ONGs e movimentos unidos para monitorar Convenção da ONU

Organizações da sociedade civil e movimento sociais querem que governo federal siga determinações da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança da ONU, ratificada em 1990, mas desde então tratada com descaso. O primeiro relatório só foi apresentado em novembro de 2003
Por Fernanda Sucupira
 26/12/2005

Em 1990, o Brasil ratificou a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU), elaborada um ano antes. O primeiro relatório sobre sua implementação no país deveria ter sido apresentado pelo governo brasileiro em 1992, seguido de outros dois em 1997 e em 2002, sempre acompanhados de relatórios da sociedade civil. No entanto, o primeiro deles só foi elaborado em 2002, no final da segunda gestão de FHC, e apresentado pelo atual governo, em novembro de 2003, com 11 anos de atraso, após um ultimato do Comitê para os Direitos da Criança da ONU, que monitora o cumprimento desse tratado. Isso porque o Brasil era o único dos 191 países que assinaram a Convenção que nunca havia enviado um relatório. Em resposta, o país recebeu recomendações do Comitê para a efetivação dos direitos previstos nela.

O próximo relatório do governo federal deve ser entregue ao Comitê em outubro de 2007 e o da sociedade civil, dois meses depois, para recuperar parte do atraso do país em relação aos outros países, que já estão no terceiro ou quarto informe. Para acompanhar esse processo, monitorar a implementação da Convenção e das recomendações do Comitê, pressionar o governo brasileiro a cumpri-las e a apresentar o relatório no prazo determinado, diversas organizações da sociedade civil e movimento sociais estão se articulando e unindo esforços.

O primeiro informe da sociedade civil foi elaborado pela Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced) em parceria com o Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (DCA). A idéia agora é aproveitar os aprendizados dessa primeira experiência e ampliar a participação no monitoramento, tornando-o um processo permanente e com caráter político. “Queremos que esse acompanhamento não só gere informações, mas que tenha uma dimensão transformadora e entre na agenda política. O relatório da sociedade civil vai ser o produto final, mas o processo até ele será tão importante quanto o produto final”, avalia Renato Roseno, da Anced. Segundo ele, até agora nada aconteceu a partir das recomendações do Comitê ao governo brasileiro.

A proposta levada pela Anced às organizações, redes, fóruns e movimentos sociais é de criar um sistema de monitoramento de direitos permanente, a partir das recomendações e de direitos garantidos na Convenção considerados bastante relevantes, mas que ficaram de fora delas. “Isso só faz sentido se gerar uma pauta política para a própria sociedade civil e para o movimento de defesa dos direitos de crianças e adolescentes”, reforça José Antonio Moroni, da Associação Brasileira de Organizações não Governamentais (Abong).

A primeira ação dessa coalizão será pressionar o governo federal para que apresente na data prevista, dia 27 de janeiro de 2006, o relatório sobre o Protocolo Facultativo para Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à venda de crianças, prostituição e pornografia infantis, e que a sociedade civil tenha acesso ao conteúdo dele. Além disso, pretendem obter informações de como o governo está se planejando para apresentar o relatório ao Comitê em 2007.

Uma das propostas a curto prazo é convidar ou convocar, por meio do poder legislativo, o responsável pela prestação de contas do cumprimento da Convenção e das recomendações. A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara ou a Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes seriam possíveis parceiros nesse sentido. Outra proposta é acionar o Ministério Público Federal (MPF), por meio da Procuradoria Geral dos Direitos do Cidadão, para cobrar ações do governo nesse sentido. “Precisamos também incorporar uma estratégia de pressão para que o governo apresente o relatório em 2007 e que nos mostrem o conteúdo antes de apresentá-lo”, ressalta Lúcia Nader, coordenadora de relações institucionais da Conectas Direitos Humanos.

Eles querem ampliar ainda mais o diálogo e a articulação nesse sentido, com outras redes, organizações e movimentos, em especial do movimento gay, de mulheres, quilombolas, indígenas, negros, de povos do cerrado e da Amazônia. Um dos maiores desafios, na verdade, é incluir crianças e adolescentes nesse processo, obedecendo a um dos princípios da Convenção, que é a participação infanto-juvenil. “Não pode ser uma discussão do mundo adulto falando com uma criança distante”, afirma Roseno.

Monitoramento é quase uma obrigação
De acordo com a paraguaia Rosa Maria Ortiz, membro do Comitê para os Direitos da Criança da ONU, o fato de não haver um plano nacional para implementar a Convenção, de não existirem suficientes dados para esse acompanhamento e do Brasil possuir uma Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e nada do mesmo nível para as crianças, obriga a sociedade civil a se organizar e ser mais efetiva ao impulsionar o Estado a honrar seus compromissos.

“Sem a sociedade civil o governo não tem condições de mudar tudo o que tem que mudar como país para assegurar os direitos das crianças brasileiras. Portanto, como um trabalho organizado e sério, por parte da sociedade civil, o monitoramento das recomendações do comitê é quase uma obrigação. Toda mudança em favor da infância implica primeiro numa pressão para que as distintas instâncias do governo mudem”, diz. Segundo ela, esse processo não é fácil porque a Convenção implica em muitas mudanças: da legislação, das instituições, da maneira de olhar a criança, obriga a fazer muita capacitação e ampla divulgação dela. “Não é suficiente mudar a lei, tem que capacitar permanentemente os aplicadores dessa lei e a sociedade em geral”, completa.

Essa capacitação se faz necessária porque há um quase completo desconhecimento da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança no país. Nesses 15 anos desde sua ratificação, a sociedade civil brasileira não se apropriou desse tema, por isso não se esforçou para monitorar a implementação dela nem a incorporou em sua agenda política, diferentemente do que ocorreu em outros países da América Latina. Uma das hipóteses para explicar esse fato é a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) anterior à Convenção ter sido ratificada pelo Brasil. “Pode parecer uma grande conquista, mas a desvantagem é que ela não teve tempo de ser divulgada e o ECA ocupou o espaço dela”, avalia a representante do Comitê. Ao mesmo tempo que o estatuto serviu como um marco referencial para a região, ele não permitiu que o conhecimento dos princípios da Convenção ajudassem a compreender essa nova legislação, que representa uma mudança de paradigmas.

Ela alerta que, com a reforma do Sistema ONU, que deve ser aprovada no início de 2006, o Comitê para os Direitos da Criança corre o risco de ser extinto. Embora isso ainda não tenha sido decidido, a informação que circula entre o alto comissariado da ONU é que existe um pedido por parte do Secretário Geral de simplificar o sistema de monitoramento das diferentes convenções porque os estados se queixam de que dá muito trabalho monitorar cada uma delas. No entanto, Rosa Maria Ortiz lembra que essas convenções se desprendem dos pactos justamente para se dar mais especificidades a cada uma das necessidades fundamentais que foram convertidas em direitos. “Se os Estados são comprometidos com essas convenções, têm que cumpri-las, e qualquer projeto tem uma etapa de avaliação. Por isso também é importante participar como sociedade civil desse debate de maneira a proteger esse sistema de monitoramento”, diz.

Da Agência Carta Maior

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