Cana-de-açúcar

Usina é condenada em R$ 500 mil por condições degradantes de trabalho

Justiça condena Destilaria Gameleira, localizada em Confresa (MT), por más condições de trabalho de seus empregados. Empresa já foi palco da maior libertação de escravos realizada, quando 1003 pessoas foram resgatadas
Por Iberê Thenório
 09/11/2006

A Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia (MT) condenou a Destilaria Gameleira, localizada em Confresa, também no Mato Grosso, a pagar R$ 500 mil ao Fundo de Amparo ao Trabalhador a título de danos morais coletivos pelas más condições de trabalho em que se encontravam 348 de seus empregados. A decisão é de primeira instância e foi tomada em 19 de outubro pelo juiz do trabalho João Humberto Cesário.

A ação contra a Destilaria foi impetrada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), e o julgamento ocorreu à revelia, pois a empresa não compareceu ao tribunal para prestar esclarecimentos. A Gameleira, que hoje pertence à Destilaria Araguaia, ainda pode recorrer.

Em nota pública, divulgada na quinta-feira (9), Eduardo Queiroz Monteiro, diretor da Gameleira, afirmou que a Destilaria Gameleira "cumpre, com absoluto rigor, todos os seus compromissos trabalhistas. A comunidade local e seus trabalhadores sabem disso. Lamenta que interesses menores levem a uma compreensão da empresa que não corresponde à realidade. Já instruiu seus advogados e confia serenamente no pronunciamento da justiça".

Além de pagar a multa, a decisão judicial prevê que a empresa terá que adotar várias medidas para se enquadrar na legislação trabalhista. Entre elas estão a interrupção do aliciamento de trabalhadores, suspensão de descontos ilegais no salário dos empregados e concessão de pelo menos 11 horas de descanso entre cada jornada de trabalho. Caso não tome essas medidas, ela terá que pagar R$ 50 mil por cada item descumprido.

Em sua decisão, o juiz afirma que as situações encontradas na propriedade são "fato denunciador do seu desprezo para com os fundamentos republicanos da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho".

O coordenador nacional dos grupos móveis de fiscalização do MTE, Marcelo Campos, avaliou positivamente a decisão: "essa condenação legitima o trabalho do grupo móvel e fortalece a nossa convicção inicial, no momento da fiscalização, de que os trabalhadores estavam realmente em situação muito degradante". 

Reincidência
Em 2005, a empresa foi palco do maior resgate de trabalhadores em condições análogas à de escravidão, quando 1003 pessoas foram retiradas da propriedade. A ação ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho foi causada, contudo, pelas más condições trabalhistas em que se encontravam os empregados em outras duas fiscalizações realizadas no local: em 2001, o grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) libertou 272 pessoas da fazenda de cana-de-açúcar e, em 2003, mais 76.

A Gameleira se tornou conhecida nacionalmente após quatro operações de fiscalização encontrarem condições degradantes de trabalho em sua fazenda de cana-de-açúcar. As reincidentes fiscalizações levaram a destilaria a ser inserida na "lista suja" do trabalho escravo, organizada e mantida pelo governo federal.

Em maio deste ano, a propriedade passou por uma mudança, sendo incorporada à recém-criada Destilaria Araguaia. Para reverter a imagem negativa que se associou ao nome "Gameleira" depois dos escândalos, o empresário Eduardo de Queiroz Monteiro, dono do grupo EQM, comprou a parte da fazenda que pertencia a sua família, adquiriu mais terras, ampliou as instalações e trocou o nome da propriedade. Eduardo é irmão de Armando de Queiroz Monteiro Neto (PTB-PE), presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Na época, o grupo EQM informou que na Araguaia tudo seria avançado, inclusive o tratamento dispensado aos funcionários. Instalações modernas não só para fabricar álcool, mas também para o conforto dos trabalhadores. Anunciou que cumpriria todos os aspectos da lei, como as regulamentações do trabalho rural da norma NR31. Prometeu que iria garantir para os 240 trabalhadores fixos e 750 temporários alojamentos decentes, alimentação balanceada servida em restaurantes móveis e, o mais importante, carteira assinada e todos os direitos trabalhistas.

Pressão econômica
Grandes distribuidoras de combustível cortaram contratos com a Gameleira, no ano passado, quando tomaram conhecimento que comercializavam com uma empresa que estava na "lista suja".

Após empresas como Ipiranga e Petrobrás assumirem esse comportamento, o então presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP-PE) fez uma "consulta" com o objetivo de descobrir por que o álcool da Gameleira não estava mais sendo comprado. Segundo ele, essa ação foi realizada a pedido de deputados federais. Na época, a repercussão na imprensa e junto à sociedade civil do lobby do parlamentar agindo em prol da iniciativa privada foi bastante negativa.

A suspensão dos acordos comerciais entre a Gameleira e as distribuidoras também foi provocada pela divulgação de levantamento que identificou a cadeia produtiva do trabalho escravo no país. A pesquisa, solicitada em 2004 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, serviu de embasamento para que fosse firmado o Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, iniciativa do Instituto Ethos de Responsabilidade Social e da Organização Internacional do Trabalho. O Pacto, assinado no dia 19 de maio em Brasília, inclui grandes empresas como Coteminas, Carrefour, Pão de Açúcar, Wal-Mart, Votorantin, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.

A pesquisa aponta que a Galemeira comercializava com a Ipiranga, Petrobrás, Shell, Texaco, Total e PDV, fornecendo combustível principalmente para as regiões Norte e Nordeste. Dessas, Ipiranga, Petrobrás, Shell e Texaco assinaram o pacto. No dia 11 de maio de 2005, os advogados da família Queiroz Monteiro conseguiram uma liminar na Justiça do Trabalho suspendendo o nome de sua fazenda da "lista suja", base utilizada pela pesquisa sobre a cadeia produtiva. Contudo, signatários mantiveram a interdição de compra, como a Ipiranga. Fontes dessa empresa revelaram que a decisão da companhia seguiu determinações do pacto e é coerente com uma conduta de ética e de responsabilidade social.

Devido a uma decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 10a Região, a Gameleira retornou à "lista suja" no último dia 09 de outubro.

Libertação recorde
Em junho de 2005, a operação do grupo móvel de fiscalização do MTE, que contou com a participação do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal, libertou 1003 pessoas escravizadas da fazenda. A ação ocorreu após denúncias que envolviam violência física contra os peões.

"A situação aqui é horrível. Há superlotação dos alojamentos, que exalam um mau cheiro insuportável. A única águ
a que recebe tratamento é aquela que vai para as caldeiras e não para os trabalhadores. A alimentação estava estragada, deteriorada. O caminhão chega jogando a comida no chão. Pior do que a comida que se dá para bicho, porque esse pelo menos tem coxo", afirmou na época Humberto Célio Pereira, auditor fiscal do Trabalho e coordenador do grupo móvel de fiscalização.

De acordo com ele, todas as características confirmaram a existência de escravidão contemporânea, do aliciamento ao endividamento e à impossibilidade de deixar o local. Os trabalhadores foram levados de Pernambuco, Maranhão e Alagoas, iludidos pelas falsas promessas de salários e boas condições de serviço dadas pelos "gatos" (contratadores de mão-de-obra a serviço da usina). Ninguém recebia salário e era obrigado a comprar tudo da cantina da empresa, com preço acima do mercado. Os gastos eram anotados para serem descontados do pagamento final – sempre menor do que o combinado pelo "gato". Devido às péssimas condições de saneamento e higiene, não raro ficava-se doente. Contudo, até o soro recebido nas crises de diarréias era descontado dos peões.

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Colaborou Beatriz Camargo

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