Comunicação

Legalização de rádio comunitária coroa luta no Sul do Maranhão

Após disputas e funcionamento clandestino, a Arca FM - rádio comunitária mantida por entidades de Açailândia - obteve autorização legal para transmitir programas educativos e dedicados ao combate ao trabalho escravo
Por Beatriz Camargo e Joana Moncau
 11/06/2007

Neste sábado (9), a Arca FM foi ao ar legalmente pela primeira vez. A transmissão regular pela freqüência 87,9 em Açailândia, no Maranhão, foi resultado de um processo que se estendeu por nove anos, desde o primeiro pedido oficial feito pela Associação Rádio Comunitária Açailândia (Arca). Autorizada a manter o funcionamento da emissora pela próxima década,  a associação reúne o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos (CDVDH) e mais nove entidades locais: Sindicato dos Servidores Públicos, Sindicato dos Trabalhadores Rurais, as paróquias São João Batista e São Francisco, Centro Espírita Amor e Caridade, associações de moradores da Vila Idelmar, grupos de casais da Igreja Católica, abrigo dos idosos "Lar Frei Daniel" e o Centro de Integração Família Escola Comunidade.

"A sensação é de vitória, de que a gente não pode desistir frente à dificuldade", comemora Vanuzia Gonçalves da Silva, coordenadora da Arca FM. "Foi muita luta. Agora ninguém tira [a nossa outorga]."

O coordenador de comunicação nacional da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (Abraço), José Guilherme Castro, também comemora a existência de mais uma iniciativa vitoriosa. "Representa muito ter uma rádio comunitária na região do Bico do Papagaio, local em que já foram travadas tantas lutas."

Segundo Vanuzia, a rádio trasmitirá programas de prevenção ao trabalho escravo, além de conteúdos diversos de caráter informativo e educativo para a comunidade. A Vila Ildemar fica na periferia de Açailândia, foco de aliciamento de trabalhadores para a exploração do trabalho escravo. Ela ressalta que a aceitação no bairro foi muito boa. "Antes de entrar no ar, o pessoal já estava perguntando qual era a estação, pedindo música."

Ainda em caráter experimental, a grade da Arca FM está sendo reformulada. O presidente da associação, João Filho Rodrigues, defende um conteúdo plural, que abra espaço para as entidades fundadoras da emissora e possa priorizar as necessidades da Vila Idelmar. "Nossa rádio pretende abrir espaço para a comunidade. E também cobrar mudanças das autoridades." Ele garante que a nova programação estará no ar até 25 de junho.

Empecilhos
Embora quase uma década pareça muito tempo para se conseguir a legalização de uma rádio comunitária, o caso da Arca se aproxima mais da regra do que da exceção. "É comum rádios de grupos empresariais saírem em poucos meses e rádios comunitárias demorarem anos. Em menos de seis anos, não se consegue a outorga", avalia José Guilherme.

Na concepção do representante da Abraço, a Lei 9612/98, que instituiu o funcionamento de rádios comunitárias, coloca diversos empecilhos burocráticos com o intuito claro de impedir a expansão do setor. Entre as regras a serem cumpridas estão, por exemplo, a abrangência de apenas 1 km de raio nas emissões, a não existência de uma rádio a menos de 4 km de outra e a necessidade de utilização da mesma faixa de freqüência – o que pode provocar interferência entre as emissoras comunitárias. De acordo com João Brant, da coordenação executiva do Intervozes, organização que desenvolve projetos na área do direito à comunicação, a lei é excessivamente restritiva. "Por que em Açailândia, em que não há lotação do espectro, não poderia haver freqüências diferentes? Por que a lei aponta única e exclusivamente um canal?", questiona.

Para João, a demora para a legalização das rádios comunitárias é responsabilidade principalmente do governo. Em São Paulo, ressalta, o primeiro aviso de habilitação – que permite a inscrição de emissoras interessadas em determinada área – se deu apenas em dezembro de 2006. Nesse sentido, o Coletivo Intervozes, ao lado do Ministério Público Federal e outras quatro organizações não-governamentais (ONGs), protocolou uma Ação Civil Pública em maio deste ano, pleiteando que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) deixe de impedir o funcionamento provisório de rádios comunitárias que esperam a decisão governamental de outorga por um período maior que 18 meses.

Saga
A Arca fez seu primeiro pedido de autorização em abril de 1998, pouco antes de começar a funcionar. "Não era muito claro por parte do governo o procedimento necessário para conseguir a concessão. Buscamos, assim, nos informar com outras rádios que já tinham concessão. Essa falta de clareza fez com que nos equivocássemos muitas vezes, tendo que reiniciar o processo de pedido", relata Antonio Filho, atual sócio-colaborador e presidente da rádio de 2002 a 2005.

Em 2001, quando mais uma vez tentavam abrir o processo de outorga, o Ministério das Comunicações (MiniCom) solicitou cinco documentos, mas foram enviados apenas quatro. O papel que faltou não foi enviado porque o cartório local disse não possuir tal formulário, justificativa que a Arca refutaaté hoje por entender que sofrera boicote. Com a documentação incompleta, o processo foi arquivado.

A rádio desistiu de insistir pelas vias legais e passou a funcionar sem licença, entre 2001 e 2003. Durante esse período, a emissora foi autuadatrês vezes pela Polícia Federal (PF). Para Antonio, houve um grande número de denúncias de políticos e empresários, por causa da programação. "A rádio era independente e falava de trabalho escravo, incomodava muita gente". 

Na terceira atuação, em setembro de 2003, foram levados os equipamentos, com um mandato de busca e apreensão. Antônio, que estava com seu programa no ar, foi preso em flagrante. Ficou detido por duas horas, até pagar a fiança. "Assustaram a todos", lembra. Ele continua respondendo processo criminal pelo episódio.

Sem equipamentos, a Arca resolveu voltar às vias institucionais. Em outubro de 2004, a rádio conseguiu desarquivar o processo "depois de muita luta, contatos políticos e viagens para Brasília", descreve o ex-presidente da associação de Açailândia.

No entanto, uma outra rádio, também comunitária – batista missionária – conseguiu, em junho de 2006, a autorização para a mesma área pleiteada pela Arca. Foi necessário então recomeçar todo o processo. Ou seja, elaborou-se um novo projeto técnico (com base nas coordenadas geográficas da Vila Ildemar) que precisou passar mais uma vez por toda saga burocrática.

Antonio avalia a busca pela autorizaçã
o foi um processo independente, por isso tão demorado. "Se tivéssemos aceitado as ofertas políticas para legalizar a rádio, já teríamos a Arca pronta há muito tempo, porque propostas surgiram."

Formação
Durante todo esse período de nove anos em que esteve pleiteando a legalização, a Arca realizou um longo processo de formação de jovens em comunicação comunitária. Hoje, muitos desses jovens atuam em outras rádios do mesmo perfil e participam da capacitação de outros grupos. Além de Açailândia, já foram realizados cursos sobre o tema em Bom Jesus das Selvas, São Francisco do Brejão e no assentamento Califórnia.

Veja a Ação Civil Pública contra a Anatel (em pdf)

Veja a íntegra da lei 9612/98

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