Segurança no trabalho

Proteção inadequada machuca e incomoda cortadores de cana

O uso de equipamentos de proteção inadequados na colheita da cana-de-açúcar pode causar desconforto e ferimentos nos trabalhadores. Empregadores não tem fornecido quantidade necessária e trabalhadores são obrigados a improvisar
Por Iberê Thenório
 09/06/2006

Luvas que machucam, óculos que embaçam, botas endurecidas que causam calos e bolhas nos pés. Criados para proteger o trabalhador rural, os equipamentos de proteção individual (EPIs) agrícolas são alvo freqüente de reclamações dos cortadores de cana. Muitos não se adaptam ao corpo do trabalhador, ao clima da região ou ao serviço. De uso obrigatório, quem se negar a utilizá-los pode ser demitido por justa causa, mesmo que a empresa forneça um equipamento incômodo e inadequado. E a empresa multada, em caso de fiscalização do governo.

Em pesquisa realizada em São Paulo pela Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), em março de 2002, constatou-se que todos os EPIs fornecidos para o corte da cana (luvas, perneiras, sapatos e óculos) causavam desconforto e podiam trazer riscos ao trabalhador. Quatro anos depois, praticamente não houve mudança na qualidade dos produtos de proteção, que, para serem comercializados, necessitam de aprovação do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

O problema mais crítico, de acordo com a pesquisa, são as luvas de proteção. De tamanho inadequado, não fornecem atrito suficiente com o cabo do facão, que pode escorregar no momento do corte e ferir o trabalhador. Os óculos protegem os olhos, mas embaçam, dificultando a visão. As perneiras, feitas para manter as pernas a salvo da lâmina do facão, causam ferimentos no joelho e esquentam, e os sapatos, quando endurecem e molham por causa do suor e da chuva, não podem ser lavados, pois raramente os empregadores fornecem mais do que o par obrigatório.

Ex-cortador de cana e hoje presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Andradina, Aparecido Bispo conta que há muitas queixas. "A cana, quando queima, solta um melaço, que é grudento e mistura com o suor. Meleca os óculos, endurece a luva e resseca a bota."

Normas polêmicas
A legislação brasileira obriga toda empresa a fornecer gratuitamente os EPIs. Cabe também ao empregador fiscalizar o uso dos equipamentos, sob risco de multa. Como é a empresa que escolhe qual a marca e modelo será comprado, e o trabalhador pode ser demitido caso se negue a utilizar o equipamento, os problemas acabam sempre nas mãos do cortador de cana, literalmente. "As empresas querem o EPI apenas para não serem multadas", reclama Aparecido.

Hoje, apenas os equipamentos que possuem um certificado de aprovação (CA), fornecido pelo MTE, podem ser comercializados. Contudo, os parâmetros utilizados para testar os EPIs não levam em consideração o conforto do trabalhador. Toda a avalização dos produtos para a obtenção do certificado é realizada em laboratório, longe dos canaviais. "As normas existem para proteger de um risco, e se limitam a avaliar isso", relata Maria Cristina Gonzaga, engenheira agrônoma da Divisão de Ergonomia da Fundacentro e autora da pesquisa. Um dos maiores problemas, de acordo com a pesquisadora, é que não se exige a fabricação dos equipamentos em vários tamanhos, causando problemas para pessoas que têm um tipo físico diferente da média.

No caso dos EPIs para a agricultura, o MTE também não conta com estrutura para fiscalizar o cumprimento das normas avaliadas no Certificado de Aprovação. De acordo com com Maíra de Campos Souza, coordenadora geral de normatização e programas do MTE, são os auditores do trabalho que devem avaliar, em suas visitas ao campo, se o equipamento está servindo corretamente ao trabalhador. A ação dos fiscais, contudo, é limitada. Roberto Figueiredo, chefe da fiscalização rural da Delegacia Regional do Trabalho de São Paulo (DRT-SP), conta que pouco é possível fazer quando os EPIs são certificados. "Podemos exigir a troca quando o equipamento está deteriorado, mas se ele tem CA e está novo, podemos apenas dar uma sugestão para que se compre outro", declara.

Ao mesmo tempo em que há EPIs desconfortáveis que obtêm aprovação, existem equipamentos aprovados pelos trabalhadores que não conseguem o certificado. É o caso dos óculos de proteção que têm uma tela metálica no lugar das lentes e não embaça em contato com o suor. Hoje, é o preferido dos cortadores, mas a empresa que fornecê-lo como EPI está sujeita a multas, pois o produto não é autorizado pelo MTE. Fabricantes do equipamento reclamam que não conseguem a certificação porque o ministério não tem laboratórios especializados para testá-lo. "Fabricamos meio milhão desses óculos, e foram todos vendidos. Também fabricamos o outro [com lentes], mas não dá para usá-lo na cana. Imagine-se a 40 graus, transpirando pelo olho", reclama Moisés Brito Filho, gerente do departamento técnico da Iris Safety, fabricante de equipamentos de segurança.

Por conta própria
Outra reclamação constante dos trabalhadores é quanto ao número de equipamentos fornecidos e seu tempo de duração. Os sapatos, que sujam e ressecam, não podem receber manutenção, pois é comum que se forneça apenas um par, que precisa ser levado ao trabalho todos os dias. Com as luvas, o problema é semelhante: "elas não duram mais do que 15 dias e, muitas vezes, a empresa fornece apenas uma a cada mês. O mesmo acontece com o facão. Há casos em que o próprio empregado tem que comprá-los", conta o procurador do Ministério Público do Trabalho, Aparício Querino Salomão.

Sem poder abandonar nem trocar os equipamentos, resta aos cortadores o velho jeitinho brasileiro. Para as luvas que endurecem e machucam as mãos, utlizam uma outra luva por baixo, de tecido mais macio. O facão escorregadio é revestido com borracha de câmara de pneu, aumentando a aderência. Para a proteção dos braços, o que era provisório já está sendo industrializado. O mangote – pedaço de pano que protege os braços – era feito com pernas de calças usadas e, hoje, já é fornecido por algumas empresas como equipamento obrigatório.

Mas vale lembrar que, apesar de necessários, os EPIs não podem ser considerados o item principal para a segurança do trabalhador. "O mais importante é o ambiente do trabalho. O equipamento existe como último recurso. Se tudo se baseasse nele, o trabalhador iria trabalhar amontoado de EPIs", alerta Maíra Souza.

E o ambiente de trabalho no corte da cana ainda está longe de ser seguro.

 

Conheça as sugestões de mudanças nos EPIs segundo pesquisa da Fundacentro, ou baixe em PDF a pesquisa completa realizada em 2002.

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