Direitos Humanos

Brasil é submetido à revisão na ONU e recebe recomendações

Documento final da Revisão Universal Periódica do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas pede que Brasil avalie de forma mais rigorosa ações contra a tortura e outros problemas como o trabalho escravo
Por Maurício Reimberg
 17/04/2008

O Brasil deve ser "mais rigoroso na avaliação dos resultados de ações planejadas" para enfrentar problemas como a tortura, a violência rural e o trabalho escravo. Essa é uma das recomendações do relatório divulgado na última terça-feira (14), como parte da conclusão do processo de Revisão Universal Periódica (UPR, na sigla em inglês) no âmbito do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Trata-se do primeiro levantamento completo conduzido pela ONU sobre a situação dos direitos humanos no país. Todos os 192 Estados-membros das Nações Unidas serão analisados ao longo dos próximos quatro anos.

A avaliação foi baseada em três relatórios: informações enviadas por organizações não-governamentais (ONGs), compilação elaborada pela ONU nos últimos anos no país e documento redigido pelo governo brasileiro, apresentado na última sexta-feira (11), em Genebra, na Suíça.

O relatório final da Revisão Universal Periódica traz 15 recomendações ao Brasil. A maioria das sugestões dialoga com os temas relacionados à segurança pública. As atuais práticas de tortura, as condições precárias do sistema carcerário, o abuso de força por agentes investidos de poder pelo Estado e as execuções extrajudiciais galvanizaram as discussões em Genebra. Para a ONU, a tortura no Brasil é "generalizada". A entidade recomenda, por exemplo, o estabelecimento de uma instituição nacional de direitos humanos – com participação de representantes de organizações da sociedade civil – conforme previsto pelos Princípios de Paris adotados pela ONU em 1993.

"As recomendações me parecem adequadas. Não fogem muito do que a gente estava esperando", afirma Thiago Menezes, redator do projeto brasileiro e assessor da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), ligada à Presidência da República. Em fevereiro deste ano, durante a revisão, o governo já havia reconhecido a existência da prática de tortura, a desigualdade racial e de gênero, a concentração de terras e a dificuldade de acesso à saúde no país. Para Menezes, "há carência de controle do grau de aplicação das recomendações". No entanto, ele argumenta que o governo já trabalha com a "diretriz de buscar a aplicação de todas elas".

"[O combate à tortura] é uma das áreas em que mais precisamos trabalhar. O governo brasileiro tem apoiado a constituição de ouvidorias para o sistema carcerário. Com ouvidorias independentes e fortes, vamos atacar a prevalência da tortura", diz Menezes. Estatísticas oficiais de São Paulo e Rio de Janeiro, únicos estados que possuem banco de dados para consulta pública sobre denúncias contra policiais, apontam que 8.520 pessoas foram mortas por policiais nos últimos cinco anos. "O Brasil é dotado de marco normativo avançado, mas encontra dificuldades de sair da letra da lei".

Descompasso e inovação
A estratégia política adotada pela delegação brasileira na ONU foi ressaltar o "êxito" dos programas sociais de transferência de renda como o Bolsa Família, que foi elogiado no debate. Além disso, o país já cumpriu a primeira dos 8 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs): justamente o que prevê a redução da extrema pobreza em 50% até 2025. De 1992 a 2006, a extrema pobreza foi reduzida em 58,54%. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infãncia (Unicef), 50 milhões de pessoas no Brasil ainda vivem na pobreza e o país permanece entre os cinco mais desiguais do planeta.

Segundo Lúcia Nader, coordenadora de relações internacionais da Conectas, organização não-governamental (ONG) que atua na área, "as recomendações [da ONU] contêm muitos ´continuar´, como se tudo estivesse sendo feito corretamente". Em entrevista à Repórter Brasil por telefone, de Genebra, ela disse que o momento agora é de unir forças em torno da viabilização das propostas. "O mais importante é que o plano seja um instrumento de trabalho em nível nacional. Temos que nos reunir com o governo para ver se isso está acontecendo. A discussão que interessa a partir de agora é como [o compêndio com as recomendações do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas] vai ser aplicado", afirma.

"O Brasil é uma democracia recente. E o governo precisa ter na sua agenda o tema dos direitos humanos como prioridade em todos os níveis: federal, estadual e municipal. Temos o costume de lançar planos, cartilhas e conferências, mas não há um acompanhamento da política pública e a continuidade pelos diversos governos eleitos", analisa Lúcia, salientando o descompasso existente entre as expectativas da ONU e as dificuldades de aplicação prática das políticas públicas.

Sob outro aspecto, porém, o mecanismo das Nações Unidas criado em 2006 inovou. "O jeito como essas questões estão sendo colocadas é novo", observa a coordenadora da Conectas. As recomendações foram feitas pelos Estados [diretamente de um país ao outro], dentro de um novo órgão especializado da ONU, o Conselho de Direitos Humanos. Pelo princípio da soberania entre os países, essa prática seria inimaginável há 10 anos".

A dinâmica permitiu, por exemplo, que os norte-americanos criticassem a falta de ações no Brasil para evitar "os inúmeros casos de tortura", a despeito da conhecida conduta das tropas dos EUA no Iraque. A Venezuela citou a importância do direito à terra e pediu mais informações sobre o andamento da reforma agrária no Brasil. Já a representação do Reino Unido foi uma das que mais cobrou "avanços" no combate ao trabalho escravo no Brasil.

Ao final do encontro, o governo brasileiro assumiu o compromisso voluntário de elaborar relatórios anuais sobre a situação de direitos humanos no país. Anunciou também que deve criar um sistema nacional de indicadores nessa área. O país será novamente avaliado pelo mesmo mecanismo em 2012.

Trabalho escravo
Em linhas gerais, o documento final da ONU é mais brando do que a análise sobre a situação brasileira elaborada pela Anistia Internacional por ocasião da Revisão Universal Peri&oa
cute;dica. Divulgada dias antes da apresentação brasileira em Genebra, a análise da entidade coloca a violência pela terra como ponto mais crítico na defesa dos direitos humanos no Brasil. O parecer vai ao encontro do balanço anual "Conflitos no Campo Brasil 2007", divulgado também na última terça-feira pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

O documento da Anistia afirma ainda que há pressão dos proprietários de terras contra os esforços do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) no combate ao trabalho escravo. É citado o "lobby" dos ruralistas no Congresso Nacional para impedir o avanço da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001, a chamada "PEC do Trabalho Escravo", que prevê o confisco, sem pagamento de indenização, de fazendas onde houver trabalho escravo.

Já o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, lançado em 2005 e objeto de recente revisão, é citado no relatório do governo brasileiro como um exemplo de política pública na área de direitos humanos. Para sustentar a tese, são apresentados os recentes recordes alcançados pelo grupo móvel de fiscalização, vinculado ao MTE. Nos últimos doze anos, foram libertados 27.645 pessoas. Em 2007, atingiu-se o número de 5.877 libertações, maior índice registrado desde 1995, quando esse tipo de ação teve início.

O relatório governamental apresenta apenas três vetores do Plano: ações para evitar que trabalhadores regatados voltem a trabalhar em condições análogas à de escravo, capacitação de trabalhadores resgatados e a construção de cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo – a chamada "lista suja" do trabalho escravo, instrumento crucial na mobilização pelo combate à escravidão contemporânea.

Em relação às duas primeiras medidas, o assessor da SEDH, José Guerra, reconhece que "há dificuldade de implementação". E completa: "Uma grande parte desses trabalhadores não tem uma documentação básica. Esperamos que, com o Plano Social Registro Civil de Nascimento e Documentação Básica, as políticas tendem a ser mais efetivas".

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