Desenvolvimento sustentável

Produção ilegal de carvão vegetal gera desmatamento e escravidão na Amazônia

Pesquisa mostra que aumento da produção de carvão vegetal para siderúrgicas favorece exploração ilegal de madeira e trabalho escravo no Pará e Maranhão. Quase 60% do carvão da região é produzido ilegalmente
Por Beatriz Camargo
 13/06/2006
Um dos pilares da produção ilegal de carvão é a exploração de trabalhadores (foto de João Roberto Ripper)

Utilizado para fabricar ferro-gusa, matéria-prima do aço, o carvão vegetal produzido na Amazônia Oriental brasileira é, em sua maioria, ilegal. De acordo com estudos realizados pelo historiador Maurílio de Abreu Monteiro, professor do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA), o desmatamento não-autorizado fornece 57,5% da madeira que alimenta os fornos das carvoarias.

Monteiro pesquisa a produção carvoeira desde o final da década de 80, quando as primeiras indústrias se instalaram nessa região sob a influência do projeto Grande Carajás. Ele afirma que o aumento da demanda pelo ferro-gusa e a competição entre os fornecedores de carvão favorecem a exploração do trabalho escravo nas carvoarias.

Segundo o professor da UFPA, a produção de 3,5 milhões de toneladas de carvão vegetal, consumida pelo setor siderúrgico brasileiro, requer um volume de 22,2 milhões de metros cúbicos (m³) em toras de madeira. Esse valor é muito superior ao volume autorizado (9,4 milhões de m³) pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para a extração no Maranhão e Pará. Esses estados são produtores de carvão contam com usinas siderúrgicas abastecidas com o minério de ferro da Serra dos Carajás. Ou seja, os mais de 12 milhões restantes são fruto da exploração ilegal.

Em entrevista à Repórter Brasil, Maurílio Monteiro fala da relação entre o crescimento da produção de carvão para alimentar as siderúrgicas, a exploração predatória dos recursos naturais e o aumento das tensões no campo. O estudo é parte do trabalho do grupo de pesquisa sobre mineração e desenvolvimento sustentável, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Repórter Brasil – Como foi feito o cálculo de que a maior parte da madeira utilizada na produção de carvão vegetal é ilegal?
Maurílio Monteiro – As próprias empresas, ao declararem a origem de sua matéria-prima, não souberam demonstrar de onde vêm 5,4 milhões de metros cúbicos do seu carvão, na auto-declaração de 2003. Em 2004, o volume aumentou para 12,7 milhões de metros cúbicos de carvão ilegal.

RB – Há uma estimativa do número de carvoarias da região?
É muito difícil saber quantas são porque a quase totalidade delas é clandestina. As siderúrgicas dizem que tem um volume "x" de área replantada, mas não dão as coordenadas dessas áreas, que poderiam ser facilmente identificadas por satélite. Fiz uma estimativa do número de trabalhadores, em função do volume de carvão produzido e cheguei a 12 mil pessoas que estão envolvidas com essa atividade na Amazônia Oriental.

RB – Quais são os problemas causados pela produção de carvão na Amazônia Oriental?
Além da pressão exercida sobre a mata primária, a produção de carvão contribui para reforçar a lógica produtiva ligada à exploração predatória e pouco qualificada dos recursos naturais. Por exemplo, se você tira uma madeira para fazer perfume, é uma utilização qualificada. Mas para fazer carvão é pouco qualificada. Além disso, as carvoarias ampliam as tensões no campo e os conflitos fundiários porque reforçam as disputas por áreas para produzir carvão. No começo, as siderúrgicas compravam grandes pedaços de terras, onde em tese deveriam fazer o manejo florestal. Mas elas tercerizavam para que outros fizessem esse "manejo" e produzissem o carvão. E não havia manejo, era feito o ‘corte seco' [derrubada da mata nativa]. No lugar em que todas compravam terra, aumentava a tensão porque a titulação de propriedade é precária na região. 

A alta competitividade do setor também intensifica os esquemas de submissão da força de trabalho à baixa remuneração, com condições de trabalho insalubres e trabalho escravo, degradante, infantil… O setor também traz o caos a diversos espaços urbanos porque muitas áreas de carvoejamento ficam perto de cidades e soltam fumaça e fuligem no ar. Em Marabá, houve uma luta para tirar as carvoarias do município.

RB – Por que as siderúrgicas estão estimulando a plantação de eucalipto em pequenas propriedades? Por que a própria siderúrgica não produz matéria-prima para o carvão?
São as siderúrgicas da região que estão tentando, agora, que pequenos produtores plantem eucaliptos em monocultura. Elas têm incentivado essa política de reflorestamento, mas não dão nenhuma garantia de compra da matéria-prima. Acredito que isso é um péssimo negócio para o pequeno produtor. Primeiro porque não é aconselhável a ter uma monocultura [para a agricultura camponesa] e, sem garantia de preço ou compra, não vai conseguir competir com o carvão que vem da extração ilegal da madeira. Quer dizer, as siderúrgicas não fazem reflorestamento, mas querem que os outros façam…

Isso é mais uma estratégia de externalizar os seus custos. Elas compram o carvão de quem vender mais barato e assim não tem riscos e não se compromete com exploração da mão-de-obra, com desmatamento ilegal. As siderúrgicas não assumem essa responsabilidade, vão sempre empurrando com os TACs [Termos de Ajustamento de Conduta]. Essas dinâmicas viabilizam a produção barata do carvão vegetal que, em última instância, representam uma brutal transferência para a sociedade de custos que são privados.

RB – Se todas as siderúrgicas plantassem eucalipto, isso poderia ser uma solução para o desmatamento ilegal?
Não, porque esse mercado é muito volátil. O preço do gusa é regulado pelo preço da sucata nos EUA. A oscilação é grande e desaconselha-se o investimento a longo prazo, como é o caso da silvicultura. O melhor é mudar a base energética, substituindo o carvão vegetal por gás natural. A tecnologia já é usada, é mais eficiente e mais barata. Ou melhor, o carvão hoje é mais barato porque existe transferência dos recursos, mas se fosse feito como deveria ser, com silvicultura e tudo regulamentado, os gastos com gás natural seriam menores. Se hoje o carv&atil
de;o é mais barato para as siderúrgicas, para a sociedade fica mais caro porque está destruindo parcelas da floresta. Essa opção não tem contribuído para desenvolver de forma economicamente sustentável a região. Os empresários deveriam tomar essa atitude e discutir alternativas para as fontes de energia.

RB – Com a produção de carvão totalmente regularizada, a região continuaria competitiva?
Se as siderúrgicas perdessem a capacidade de externalizar seus custos, perderiam competitividade. Hoje, só são competitivas no mercado internacional porque compram carvão vegetal de quem usa trabalho penoso, escravo ou infantil, não cumprem a legislação trabalhista e desmatam ilegalmente.

RB – A criação do Instituto Carvão Cidadão ajuda a modificar essa realidade?
É um avanço, pois mais olhos se voltam para a questão. Porém, não resolve pois toda a cadeia tem que ficar sob responsabilidade da siderúrgica: desde a biomassa vegetal, lá no início, até o final do processo, que é o ferro-gusa. Se não houver uma barreira à terceirização, sempre vai haver uma maneira de externalizar os custos. Cooperativa de carvoeiros, por exemplo, é mais um exemplo de ações para burlar o pagamento de impostos.

RB – Quais são as possíveis saídas para essa situação?
As siderúrgicas têm que se modernizar. Mudar a rota tecnológica, mudando para outra fonte de energia. Usar silvicultura é um avanço porque deixa de utilizar a mata primária, mas ela é custosa.

RB – A fiscalização realizada hoje ainda é insuficiente?
Historicamente, o poder público se mostrou incapaz de fiscalizar a ponto de impedir o uso de madeira oriunda de extração ilegal. Em Minas Gerais, que tem mais de 60 anos de produção de ferro-gusa, com uma sociedade civil mais organizada, não se conseguiu promover a legalização da atividade. O carvão sempre foi associado a procedimentos ilícitos. Nessa região, temos uma sociedade civil menos organizada e com menos capacidade de fiscalizar, então acho muito difícil que a fiscalização possa resolver a situação. Aliás, muitas siderúrgicas de Minas vieram para cá.

RB – O que motivou o deslocamento da produção do ferro-gusa para a Amazônia Oriental?
Esse deslocamento começou no final da década de 80, como parte do extinto projeto Grande Carajás. Antes, a produção se concentrava exclusivamente no Sudeste do Brasil. Um dos elementos do projeto foi incentivar a construção de guseiras e todas estão à margem da estrada de ferro Carajás [que liga o interior do Pará ao porto de São Luís, no Maranhão]. O fácil acesso à biomassa vegetal [madeira] barata e abundante, além do acesso ao minério de ferro de alta qualidade, também influenciaram. Inicialmente, houve incentivos fiscais para as empresas se mudarem e hoje existe o FNO [Fundo Constitucional de Financiamento do Norte], que dá financiamento público. Elas se aproveitam da logística oriunda do projeto Grande Carajás e a produção fica mais barata do que no Sudeste. Hoje, 80% do ferro-gusa da região é exportado para o EUA. Para se ter uma idéia, em 2005, foram 3.098 mil toneladas e a projeção para 2006 é de que serão exportadas 3.540 mil.

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