Direitos Humanos

Sistema de Justiça é problema principal na Ásia, diz ativista

"A polícia não investiga, os promotores não processam, e há corrupção no Judiciário", resume Michael Anthony, da Comissão Asiática de Direitos Humanos, diante de violações praticadas em Estados autoritários do continente
Por Fernanda Campagnucci
 08/11/2007

Michael: países asiáticos têm sistema
de "Injustiça" (Foto: Leandro Vianna)

Ele é responsável por divulgar ao mundo a situação dos direitos humanos na Ásia, como ativista da Comissão Asiática de Direitos Humanos – uma articulação de organizações não-governamentais de todo o continente. Michael Anthony está no Brasil para participar do VII Colóquio Internacional de Direitos Humanos, que concentra discussões sobre o tema em São Paulo até sábado (10).

Em entrevista à Repórter Brasil, o ativista explica que a defesa dos direitos humanos na Ásia esbarra na ausência de um sistema de Justiça confiável. "Em países desenvolvidos, você chama a polícia para resolver um problema. Na Índia, no Sri Lanka ou no Paquistão, você pode nem querer chamá-los, porque isso pode trazer ainda mais problemas", descreve. A tortura por parte de agentes do Estado também, confirma, são práticas recorrentes.

Sobre a China, Michael ressalta que o país, além da repressão interna, não cumpre as suas responsabilidades, mantendo relações comerciais e sustentando governos de países como Mianmar e Sudão e outros países que têm graves problemas de direitos humanos. "Se a China quer estabilidade nas transações comerciais, não deveria apoiar ditaduras". 

Leia a seguir a entrevista com o ativista que atua no continente onde não há um mecanismo de proteção regional como o Comitê Africano de Direitos Humanos ou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), compostas pelos governos de países que fazem parte dos continentes.

Repórter Brasil – Com que tipos de caso a Comissão Asiática de Direitos Humanos lida?
Michael Anthony – Lidamos, por exemplo, com o sistema instituído pelo governo indiano para distribuir comida às pessoas mais pobres. Apesar da existência de uma lei que garante o direito à alimentação, há corrupção. A comida é roubada e vendida no mercado negro. Trabalhamos para descobrir como isso acontece. Há crianças que morrem de fome, e o país exporta alimentos. Essa é uma violação de um direito fundamental, o direito à alimentação.

As prisões são outro problema. Na maioria dos países da Ásia, a polícia não funciona corretamente. É corrupta e preguiçosa. A polícia prende, bate e tortura até a pessoa confessar crimes que não cometeu. Ela pode até ser liberada caso tenha dinheiro ou conexões políticas. Em muitos lugares da Ásia, o sistema de Justiça e investigação de crimes é mais parte do problema do que solução. Em países desenvolvidos, você chama a polícia para resolver um problema. Na Índia, no Sri Lanka ou no Paquistão, você pode nem querer chamá-los, porque isso pode trazer ainda mais problemas.

Essas são as principais violações de direitos humanos na Ásia?
Há tudo o que se possa imaginar de violações a direitos econômicos, culturais e sociais: negação do acesso à comida, discriminação, etc. Se for para eleger um problema principal, que envolve toda a Ásia, seria a ausência de um sistema de Justiça. Porque existem todas as violações possíveis, mas o problema é que elas continuam a acontecer porque não há nenhuma proteção de instituições legais que funcionem. A polícia não investiga, os promotores não processam, e há corrupção e politicagem no Judiciário. A impunidade é um grande problema.

Centenas de pessoas foram mortas nas Filipinas, mas ninguém foi julgado ou condenado. Em 2003, a Tailândia decidiu que queria se ver livre das drogas. O governo prometeu uma recompensa extra para mortes de traficantes. A polícia saiu e matou 200 mil pessoas em poucos meses. E não houve nenhuma investigação. Há um verdadeiro sistema que protege as pessoas que cometeram violações que, na prática, criam um "sistema de injustiça".

Como se dá a repressão policial?
Não são apenas crimes comuns, mas podem ter motivações políticas. Bangladesh, por exemplo, é um país muito politizado. O processo eleitoral é muito violento porque não se trata de democracia, mas de uma disputa feroz de poder. Em países como a Tailândia e a Indonésia, a tortura é o caminho mais fácil para se obter resultados. Ladrões de galinha e autores de pequenos crimes sofrem com a tortura, que é mais regra do que exceção.

Nas Filipinas, por exemplo, as organizações não-governamentais (ONGs) locais com que trabalhamos dizem que 886 pessoas foram assassinadas desde 2001 por pessoas que acreditam ser militares. São mortos porque simpatizam com movimentos radicais de esquerda, mas não são pessoas armadas. São jornalistas, padres, defensores de direitos humanos, ambientalistas. Nas Filipinas há grandes negócios, empresas poderosas de mineração que poluem o meio ambiente e se apoderam de recursos naturais. Nepal, Sri Lanka e Paquistão são campeões em desaparecimentos, com seus regimes militares. Nas Filipinas, há uma "pseudo-democracia", mas é o Exército que realmente controla [a sociedade]. Talvez a situação seja parecida com o que ocorreu na época das ditaduras sul-americanas de décadas atrás.

A China apresenta grandes taxas de crescimento econômico e é criticada por desrespeitar diversos direitos humanos. Em que medida essas violações contribuem para seu crescimento?
A China está ficando muito rica rapidamente, mas as desigualdades estão aumentando. Não há uma imprensa livre lá, mas há grandes manifestações todos os dias. Ninguém de fora fica sabendo. Ainda assim eu diria que esse desenvolvimento é menos discriminatório do que na Índia, que tem taxas de crescimento de 9 ou 10%, mas mantém o sistema de castas.

A China tem muito mais execuções por pena de morte. Na Índia, eles nem chegam a ser julgados. São apenas mortos, sem investigação. Mas não dá para saber muito sobre o país. Não há liberdade de imprensa. As informações não saem de lá [por restrições impostas pela ditadura comunista].

A China é a indústria do mundo e tem que buscar recursos naturais em diversos países como Mianmar, Sudão&
nbsp;e outros países que têm graves problemas de direitos humanos. E não está cumprindo com as suas responsabilidades de potência política e econômica. Se a China quer estabilidade nas transações comerciais, não deveria apoiar ditaduras. Internamente, os chineses deveriam se preocupar com a desigualdade social crescente e com questões ambientais.

A China vai sediar os Jogos Olímpicos em 2008 e fez alguns compromissos para avançar na proteção aos direitos humanos. Isso está acontecendo?
O que tem havido nos arredores de Pequim são mais violações, expulsões para "limpar" as áreas pobres da cidade que vão ser usadas por turistas. Há muitas organizações que trabalham com o direito à moradia denunciando essa situação. Acredito que isso tenha acontecido recentemente com o Brasil, nos Jogos Pan-Americanos [do Rio de Janeiro, em julho passado]. Eles chamam isso de "hongkongnização" da cidade.

Acredito que eles tentaram transmitir uma imagem de estabilidade e abertura antes dos Jogos. Com a crise de Miamar, por exemplo, há movimentos pedindo o boicote das Olimpíadas em Pequim se a China não conseguir fazer a medição. A China tem esse poder, mas não assume a responsabilidade. É tempo de nos tornarmos co-responsáveis. Vamos continuar consumindo produtos chineses, sabendo que eles apóiam ditaduras na Birmânia, no Sudão, sem ser condenados pela comunidade internacional? Eles fizeram grandes esforços para a realização deste evento. Esperamos que com a grande presença de jornalistas internacionais na China as coisas possam mudar um pouco.

Qual deve ser o caminho dos países asiáticos para melhorar a proteção dos direitos humanos? A criação de um sistema regional nos moldes da Comissão Interamericana da OEA ajudaria?
É necessário que haja sistemas de Justiça efetivos para que as pessoas possam reclamar e influir nas políticas de alguma forma. Isso passa pela democracia, pelo diálogo com o poder militar e pelo combate à corrupção.

Hoje, mundo afora, há um modelo de política que beneficia os ricos e poderosos. Talvez seja necessário um novo sistema político. Mas a América Latina é um lugar do qual podemos tirar lições. Os sistemas regionais são bons, mas o que deve funcionar, primeiro, é a legislação dentro do país. A África tem um sistema regional, mas não é efetivo. Temos que trabalhar primeiro a legislação interna, que não funciona.

No Nepal, uma garota de 15 anos foi torturada até a morte. E os três oficiais que foram considerados culpados pelo Exército tiveram apenas a prerrogativa de promoções suspensa. Houve um outro caso de tortura levado até a Corte Suprema no Sri Lanka. Decidiu-se que o homem torturado receberia uma grande indenização. O julgamento dos policiais responsáveis pela tortura estava para começar, mas a vítima foi assassinada dentro de um ônibus. É muito difícil quando um caso individual desses desafia todo um sistema. É perigoso.

Que tipo de dificuldades um defensor de direitos humanos enfrenta, nos diferentes países da Ásia?
Eu moro em Hong Kong, que é um pouco como a Suíça da Ásia: desenvolvida e segura. Para ser sincero, eu não enfrento grandes problemas porque tenho um passaporte suíço.

Há duas semanas estivemos nas Filipinas investigando assassinatos de bispos, jornalistas, advogados, defensores de direitos humanos. Falamos com vítimas, membros da família de alguém assassinado no dia anterior. Entramos em contato com a corte de Justiça, com o Exército. Temos um bom acesso. Mas eu sei que, se eu fosse um filipino, eu não poderia falar com essas pessoas. Porque dizemos "sabemos que pessoas do Exército foram responsáveis por isso, o que vocês vão fazer a respeito?" Um filipino que falasse isso estaria morto ou preso. É muito difícil ver todas essas vidas perdidas, por conta da corrupção, da brutalidade. É deprimente, mas eu tento encontrar motivação para agir.

Veja também: Especial – Diários do Paquistão

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