Trabalho escravo. Onde os bois vivem melhor que os trabalhadores

 23/06/2007

No sul do Pará, ainda existe animal vivendo melhor do que gente. Foi o que constatou uma operação do grupo móvel do Ministério do Trabalho encerrada esta semana, que libertou 27 trabalhadores rurais em condição análoga à de escravos. O resgate, acompanhado pelo jornal O Globo, em reportagem, 23-06-2007, de Fellipe Awi, impressionou os fiscais do Trabalho e agentes da Polícia Federal por uma cena emblemática: os bois de uma das fazendas recebiam mais cuidados que homens.

Em Brejo Grande do Araguaia, quase na divisa do Pará com Tocantins, o grupo móvel encontrou 12 trabalhadores da Fazenda São José morando no meio do mato, num barraco de palha, parcialmente coberto e em condições lastimáveis.
Contrastava com a estrutura de madeira e com telhados de cerâmica destinada aos bois, bem no início da fazenda. De igual, apenas a água que as pessoas e os animais bebem, ambas proveniente de um igarapé, que é de barro puro quando chove.

– As boas condições em que se encontra o gado são mais um agravante, porque tiram do fazendeiro o argumento de que não pode cuidar melhor de seus funcionários – afirma o auditor do Trabalho Calixto Torres.

Jornada das 5h às 18hs, de segunda-feira a sábado
A fazenda São José reunia características clássicas do trabalho escravo. Os trabalhadores foram aliciados em Tocantins por um intermediário, chamado de gato na região, que lhes prometeu "fazer um bom dinheiro" roçando terra no Pará. Os mais antigos, com três meses de trabalho, só receberam até agora R$ 150,00, a título de adiantamento.

– Como vou voltar para casa sem dinheiro? Não posso nem pegar uma condução – disse Josenil Ferreira, que saiu de Augustópolis, em Tocantins. Ele trabalhava com uma ferida profunda na perna, mas não pôde deixar o roçado porque seria descontado, embora seja de um dinheiro que ainda nem viu.
Comida (arroz e feijão todo dia), sabão, ferramentas, botas e outros itens serão descontados, e os preços cobrados são quase o dobro do mercado. Para comer carne, os trabalhadores caçam jabuti, tatu e paca na mata. Outros bichos, no entanto, causam medo: onça e cobra já foram vistas perto do alojamento. Não há nem vela para iluminar o lugar à noite.

– De noite faz um frio aqui que a gente nem consegue dormir. Se eu soubesse que era assim, não tinha deixado a minha casa – conta José Filho Vieira, morador de Ananás (TO).

Na fazenda Ladeirão, em Pacajá, os auditores do ministério encontraram 15 trabalhadores acampados num terreno acidentado, também em condições subumanas. A comida era descontada, e o salário nunca era pago integralmente. No período de chuvas, é praticamente impossível cruzar os 54 quilômetros que separam a fazenda da cidade.

– Uma vez fiquei doente aqui, não recebi remédio e tive de ir em cima de um burro. Na volta, vim a pé. Levei um dia inteiro – contou o trabalhador rural Raimundo Gomes.

A operação nas duas fazenda resultou em indenização por danos morais, estabelecidas pelo Ministério Público do Trabalho, em cerca de R$ 35 mil, verba que será usada para equipar hospitais da região. Os proprietários das duas fazendas fiscalizadas tiveram de pagar quase R$ 50 mil de direitos trabalhistas, fora as multas, cujo valor ainda será calculado.

– O trabalho escravo está ligado à ausência do Estado e à falta de informação dos trabalhadores, que nem sequer conhecem seus direitos. São lugares de difícil acesso, o que dificulta a fiscalização – disse a procuradora do Trabalho Guadalupe Turos, que acompanhou a operação.

O Pará é campeão nacional do trabalho escravo, segundo o Ministério do Trabalho. O estado é responsável por mais de 31% de todos os trabalhadores resgatados ano passado pelo grupo móvel do ministério. Foram 1.062 pessoas entre os 3.342 brasileiros encontrados nessa situação.

Para a Organização Mundial do Trabalho (OIT), que também põe o Pará no topo da desonrosa lista, a situação do estado ainda é mais grave porque ele concentraria 70% dos trabalhadores que ainda vivem como escravos, estimados em 30 mil. O problema está concentrado no arco do desmatamento na Floresta Amazônica, pois o Pará é seguido de Maranhão, Mato Grosso e Tocantins.

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