Trabalho decente

Dez mentiras sobre o projeto que muda a fiscalização do trabalho

Polêmica sobre a emenda número 3 ao projeto que cria a Super Receita gerou afirmações que não correspondem com a realidade. Confira dez exemplos identificados pela Repórter Brasil
Por Repórter Brasil
 07/03/2007

O presidente Lula tem pouco mais de uma semana para vetar ou aprovar o projeto de lei que cria a Super Receita, assim como suas emendas. Dentro do documento, que tem 37 páginas, uma emenda de sete linhas vem suscitando polêmica. Ela impede auditores fiscais de apontar vínculos empregatícios entre patrões e funcionários quando forem encontradas irregularidades. Só a Justiça do Trabalho, de acordo com o texto, poderia estabelecer tais vínculos:

"No exercício das atribuições da autoridade fiscal de que trata esta Lei, a desconsideração da pessoa, ato ou negócio jurídico que implique reconhecimento de relação de trabalho, com ou sem vínculo empregatício, deverá sempre ser precedida de decisão judicial."

Segundo especialistas e juristas contrários à emenda, a lei poderá ser uma carta branca para que empregadores desrespeitem direitos do trabalhador. Do outro lado, entre outros argumentos, os defensores da emenda dizem que os auditores federais não devem estabelecer vínculos empregatícios que venham a inibir relações comerciais entre empresas e prestadores de serviços.

No meio da polêmica, a Repórter Brasil selecionou dez afirmações comuns feitas pelos defensores da emenda 3 da Super Receita que não correspondem à realidade. Confira:

1 – Essa emenda não afeta o combate ao trabalho escravo.
Um recurso muito utilizado pelos empregadores para fugir de suas obrigações é a contratação de pessoas jurídicas cujos donos são "gatos" (contratadores de mão-de-obra a serviço de fazendeiros). Quando chega a fiscalização do trabalho, o fazendeiro tenta alegar que não tem nada a ver com aqueles trabalhadores, pois eles estão sob responsabilidade da empresa do "gato" – muitas vezes aberta pelo próprio fazendeiro para terceirizar as suas responsabilidades trabalhistas. Esse argumento não tem sido aceito pelos grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

"Há gatos com roupa de pessoa jurídica. Há também falsas cooperativas de trabalho utilizadas para mascarar trabalho escravo. É uma estratégia usada para burlar as obrigações trabalhistas", explica o coordenador da área de trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra, Xavier Plassat.

Em carta enviada ao presidente Lula pedindo veto à emenda, os chefes de fiscalização dos grupos móveis do MTE alertam para essa prática. "Os auditores fiscais do trabalho não poderão reconhecer o vínculo de emprego existente entre os trabalhadores encontrados em condição análoga à de escravo e o proprietário da fazenda ou empreendimento de onde foram resgatados, bastando, para isso, que exista à frente destes trabalhadores um 'gato', aliciador de mão-de-obra, que possua empresa formal e alegue ser o empregador", diz um trecho do documento.

Um exemplo ocorreu em 2003, durante uma ação de fiscalização que libertou 22 trabalhadores em situação de escravidão na fazenda Entre Rios – de plantação de arroz e soja – a 125 quilômetros do município de Sinop, Norte de Mato Grosso. De acordo com Valderez Monte, coordenadora da operação, uma empresa de prestação de serviços que respondia pela contratação para a fazenda estava em nome de dois "gatos". A JS Prestadora de Serviços funcionava como fachada para encobrir o desrespeito aos direitos trabalhistas.

2 – As pessoas têm que ter liberdade de se constituir como pessoa jurídica e prestar serviços. A liberdade de iniciativa deve ser preservada.
Ninguém está impedido de abrir empresas prestadoras de serviço. O que não pode acontecer é que essas empresas sirvam para esconder um vínculo entre empregado e patrão. "Há muitas pessoas jurídicas criadas para não recolher impostos sobre a folha de pagamento", informa Sebastião Caixeta, presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT).

Rosa Campos Jorge, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), conta como funciona um caso típico de contratação irregular: "Já fiscalizei uma empresa de distribuição de gás que demitiu várias pessoas e exigiu que eles constituíssem pessoas jurídicas para continuar trabalhando. Eram operadores de manutenção. Mesmo depois disso, eles usavam o macacão da empresa, a caminhonete da empresa, ficavam no galpão da empresa esperando ordens. Na prática, eram empregados, e exerciam a mesma função de antes, mas ganhando menos."

3 – O único órgão que deve ter poderes para desconsiderar pessoas jurídicas e apontar vínculos empregatícios é a Justiça do Trabalho.
"Essa afirmação desconsidera o poder de polícia que o Estado tem para fiscalizar e exigir a aplicação correta da lei. Além disso, os atos do executivo são submetidos à análise do judiciário. Primeiro se faz a fiscalização, e depois se discute se ela foi correta ou não", explica o juiz do trabalho e presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), José Nilton Pandelot.

A existência da fiscalização do trabalho é exaustivamente tratada em convenções da Organização Internacional do Trabalho, do qual o país é signatário. No Brasil, a lei nº 10.593 de 2002 prevê que cabe ao auditor fiscal do trabalho "o cumprimento de disposições legais e regulamentares, inclusive as relacionadas à segurança e à medicina do trabalho, no âmbito das relações de trabalho e de emprego".

4 – A emenda não tem nada a ver com a fiscalização do trabalho. Apenas diz respeito à fiscalização da Receita Federal.
Uma das novidades trazidas pela Super Receita é justamente a alteração da lei nº 10.593 de 2002, que regulamenta as carreiras dos auditores fiscais da receita, da previdência e do trabalho. Apesar da emenda estar contida no artigo que dispõe sobre os auditores da Receita Federal, a redação dela diz: "no exercício das atribuições da autoridade fiscal de que trata esta lei", ou seja, são afetados, também, os auditores da previdência e do trabalho.

"Isso foi um ardil utilizado de forma maliciosa para atingir os auditores fiscais do trabalho. Se fosse para afetar só os auditores da receita, diriam ‘artigo', e não ‘lei'", afirma a presidente do Sinait.

Para o presidente da Anamatra, o texto afetará a fiscalização do trabalho, já que não a exclui da lei. "Onde o legislador não distinguiu, não cabe ao intérprete [o juiz] fazê-lo. A emenda da Super Receita, en
tão, se aplica a toda a fiscalização", afirma.

5 – Caso a emenda seja aprovada e um auditor verifique uma situação ilegal, ele pode denunciar o caso na Justiça do Trabalho.
Somente as partes envolvidas no caso ou o Ministério Público do Trabalho (MPT) podem abrir um processo na Justiça. "O trabalhador subordinado que precisa do emprego não irá procurar a Justiça do Trabalho", garante Pandelot. O MPT também não pode atuar nessas situações, conforme explica Caixeta: "O MPT pode atuar na defesa do direito coletivo ou nos direitos individuais indisponíveis, como o direito à vida e à segurança. Não cabe ao MPT entrar com uma ação para reconhecer o vínculo de apenas uma pessoa."

6 – As chamadas "empresas de uma pessoa só" são entidades que atuam legalmente. Apenas são uma forma de contratar que gera menos encargos.
A afirmação é verdadeira apenas nos casos em que essas pessoas jurídicas realmente atuam como empresas. Muitas vezes, porém, essas entidades são criadas com o intuito de mascarar relações trabalhistas. As pessoas que fazem parte delas trabalham apenas para uma empresa, têm que cumprir horários e responder a um chefe. Tudo isso é presente em uma relação de emprego, e não em uma relação entre empresas.

Uma agência de publicidade, por exemplo, pode ter vários clientes e ter contratos de prestação de serviços com eles. Isso está previsto em lei. Um publicitário, contudo, não pode abrir uma pessoa jurídica para trabalhar dentro de uma empresa, estando subordinado às mesmas regras à que estão os funcionários do local.

7 – O auditor fiscal tem poderes ilimitados, muitas vezes prejudicando o empregador.
Quando uma empresa é multada por um auditor fiscal, o empregador tem dez dias para se defender no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Caso sua defesa não seja aceita, são dados mais dez dias para que a empresa recorra novamente. Se, mesmo assim, o recurso for negado, o empregador pode acionar a Justiça do Trabalho.

8 – Hoje, já não é permitido aos auditores desfazer atos jurídicos entre duas empresas. A emenda só ratifica o que já existe na lei.
Os auditores do trabalho não desfazem os contratos entre pessoas jurídicas. No entanto, se ficar comprovado que um contrato serve para mascarar uma relação de trabalho, o fiscal age como se ele não existisse. O artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê que esses documentos perdem a validade quando são feitos para sustentar situações ilegais:

"Art. 9º – Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação."

A chefe da Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE, Ruth Vilela, explica que os fatos observados pelos auditores valem mais do que o escrito nos papéis: "O direito do trabalho tem um princípio, que é o da primazia da realidade. Você levará mais em consideração a realidade encontrada do que aquilo que estiver em documentos".

9 – O veto à emenda aumentaria a informalidade, já que hoje muitas pessoas trabalham legalmente por meio de pessoas jurídicas.
Os únicos afetados seriam aqueles que já atuam ilegalmente. "O que existe, e tem sido reprimido, são falsas pessoas jurídicas, falsas cooperativas, falsas parcerias ou contratos de empreitadas. Sem dúvida seria esse tipo de contrato que cresceria vertiginosamente caso a emenda fosse aprovada", conta Sebastião Caixeta.

De acordo com José Nilton Pandelot, não é por meio de leis que a informalidade vai acabar. "O que vai aumentar a formalidade é o desenvolvimento e a aplicação de políticas públicas para aumentar o número de empregos e garantir renda para o cidadão brasileiro."

10 – O veto à emenda impede o setor de serviços de crescer e gerar empregos.
O crescimento de um setor não pode depender de situações que fogem à lei. O veto impede que lucro seja obtido através da exploração ilegal do trabalhador. "Estão querendo manter uma situação de ilegalidade pelo máximo de tempo. Querem lucrar com a demora dos processos na Justiça", alerta Caixeta.

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