si só é incapaz de eliminar as práticas escravistas. É evidente que a prevenção – e com ela, a educação, a geração de emprego, e de forma cabal a reforma agrária – tem papel preponderante do ponto de vista do tratamento das causas estruturais. Mas é claro que o alicerce de todo o edifício reside na efetividade da fiscalização. Só com ela não se erradica, sem ela não se faz mais nada.

Xavier Plassat é frei dominicano e membro da coordenação nacional da Campanha Nacional de Combate e Prevenção da Comissão Pastoral da Terra

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