Dia do Índio IV

“Eu posso ser o que você é sem deixar de ser o que eu sou”

O cacique Enio de Oliveira Metelo explica como é a vida em Marçal de Souza, primeira aldeia urbana na cidade, localizada em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. O objetivo principal do Conselho de Caciques, do qual faz parte, é zelar pelos modos, costumes, língua, danças, alimentação e outras tradições indígenas
Texto e fotos de Priscila D. de Carvalho
 20/04/2007
Especial Dia do Índio
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“Eu posso ser o que você é sem deixar de ser o que eu sou”
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Final da tarde de uma sexta-feira. Quando chego para a entrevista, Enio de Oliveira Metelo, cacique da aldeia Marçal de Souza, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, está reunido com dois outros membros do Conselho de Caciques da primeira aldeia urbana da cidade. Descubro logo que o Conselho é a instância interna de organização dos Terena que vivem na aldeia. Seus 13 membros são responsáveis pelas 205 famílias, 1050 pessoas, 135 casas (eram 112, na placa de inauguração) do conjunto habitacional inaugurado no ano 2000.

Enio é de Cachoeirinha, a 198 km de Campo Grande. Recebeu a indicação dos anciãos para se tornar cacique. A posição é vitalícia. Uma vez escolhido, não pode haver recusa. "Cacique é delegado, padre, resolve tudo. Às vezes, casal chega chorando. Cacique conversa, resolve", explica.

O Conselho de Caciques é responsável por organizar algumas atividades para a comunidade. Houve confraternização no final do ano passado no pátio da escola pública construída junto ao loteamento. O amigo secreto foi sugestão da esposa de Enio para que as pessoas se encontrassem, já que a comunidade cresceu e "nem todo mundo se conhece". Na hora de descobrir quem eram os donos dos presentes, a confusão por causa dos nomes repetidos foi solucionada pelo infalível método do parentesco, marca mais característica das comunidades indígenas, seja na cidade ou no campo. È o Mario "filho de fulana" ou o "marido de ciclana"?, perguntavam as dezenas de participantes, animados.

Deitado na rede, ao lado do aparelho de telefone, dos óculos, da carteira e de uma cópia da proposta do Estatuto dos Povos Indígenas, Enio conta sobre sua vida e seu trabalho como cacique.

Como nasceu a aldeia urbana Marçal de Souza?
A Funai tinha este terreno. A Prefeitura [de Campo Grande] havia doado terreno para a Funai para a construção de casa do índio. Ficou ocioso. Juntou um grupo de lideranças e ocupamos, em 1995. Não houve invasão, era nosso. Em 1999, a prefeitura deu kits de material de construção e nós construímos as casas.

Por que o senhor veio morar em Campo Grande?
Cheguei em 1978. Viemos atrás de melhores condições de vida, de trabalho. A terra nas aldeias já não estava produzindo mais nada. Nas aldeias, agora tem oitava série, mas antes não tinha. Então, como ia por filhos na faculdade? Meu primeiro filho está no quartel agora. Lá no interior, o trabalho era no corte de cana, ou nas fazendas. Nas fazendas estava muito parado.

Aqui a oferta é maior, mas falta qualificar mão-de-obra. Tem muitos que trabalham na changa, em trabalhos não especializados como pedreiro, jardineiro, vigilante. A maioria das mulheres são empregadas domésticas ou vendem na feira. Mesmo para quem termina o ensino médico, ter trabalho é difícil. Nós indígenas nunca conseguimos trabalhos nos grandes supermercados, no shopping.

E o senhor sente falta da aldeia?
Para mim, estou dentro da aldeia. São os mesmos modos, os mesmos costumes, a mesma língua, a mesma alimentação. Não muda muito. Muda casa de alvenaria. Muda organização, higiene, outro modo de viver. Mas o que a gente é está no sangue. A maioria das pessoas que vivem aqui são parentes. Os pequenos são gentis, tomam a bênção. Não é porque está na cidade que vai agir diferente. Eu posso ser o que você é sem deixar de ser o que eu sou.

O senhor acha que vive melhor aqui?
Sem duvida, vivo melhor. Porque lá vivia da roça e não produzia mais nada, com um calorão desse, seco, a terra cansada. A gente n&a
tilde;o tem costume de usar agrotóxico. Não usa, tem que pular para outra atividade.

Quando chega aqui, o mais difícil é se instalar. Não tem casa, não tem banheiro, vai morar com outros. Eu e meu filho, moleque, dormimos no chão por muito tempo.

E o senhor não teve vontade de voltar?
O ser humano tem que ser persistente, correr atrás do que é bom pra ele.

E vocês mantêm contato com a aldeia?
Todo sábado vai um ônibus para Nioaque. Você já ouviu historia dos Terena? São nômades. Fica lá uns 2, 3 dias depois volta com as coisas para vender no mercado. O ônibus sai às 12h30, vai daqui para o mercado, passa pelo Jardim Noroeste, por Cachoeirinha, vai costurando. Volta segunda-feira, chega às 8 da noite. Eu vou ver meus parentes. Moram todos lá.

E tem mais gente chegando?
Mais ou menos em 2003, a gente teve que proibir que os ônibus trouxessem mais famílias. Chegou muita gente, e foi assim que nasceu a presença dos Terena no Jardim Noroeste. Ultimamente chega menos gente, porque fomos limitando. As casas chegam a ter 14, 16 pessoas em 32m² de área.

Por que aqui tem o Conselho dos Caciques e tem também uma Associação de Moradores?
O Conselho tem modo diferente de trabalhar, nos modos tradicionais. O objetivo é andar na comunidade, manter a língua, os costumes, as danças. Zelar por isso e não deixar acabar. A Associação é uma entidade de branco, para buscar melhoria, como asfalto e rede de esgotos, que não tem ainda. Mas o presidente da associação não pode assinar, é o cacique que assina. Eu falo pro Adierson [outra liderança de Campo Grande]. Eles querem trabalhar só com as associações, que podem arrecadar dinheiro, fazer projetos. Tinha é que organizar conselhos tribais, para trabalhar com índio mesmo.

Tivemos cinco conquistas este ano: um representante da Marçal de Souza foi para a Copa do Mundo, entrar com a bandeira. Tem uma enfermeira fazendo atendimento pela Funasa. Não tem desnutrição. Tem uma pessoa daqui em Porto Príncipe, no Haiti, no Exército. Ah, e tem mais uma. Este ano conseguimos um laudo pericial para Funai, para benefícios, INSS. Não tem briga, aqui é bom de viver. Tem a comunidade unida.

* O projeto que deu origem a este trabalho foi ganhador das Bolsas AVINA de Investigação Jornalística. A Fundação AVINA não assume responsabilidade pelos conceitos, opiniões e outros aspectos de seu conteúdo

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