Dia do Imigrante II

Proposta de lei sobre imigração não chegou nem à Casa Civil

Legislação em vigor foi elaborada durante a ditadura militar. Novo projeto foi submetido à consulta pública em 2005, mas ainda não chegou à Presidência. Entidades temem que lei atenda apenas aos anseios do mercado
Por Beatriz Camargo e Maurício Hashizume
 20/12/2007

O anteprojeto de uma nova lei para os imigrantes, que está sob a responsabilidade do Ministério da Justiça (MJ) desde 2004, ainda não chegou ao Palácio do Planalto. Segundo a assessoria de imprensa da pasta, a proposta será encaminhada à Casa Civil em janeiro de 2008. Somente depois dessa etapa de análise, o texto estará pronto para ser enviado ao Congresso.

A norma em vigor hoje no país é a Lei do Estrangeiro (6.815/1980). Moldada com base na Doutrina de Segurança Nacional da ditadura militar, a letra da lei proíbe a organização e manifestação política, restringe o exercício de atividades remuneradas e burocratiza o processo de legalização dos não brasileiros. Regulamentado pela Lei 6964 de 1981, o alicerce legal demorou quatro anos para ser concluído pelos militares.

"A legislação atual é defasada e trata o imigrante como caso de polícia", afirma Roberval Freire, do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM). A advogada Ruth Camacho, que atende no Serviço Pastoral do Migrante (SPM), vê uma clara incompatibilidade entre a Lei do Estrangeiro e a Constituição de 1988, que incorporou uma série de direitos no bojo da redemocratização.

No domingo passado (16), mais de mil imigrantes sul-americanos participaram de uma mobilização na Praça da Sé, no centro de São Paulo, para pedir a aprovação de uma lei. Abaixo-assinados, campanhas e mobilizações se intensificaram em setembro de 2005, quando o MJ abriu consulta pública de um mês para acolher sugestões da sociedade. Do ponto de vista dos representantes de entidades que atuam junto aos migrantes, o anteprojeto submetido à consulta naquela ocasião manteve muitas limitações e não apresentou pontos importantes para a ampla garantia dos direitos humanos.

Existe um receio de que a legislação abandone o viés da criminalização dos estrangeiros (presente na Lei 6.815/1980) para privilegiar a perspectiva de mercado e a absorção econômica da mão-de-obra dos imigrantes. Na proposição inicial submetida à consulta pública, a participação política, por exemplo, não foi contemplada. Uma proposta nessa linha, comenta Roberval, do SPM, resultaria não na ampliação, mas na restrição de direitos em nome da produtividade e do aumento do controle privado.

Publicamente, o MJ se limita a declarar que as sugestões da consulta pública serão assimiladas. Mas nem mesmo setores de dentro do governo que estão diretamente envolvidos na questão, como o Conselho Nacional de Imigração (CNIg), ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), receberam versões mais atualizadas do texto sobre imigração.

O próprio coordenador do CNIg, Paulo Sérgio de Almeida, confirmou à Repórter Brasil que não teve acesso ao anteprojeto depois da consulta pública. "Fomos chamados para participar de reuniões internas no início do processo em 2004 [quando Márcio Thomaz Bastos era o ministro da Justiça] e depois o Conselho enviou as suas sugestões no período de consulta", coloca. Segundo ele, há um consenso no conselho de que a nova lei precisa estar alinhada com a proteção dos direitos do migrante, previstas na Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Famílias, de 1990, que ainda não foi ratificada pelo Brasil. A data de adoção da Convenção pela Organização das Nações Unidas (ONU), 18 de dezembro, passou a marcar o Dia Internacional do Imigrante.

O Brasil ainda não enfrentou de frente a questão do migrante, segundo Paulo Sérgio. "Historicamente, o país atraiu pessoas e mão-de-obra de várias localidades do mundo, mas ainda não houve um processo de debates mais profundos sobre equiparação de direitos e questões mais polêmicas como a dos direitos políticos. Essa discussão precisa ser feita", propõe. 

A mudança da lei prevendo a regularização de trabalhadores estrangeiros explorados por trabalho degradante ou análogo à escravidão também faz parte das sugestões preliminares de revisão das metas do Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo.

Na última conversa em que integrantes de organizações sociais trataram do assunto com um membro do governo, o secretário nacional de Justiça, Romeu Tuma Jr., disse que estava estudando a questão com cuidado, mas não deixou de manifestar a sua preocupação com relação aos casos mais recentes de envolvimento de estrangeiros em esquemas ilegais.

Do lado de lá da fronteira, a Argentina aprovou uma nova lei de migrações em 2004 que protege os direitos dos migrantes, garantindo o acesso aos serviços de saúde e educação pública mesmo aos que estão em situação irregular. Em abril do ano passado, o governo lançou o Programa Nacional de Normalização Documentária Migratória, rebatizado popularmente de "Plano Pátria Grande" que promete a regularização de até 700 mil estrangeiros. Com ajuda de uma força-tarefa que contou com ampla participação de organizações da sociedade civil para as inscrições, o Plano Pátria Grande conseguiu superar a marca expressiva de 184 mil pessoas regularizadas nos primeiros 60 dias de operação. O Uruguai e o Chile também aprovaram leis na mesma linha.

No âmbito mais ampliado do Mercosul (que reúne Brasil, Paraguai, Uruguai, Argentina e Venezuela; e tem como associados Bolívia, Chile, Equador e Colômbia), foi firmada a Declaração de Princípios Migratórios em maio de 2004, que estabelece que a irregularidade migratória não é passível de punição penal. A negociação mais importante sobre o tema, porém, diz respeito ao Acordo de Residência. O instrumento que abre a possibilidade para que pessoas nascidas em países do bloco possam obter uma residência regular em outra nação mediante apenas a comprovação da nacionalidade e a verificação de antecedentes penais ainda depende da aprovação no Paraguai.

Fontes das embaixadas dos países sul-americanos ressaltam que essas negociações diplomáticas são complexas e que a União Européia demorou 50 anos para se consolidar. Muitas assimetrias precisam ser trabalhadas e, além do Mercosul, há ainda o bloco da Comunidade Andina de Nações (CAN). Somado a isso, os trâmites para aprovação de cada documento dentro de cada país também são complicados.

A desarticulação entre os grupos de diferentes nacionalidades também é outro fator que não ajuda a aprovação de normas mais favoráveis aos imigrantes. Houve, por exemplo, uma recente mobilização isolada da parte dos peruanos
que vivem no Brasil. Na visão do antropólogo Sidney da Silva, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), seria vital unificar as mobilizações de pressão por uma nova legislação e abandonar a atmosfera de concorrência pela conquista isolada de uma anistia geral.

Algumas iniciativas de curto prazo estão se dando em outras duas linhas. O Ministério Público do Trabalho (MPT) firmou acordos com grandes lojas de departamento (Renner, Marisa, C&A e Riachuelo) que assumiram o compromisso de isolar economicamente os fornecedores terceirizados que empregam mão-de-obra irregular. "A precarização do trabalho com as terceirizações se casa com a situação dos migrantes em situação irregular no país e o medo de ser denunciado", comenta Juliana Lago, da Associação Humanista, que planeja estudos mais aprofundados sobre o tema.

"A fiscalização padrão tapa o sol com a peneira. A polícia vai lá e ´estoura´ a oficina. O dono da oficina é preso e perde as máquinas. Os trabalhadores são deportados ou vão procurar trabalho em outra oficina. E as grandes lojas passam a comprar de outra oficina", adiciona a economista Juliana. "A fiscalização não deve ser só nas oficinas porque elas são as pontas do problema. Muitas vezes apenas o gerente é preso. E ele também trabalha 17h por dia e é explorado".

Começam a surgir também cooperativas de confecção que contam com o apoio das pastorais. "É uma iniciativa importante, um primeiro passo principalmente para enfrentar o modelo existente hoje", avalia Juliana.

"Enquanto não houver igualdade entre os países, essa situação vai permanecer", declara a advogada Ruth Camacho, que é filha de migrantes bolivianos que vieram ao Brasil nos anos 60. Sobre as perspectivas que se apresentam, ela é bastante pragmática: "Não vejo saída para esse tipo de exploração no momento por causa da perpetuação do sistema de trabalho, pois os bolivianos que conseguem algum dinheiro montam oficinas para trazer mais bolivianos. Quem pode mudar isso são os jovens, que têm a chance de utilizar o dinheiro para fazer cursos profissionalizantes e quebrar esse ciclo".

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