Artigo – Crédito Polêmico

Um financiamento para o agronegócio brasileiro pode ajudar a mudar os critérios de avaliação ambiental e social de projetos privados financiados pelo Banco Mundial. Não por seus acertos, mas pelos erros de julgamento da IFC, a subsidiária que concedeu o empréstimo. E não é um projeto qualquer. Ele pertence ao magnata da soja e governador Blairo Maggi
Sérgio Abranches
 03/12/2005

Um financiamento para o agronegócio brasileiro pode ajudar a mudar os critérios de avaliação ambiental e social de projetos privados financiados pelo Banco Mundial. Não por seus acertos, mas pelos erros de julgamento da IFC, a subsidiária que concedeu o empréstimo, cujos critérios são criticados por ambientalistas e pela própria auditoria do banco. E não é um projeto qualquer. Ele pertence ao magnata da soja e governador Blairo Maggi. A empresa de seu grupo Amaggi, gigante da exportação de soja, obteve financiamento da IFC, o braço privado do Banco Mundial, em 2004, provocando a reação de inúmeras Ongs ambientalistas no Brasil e na Europa.

A gritaria foi tanta, que chegou aos ouvidos do presidente do Banco, James Wolfensohn, que cobrou explicações do vice-presidente executivo da IFC, Peter L. Woike. Foi o suficiente para que Woike, que deixou o banco em fevereiro passado, pedisse à Ombudsman da organização, Meg Taylor, que conduzisse uma auditoria completa dos critérios utilizados para decidir sobre o empréstimo. Foram dois, um em 2002, e outro, em 2004, no valor de US$ 30 milhões cada. Para os ambientalistas, ao financiar um projeto altamente prejudicial ao meio ambiente e baseado em condições precárias de trabalho, o Banco Mundial legitimou empréstimos ainda maiores de outras organizações financeiras européias. A auditoria, divulgada em maio deste ano, concluiu que a IFC obedeceu a todos os procedimentos internos na avaliação do risco sócio-ambiental do empreendimento, mas seus critérios são inadequados, suas avaliações subjetivas, levando-a a subestimar o risco de dano real, ambiental e social, dos projetos.

A IFC classifica seus projetos em três classes de risco: A, o mais alto, B, o intermediário, e C, indicando baixo risco. O projeto de Maggi foi considerado classe B. Equivale a dizer que os impactos ambientais e sociais são restritos a um determinado local, são geralmente reversíveis e permitem medidas de mitigação. A conseqüência é que as exigências de avaliação de impacto, de consulta pública e de monitoramento são menores do que para os projetos considerados de alto risco. Foi o suficiente para Ongs como a Amigos da Terra, o Fórum Brasileiro de Ongs e a Movimentos Sociais pelo Meio Ambiente se unissem a entidades européias e batessem às portas do Banco Mundial para reclamar. Acabaram ganhando a atenção de Wolfensohn e conseguindo a auditoria nos empréstimos.

A Ouvidoria não deixa margem a dúvida. Segundo ela, a IFC observou corretamente todos os seus procedimentos para avaliar e classificar o risco do projeto, mas esses procedimentos são insatisfatórios. Não separam com clareza e rigor as categorias de risco, promovendo ambigüidades e subjetividade de julgamento. Diz que os critérios são definidos com imprecisão, permitindo grande discricionariedade técnica. Práticas informais de classificação dos impactos de projetos de agro-negócio na cadeia de suprimento, diz, não permitem um sólido e fundamentado processo de avaliação de riscos. A Ouvidoria afirma, ainda, em seu relatório, que a IFC não dá transparência aos critérios realmente utilizados para a classificação, que permitisse a setores interessados ou afetados “fazer um julgamento informado acerca da adequação de suas decisões”.

Não foi uma investigação de gabinete, envolveu muito trabalho, inclusive de campo, no Brasil. Ela ouviu as objeções levantadas pelas Ongs; discutiu o projeto com a equipe da IFC responsável por ele; reuniu-se com a Amigos da Terra; considerou os argumentos da Amaggi; fez uma revisão técnica detalhada do projeto, para “entender melhor a abordagem da IFC e o raciocínio utilizado” na classificação do risco; contratou consultoria no Brasil para rever a avaliação feita pela Amaggi dos seus fornecedores pré-financiados; reuniu-se com várias organizações da sociedade civil brasileira em Cuiabá para discutir o projeto; esteve com a gerência da Amaggi, em Rondonópolis, examinando o “sistema de gestão ambiental e social” em implementação; fez visitas de campo independentes a várias fazendas pré-financiadas pela Amaggi, antes de publicar o relatório, em inglês e português.

A discussão sobre a classificação de risco tem grande importância. Segundo as Ongs, ao colocar o projeto de Maggi na classe B, de risco moderado e manejável, permitiu que outros financiadores concedessem empréstimos ainda mais vultosos, usando o aval sócio-ambiental do Banco Mundial. Para bancos que fazem marketing ecológico e social e sequem o “Princípio do Equador”, não podia ser melhor. Puderam financiar um projeto de alta rentabilidade, cuja qualidade ambiental e social é garantida pela IFC.

Os ambientalistas argumentam que a IFC, agindo dessa forma, minimizou a severidade dos riscos ambientais diretos do projeto e desconsiderou o fato de que a Amaggi não comercializa apenas soja de sua produção, mas também de várias centenas de fornecedores independentes, muitos dos quais pré-financiados por ela. Para piorar as coisas, alguns meses depois do pedido de auditoria, a Organização Internacional do Trabalho divulgou relatório sobre trabalho escravo no Brasil, que mostrava o grupo Maggi como comprador de soja produzida por fazendas que mantinham trabalhadores em sistema de cativeiro, com base em evidências produzidas pela ONG Repórter Brasil, de jornalismo investigativo.

A auditoria reconhece, entretanto, que a IFC, mostrou-se preocupada, de qualquer forma, com os riscos do projeto. Apesar da classificação moderada, vinha trabalhando com o grupo Maggi na implantação de um de “sistema de gestão ambiental e social”, voltado, inclusive, para a prevenção de comportamentos social e ambientalmente lesivos por parte de seus fornecedores. A IFC afirma, na sua avaliação e, posteriormente, na resposta à Ouvidoria, que esse programa “é consistente com a melhor prática internacional” e preenche totalmente suas exigências. Diz, ainda, que a Amaggi tem inovado no sistema de gestão responsável, inclusive na seleção de fornecedores e, por isso, começa a ter “o impacto setorial que gostaríamos de obter”.

Essa última avaliação está no memorando que enviou à Ouvidoria, datado de 4 de novembro último, com a resposta às conclusões da auditoria, que considerou frouxos os critérios que ela adotou para a análise dos riscos sociais e ambientais do projeto e julgou injustificada a classificação como risco “B”. Em nenhum momento, a IFC estranhou que, apesar das inovações para cobrar padrões de conduta social e ambiental responsável de seus fornecedores, a Amaggi tenha sido forçada a reconhecer à revista Época, na edição de 30 de maio desse ano, que compra soja de pelo menos duas fazendas que mantêm trabalhadores em regime considerado pela OIT como de trabalho escravo: a Barão e a V&
oacute; Gercy. Blairo Maggi disse à Época que “trabalha com esses fornecedores há mais de 20 anos e fez as últimas compras antes de tomar conhecimento da lista suja” da OIT. Informou ainda, diz a revista, “que manterá o relacionamento enquanto eles estiverem se defendendo dos processos trabalhistas”.

Os ambientalistas europeus, principalmente os holandeses, não estão nada satisfeitos com as respostas da IFC à Ombudsman. Baseiam-se em estudo assinado por Ulricke Bickel, da ONG Misereor, que analisa detalhadamente e de forma muito crítica o caso desses empréstimos. Em carta ao Banco Mundial Bickel e Ute Hausmann da FIAN, outra ONG holandesa, pediram a interrupção do financiamento a projetos de soja no Brasil. Bickel tem vários estudos sobre os impactos ambientais da produção de soja no Brasil, um deles em co-autoria com Jan Maarten Dros, serviu de referência aos próprios técnicos da Ouvidoria, que fizeram a auditoria.

Ele é um dos que mostra como o aval da IFC permitiu que vários bancos europeus, muitos deles comprometidos com os princípios do Equador, financiassem Maggi. Isso, apesar da extensão do desflorestamento comprovadamente ocasionado pela soja e das declarações públicas do governador e empresário, inclusive, na presença da ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, de que a extensão do desmatamento atual não deveria impressionar, porque há muita floresta ainda. Bickel diz, também, que a financiadora teria desconsiderado, ainda, o uso intensivo e extensivo de pesticidas tóxicos contaminando solos e rios e prejudicando a saúde da população.

Bancos alemães, ingleses e holandeses financiaram a Amaggi em valores muito superiores ao dos empréstimos da IFC. Pelo menos um deles, o holandês Rabobank, que faz publicidade de sua adesão aos princípios de responsabilidade social e ambiental, informa Bickel, diz que se a IFC aprova o projeto e o classifica apenas como “classe B” de risco, um projeto de risco moderado, sente-se seguro para investir US$ 230 milhões no projeto. Vê-se, portanto, que a questão da categorização do risco sócio-ambiental não é trivial. Ela exonera o projeto da necessidade de uma análise de impacto ambiental e social profunda e pode ser usada para legitimar financiamentos por parte de organizações que, por seus compromissos com a governança corporativa responsável, ou por exigência de seus acionistas, não poderiam investir em projetos de alto risco sócio-ambiental.

A auditoria atesta que a IFC exigiu que a Amaggi adotasse um sistema de gestão ambiental e social, destinado a mitigar os impactos negativos do projeto e certificou-se de que as operações próprias da Amaggi obedeciam às exigências ambientais e sociais. Exigiu, ainda, que a empresa criasse oportunidade razoável para um debate efetivo com a sociedade. Não obstante, concluiu, a IFC não se assegurou de que o sistema de gestão ambiental e social permitiria um grau apropriado de proteção ao meio ambiente e aos trabalhadores e garantiria a obediência aos padrões ambientais e sociais da IFC. Não fez um exame suficientemente rigoroso desse sistema, como parte da avaliação do segundo empréstimo. Não deixou claras suas expectativas sobre a conduta da Amaggi no projeto. Em conseqüência, “considera que a classificação de Categoria B pode não ser totalmente justificada a menos que essas condições sejam atendidas”. E por isso, recomendou “que a IFC prepare e divulgue publicamente uma nota sobre as medidas que pretende tomar em resposta às conclusões da auditoria”.

A primeira resposta da IFC, em julho passado causou indignação generalizada: em seis linhas limita-se a dizer que a IFC considera bem vinda “a conclusão de que a IFC seguiu seus procedimentos e políticas relativas à classificação”. Quanto ao mais, diz que “outros comentários serão respondidos no contexto de uma futura visita de supervisão e apoio técnico à empresa, através da Corporate Citizenship Facility da IFC”. Finalmente, a IFC, no último dia 4 de novembro, emitiu nova resposta, na qual se refere a algumas das críticas da Ouvidoria, porém interpreta que a auditoria se havia limitado a pedir mais esclarecimentos sobre a questão da “garantia de medidas mitigadoras suficientes para evitar o crescimento do cultivo de soja às custas da destruição do ambiente”. Afirma que, em parceria com a Amaggi, está respondendo de forma plenamente adequada a todas essas preocupações.

Certamente, a controvérsia não vai parar por aí. Pouco antes dessa resposta, considerada insuficiente, em setembro passado, 18 organizações da sociedade civil de vários países encontraram-se com a direção da IFC, para discutir a revisão dos procedimentos de classificação e gestão de riscos por parte da organização. O caso da Amaggi e a demora de uma resposta plenamente satisfatória à Ombudsman foram mencionados como exemplo da necessidade de uma profunda reforma de procedimentos. As observações dos participantes parece terem surpreendido Assad Jabre, o novo diretor principal em exercício, que demonstrou não estar totalmente consciente do que se passava. As Ongs deixaram claro que os procedimentos da IFC não se enquadravam a padrões objetivos de desempenho e não tinham transparência suficiente. Os diretores garantiram que os novos padrões de desempenho – que ainda serão anunciados – serão mais abrangentes e deixarão mais claro aos financiados o que se espera deles. Adicionalmente, asseguraram que os padrões não estão “sendo aguados”.

A importância dessa questão vai além dos financiamentos já concedidos. Dificilmente a IFC repetirá o comportamento que teve no caso da Amaggi. Além disso, ficou muito mais difícil para os bancos privados, que se querem fazer ver como social e ambientalmente responsáveis, apoiarem projetos tão discutíveis. Exportadores do porte da Amaggi e outros, como a Cargill ou a Bunge, passarão a enfrentar pressão crescente para adotarem comportamentos responsáveis. A menos que queiram que sua imagem internacional fique, definitivamente, associada ao banditismo que impera na nossa fronteira agro-industrial. Afinal, lá, muitos dos que desmatam, também matam e escravizam.

Não é por acaso que são da Holanda as Ongs responsáveis por manter essa questão na agenda: ela é o segundo maior importador de soja do mundo, depois da China. Compra um terço de toda a soja que vai para a União Européia e se abastecesse basicamente no Mercosul, ou seja, principalmente no Brasil, segundo maior produtor mundial e, subsidiariamente, na Argentina. As barreiras fitossanitárias, sociais e ambientais aumentarão, principalmente na Europa, e quem ficar identificado com a turma dos desmatadores, matadores e escravizadores vai ser expulso desse mercado, mais dia, menos dia. Logo, é racional, que comecem a mudar de comportamento e invistam na segurança sócio-ambiental de seus projetos.

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