Artigo

A mídia contra os trabalhadores do país?

As grandes empresas de comunicação não deveriam tentar a aprovação de uma lei que mantém milhares de pessoas à margem de seus direitos e distantes da cidadania
Por Leonardo Sakamoto
 08/02/2007

O projeto de lei nº 6.272/05, que cria a "Super Receita", contém uma emenda impedindo auditores fiscais do trabalho de reconhecerem vínculos de emprego entre patrões e empregados. A emenda prevê que apenas a Justiça do Trabalho estaria autorizada a dizer se uma pessoa é ou não empregada de outra. Sua votação está prevista para segunda-feira (12), na Câmara dos Deputados.

Na prática, a nova lei inviabiliza fiscalizações do MTE nos casos de trabalho escravo. Caso uma equipe de funcionários públicos encontre trabalhadores sem carteira assinada em uma fazenda, o empregador pode simplesmente alegar que as pessoas ali não têm vínculo com ele. E só caberia à Justiça do Trabalho, caso algum empregado entrasse com uma ação judicial, definir quem tem razão: o empregador ou a equipe de fiscalização. Os auditores estariam impossibilitados de aplicar autos de infração, que hoje constituem um dos instrumentos mais importantes no combate à escravidão.

Mas a lei, apesar de alegrar fazendeiros desonestos, não foi proposta por eles.

Em julho do ano passado, o gabinete do então senador Ney Suassuna (PMDB-PB) afirmou à Repórter Brasil que propôs essa emenda atendendo a pedido de empresas de comunicação, que costumam utilizar serviços de jornalistas colaboradores na forma de pessoas jurídicas. O artifício isenta os veículos de comunicação do pagamento de encargos trabalhistas.

Nesses últimos dias, o lobby em Brasília tem sido grande a favor da emenda.

O parecer do deputado federal Pedro Novais (PMDB-MA) sobre a emenda ao projeto da "Super Receita" que trata do reconhecimento do vínculo empregatício dificilmente passaria pelo crivo de um jurista mais atento. Para entender por quê, segue abaixo, na íntegra.

Não há dúvida de que o intrincado complexo de normas destinadas a disciplinar o funcionamento de sociedades comerciais representa um grave entrave à modernização do país. Malgrado os inúmeros esforços despendidos em sentido contrário, o país continua sendo vítima de um paradigma incompatível com a economia contemporânea: o de que a norma substitui os que devem cumpri-la e produz, por si só, um mundo perfeito.

Nos países mais avançados, a legislação trabalhista é quase sempre extremamente liberal. O relacionamento diferenciado entre patrões e empregados se verifica, como no Japão, não por força do ordenamento jurídico, mas em decorrência de costumes solidamente arraigados no seio da população.
Na opinião da relatoria, o Estado não pode substituir a vontade do profissional que se lança ao mercado de trabalho sob o guarda-chuva de empresa individual.

Cabe a ele, e não à fiscalização estatal, emitir juízo de valor a respeito, salvo em situações extremas, nas quais de fato é necessária a intervenção do poder de polícia estatal. A excepcionalidade de situações como essa de fato necessita, para não se banalizar, do prévio crivo de autoridade judicial.

A emenda merece, pois, pleno acolhimento.

Novais parece ignorar que a legislação é liberal em alguns países desenvolvidos porque há uma realidade social diferente. Os "costumes solidamente arraigados", aos quais o relator se refere, garantem que os trabalhadores japoneses tenham acesso a direitos que no Brasil só se efetivam através da aplicação de leis. É assim, infelizmente, e podemos discutir maneiras de mudar isso. Mas não é com um passe de mágica, sacrificando os direitos trabalhistas, que pularemos do terceiro para o primeiro mundo.

O Brasil não é subdesenvolvido porque há regras demais que engessam a economia, mas ao contrário: as regiões e populações à margem do sistema têm sido exploradas porque há liberdade para isso. Por exemplo, para aumentar sua capacidade de concorrer no mercado, há produtores rurais brasileiros que negam os direitos mais básicos aos trabalhadores, como a liberdade de ir e vir, diminuindo assim os custos com mão-de-obra.

O relator parece acreditar que o livre mercado é uma entidade (abstrata, é claro) de "bom coração". Porém, se setores como a telefonia precisam de regulação para evitar abusos, por que o trabalho não? A experiência das fiscalizações do Ministério do Trabalho e Emprego mostra que a não-interferência do Estado tem possibilitado a muitos empregadores se eximirem as suas responsabilidades. Prova disso é o fato de a maior concentração de trabalhadores libertados da escravidão estar exatamente na região de expansão agrícola amazônica, onde o poder público é, historicamente, presente para patrões (que conseguem empréstimos e subsídios), mas ausente para o trabalhador.

Os mais pobres não têm outra opção a não ser aceitar as condições de serviço, caso não queiram ficar desempregados. Mas, independente da vontade de um profissional, o Estado tem a obrigação constitucional de zelar para que sejam respeitados os seus direitos fundamentais, entre eles o direito a um trabalho decente e a uma remuneração justa, possibilitando qualidade de vida à sua família.

Se as grandes empresas de comunicação querem rediscutir a situação trabalhista, que procurem o nosso sindicato ou que proponham mudanças para serem debatidas democraticamente com a participação da sociedade civil no Congresso. Se elas querem mudanças e têm argumentos é importante que eles sejam discutidos e analisados.

Mas que não forcem a aprovação de uma lei, por baixo do pano, que faz apenas silenciar a fiscalização, mantendo milhares de trabalhadores pobres distantes da cidadania.

Colaborou Iberê Thenório

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