Velho Chico

Em meio a fogo cruzado, Ibama autoriza início da transposição

Na véspera da decisão, MPF havia recomendado ao Ibama que não expedisse a licença de instalação antes da conclusão dos projetos que detalharão as obras e da realização de novas audiências públicas
Antônio Biondi
 23/03/2007

A última peça que faltava para o governo federal iniciar as obras da transposição das águas do São Francisco foi apresentada nesta sexta (23), quando o Ibama (Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) anunciou a emissão da licença de instalação para o projeto. Segundo nota da assessoria de comunicação do instituto divulgada na tarde desta sexta, a licença de instalação emitida autoriza o Ministério da Integração Nacional (MIN) "a iniciar as obras dos trechos I e II do Eixo Norte e do trecho V do Eixo Leste do Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional".

Na véspera da decisão do Ibama, Francisco Guilherme Vollstedt Bastos, procurador do Ministério Público Federal do Distrito Federal (MPF-DF) havia recomendado ao presidente do instituto, Marcus Luiz Barroso Barros, a não expedir a licença de instalação para a transposição do São Francisco até que os projetos executivos (com o detalhamento das obras e que tiveram seus editais lançados em janeiro) fossem concluídos e analisados pelo Ibama e até que fossem realizadas audiências públicas para debater os estudos ambientais complementares que foram exigidos após a emissão da licença prévia.

A licença de instalação emitida nesta sexta-feira é válida por quatro anos, com validade condicionada ao cumprimento de 51 condicionantes a serem cumpridas pelo MIN ao longo da obra destes trechos. Entre as condicionantes, está a de o empreendedor priorizar a contratação da mão-de-obra local. Por solicitação da Funai (Fundação Nacional do Indío), o MIN deverá apresentar Plano de Ação detalhando diversos aspectos do projeto, de modo que a fundação possa avaliar melhor os impactos referentes à sua área. Além disso, terá de ser celebrado convênio entre o ministério e a Funai voltado à implementação do "Programa de Etnodesenvolvimento das Comunidades Indígenas Truká, Tumbalalá, Pipipã e Kambiwa".

A licença de instalação apresenta ainda condicionantes referentes ao reassentamento de populações e à execução do "Programa de Apoio às Comunidades Quilombolas". Por fim, o Ibama deverá se dedicar a monitorar diversos programas ligados à transposição, que dizem respeito, por exemplo, à redução de perdas, ao reuso e à qualidade de águas; aos processos erosivos; à recuperação de áreas degradadas; à prevenção à desertificação; à conservação da fauna e flora; e ao uso do Entorno e das águas dos reservatório.

Alternativas e antecedentes
Na semana passada, ao mesmo tempo em que o governo lançava o edital de R$ 3,3 bilhões para a licitação das obras – ainda sem contar com a licença do Ibama – centenas de integrantes de movimentos sociais foram a Brasília protestar contra o projeto, dialogar com representantes dos três Poderes e propor alternativas à obra e para o desenvolvimento do Semi-Árido.

O coordenador do projeto, Rômulo de Macedo Vieira, do MIN, afirmou em entrevista à Agência Brasil na última quinta-feira (22) que homens do Exército já se encontravam a postos para dar início ao projeto logo que a licença fosse emitida. A agência registrava, além disso, que, "em apresentação a integrantes do governo, o coordenador descartou alternativas sugeridas ao projeto, como a construção de cisternas, adutoras e açudes, abertura de poços, reaproveitamento de águas já utilizadas, dessalinização de águas subterrâneas e chuvas artificiais". Para Macedo, "são todas alternativas caras e renderiam pouco volume de água", O coordenador do projeto apresentou ainda dados de que a transposição custará cerca de R$ 400 por habitante das regiões beneficiadas, enquanto a construção de uma adutora custaria pelo menos R$ 1.000.

O projeto prevê a construção de dois canais: o chamado Eixo Leste, que levará água para Pernambuco e Paraíba, a partir da captação no lago da barragem de Itaparica; e o Eixo Norte, abastecendo o Ceará e o Rio Grande do Norte com a retirada sendo feita nas imediações da cidade de Cabrobó (PE). No total, serão construídos cerca de 720 km de canais.

Para abastecer os dois canais da transposição, a ANA (Agência Nacional de Águas) outorgou a retirada contínua de 26 metros cúbicos de água por segundo, ou 1,4% da mínima vazão do rio a ser garantida pela Chesf (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco), que é de 1.850 metros cúbicos por segundo na foz. No período de chuvas, a agência autorizou um volume captado de até 127 metros cúbicos por segundo.

Para Ruben Siqueira, integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na Bahia, a emissão da licença pelo Ibama nesta sexta demonstra "que o governo teme que se avolumem as críticas ao projeto de transposição e o apoio às alternativas", entre elas as obras apresentadas como prioritárias pela ANA no "Atlas do Nordeste", que, a um custo de R$ 3,6 bilhões, poderia beneficiar até 34 milhões de pessoas – a transposição conta com R$ 6,6 bilhões no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e a previsão é de que possa beneficiar 12 milhões de pessoas.

"Tendo que assumir que a transposição é para usos econômicos intensivos em água voltados para a exportação, ficará mais difícil a aceitação pública da obra, também na região beneficiária que espera, equivocadamente, água de graça para matar a sede, sem se dar conta de que deverá pagar os custos dos usos econômicos", analisa Siqueira, da Articulação Popular para a Revitalização do Rio São Francisco. Para ele, "o governo corre contra o tempo".

Embora a licença de instalação tenha sido emitida pelo Ibama, algumas batalhas jurídicas ainda se avolumam no horizonte do projeto da transposição. No Supremo Tribunal Federal, por exemplo, pairam várias ações de entidades e de órgãos como o MPF e o Ministério Público Estadual da Bahia, que aguardam julgamento definitivo do STF, após o ministro do tribunal Sepúlveda Pertence ter derrubado em dezembro de 2006 todas as liminares contrárias ao projeto. Em fevereiro último, o procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, apresentou recurso ao STF pedindo a suspensão da licença ambiental para a obra e a cassação da licença prévia, além de solicitar que o Congresso Nacional e as populações indígenas fossem consultados quanto ao projeto.

Éden Pereira Magalhães, secretário executivo do Conselho Ind
igenista Missionário (Cimi) destaca que, com a licença ambiental do Ibama, "o governo continua tentando passar por cima da obrigação de consultar os povos indígenas e o Congresso Nacional sobre o aproveitamento dos recursos naturais em terras indígenas". Para o secretário executivo do Cimi "começar a obra sem isso é uma atitude que fere a Constituição Federal e também desrespeita a Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho] – que este mesmo governo promulgou".

Na quarta-feira da semana passada (14), em encontro no qual recebeu representantes de entidades contrárias à transposição, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, já havia sinalizado o caminho que o Ibama seguiria. Falando a respeito da licença prévia que o órgão havia emitido em 2005, Marina foi categórica: "Nossa decisão não é política. Não é a favor do governo ou dos movimentos. É uma decisão exclusivamente técnica sobre um processo de licenciamento transcorrido com absoluta isenção e independência".

Para Ruben Siqueira, o fato de o Ibama não ter seguido a recomendação do MPF-DF quanto à não-emissão da licença pode pesar no julgamento dos integrantes do STF, "já que um dos problemas do projeto é a falta de diálogo e o respeito à opinião pública". Ele explica que os movimentos haviam definido, após passarem por Brasília na semana passada, "continuar a luta na própria bacia e na região do Setentrional", onde buscariam alertar a população sobre "o engodo da transposição". Siqueira afirma que, com a decisão desta sexta-feira, "deve se acirrar o enfrentamento" e que "teremos que acelerar as ações", diante da postura do governo de "atropelar".

A reportagem buscou entrevistar na tarde desta sexta-feira Yvonilde Medeiros, do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Franciso, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria. O Comitê registra em seu site que recebeu com "grande surpresa" a notícia. O MPF-DF também não pôde conceder a entrevista até o final da tarde.

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