Rio Grande do Norte

Matadouros públicos irregulares abrigam trabalho infantil

Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) flagra crianças e adolescentes trabalhando em abatedouros municipais. Prefeituras de Nova Cruz, João Câmara e São Paulo do Potengi declaram ter tomado providências
Por Maurício Hashizume
 10/06/2008

Quando se lembra do cheiro de sangue, da agonia do boi morto a marretadas em galpões sem as mínimas condições sanitárias e do desespero de crianças e adolescentes que trabalham em matadouros do Rio Grande do Norte por sobras de animais para suprir a alimentação da família, a auditora fiscal do trabalho Marinalva Cardoso Dantas utiliza a expressão "circo de horrores".

Algumas cenas registradas pela experiente Marinalva – que atuou coordenando o grupo móvel do trabalho escravo por nove anos – durante as fiscalizações realizadas nos municípios de Nova Cruz (março deste ano), João Câmara e São Paulo do Potengi (ambos no final de maio) foram capturadas de modo sui generis: "Apontava a câmera, fechava os olhos e apertava o botão".

"O pai de uma das crianças dos municípios visitados declarou que cria os filhos lá dentro e que vive no matadouro desde os oito anos", relata. Adolescentes "fazem" (laçam, desferem marretadas, sangram, retalham, tiram o couro e as vísceras) o boi sob a supervisão dos marchantes (compradores de gado vivo que revendem a carne para consumo); crianças retiram as fezes das tripas, recolhem o fel (bile) e fazem qualquer tipo de serviço sujo em troca de uma pelanca (sebo) ou um pedaço de miúdo para colocar no feijão.

Criança trabalha no matadouro de Nova Cruz; prefeitura aguarda novo galpão (Foto:SRTE-RN)

"Tivemos muita dificuldade para a abordagem às crianças, porque todas corriam e se escondiam quando nos aproximávamos, inclusive fugiam para a rua", descreve Marinalva no relatório sobre a inspeção em Nova Cruz (RN). O ambiente "hostil e violento", completa, não chegou a impedir filmagens e a gravação de depoimentos curtos de alguns dos presentes, mas impossibilitou que a fiscalização entrevistasse formalmente as pessoas.

A fiscalização do matadouro municipal de Nova Cruz se deu por conta de uma solicitação do Conselho Tutelar do município. "Conversamos primeiro com a Secretaria de Ação Social do município. Como a situação continuava do mesmo jeito, consultamos o Conanda [Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente] e depois tivemos que acionar o Ministério do Trabalho e Emprego", recorda Grécia Maria Vieira, que faz parte do Conselho Tutelar de Nova Cruz, que cumpre agora a difícil tarefa de identificar os pais e responsáveis dos jovens.

Em função do que se constatou em Nova Cruz, o promotor Antonio Carlos Lorenzetti de Mello, do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Norte, expediu a recomendação de Número 2/2008, publicada no dia 7 de maio de 2008 no Diário Oficial do Estado. No documento, Antonio Carlos aponta medidas para que sejam cumpridas pela prefeitura. O promotor pede que a Secretaria de Ação Social do município identifique e cadastre as crianças e adolescentes envolvidas em atividades no matadouro municipal em programas sociais e solicita o fechamento do acesso aos matadouros, restringindo o acesso somente a pessoas com mais de 18 anos.

O promotor também recomenda a presença de uma guarnição do Batalhão de Polícia Militar da região (8º BPM) na entrada do matadouro nos dias de abate, "tendo em vista o uso de arma de fogo naquele local e, em especial, a permanência de crianças e adolescentes no matadouro". Por fim, o documento pede providências (no prazo de 60 dias) no que diz respeito à celebração de convênio com o Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Norte (Emater), órgão do governo estadual, para a construção de um novo matadouro e uma pocilga em terreno apropriado.

De acordo com João Severino da Cunha, chefe de gabinete da Prefeitura de Nova Cruz, a administração municipal tomou providências logo que recebeu as recomendações da promotoria. Ele admite que o estabelecimento "arcaico" funciona há mais de 30 anos e está completamente "fora dos padrões do que exige a norma de saúde e segurança do trabalho".

"Vamos fechar as portas do matadouro e construir um novo", promete João Severino, confirmando previsão do convênio com a Emater. O terreno de 1 mil m2 localizado a 3 km do centro da cidade, dotado de infra-estrutura de água e energia elétrica, já foi adquirido, garante o chefe de gabinete do prefeito Cid Arruda Câmara (PMN). Falta agora a lic

Estabelecimento municicipal de Nova Cruz funciona há mais de 30 anos (Foto:SRTE-RN)

itação para a obra. "Apenas com recursos próprios, fica difícil. Pegamos a prefeitura muito defasada em termos de estrutura e investimos no hospital da cidade. Temos 35 mil habitantes e é difícil melhorar todas as áreas".

Segundo Grécia, do Conselho Tutelar, porém, as crianças não entram mais, mas ainda rondam o matadouro. "Não queremos que eles fiquem nem por perto. Se isso continuar, acionaremos a promotoria com um pedido para que o matadouro seja fechado".

O promotor Antonio Carlos conta que já tinha firmado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a prefeitura para que as crianças fossem incluídas no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) e diz que já solicitou novas fiscalizações do MTE. O problema dos matadouros, avalia, vai além do trabalho infantil e envolve um conjunto de lacunas graves nas questões sanitárias, desde vacinação a guias de transporte até o funcionamento de matadouros clandestinos à venda em feiras livres. Ou seja, a exploração do trabalho infantil se encaixa a um "mercado" paralelo.

Ele aposta, portanto, na construção dos novos matadouros no convênio com a Emater como forma de superação do quadro atual. E dá o prazo de um ano para que o novo espaço seja aberto. "Estabelecemos multa em caso de descumprimento e o matadouro pode até ser fechado. É uma questão grave, mas que leva tempo para ser solucionada", projeta.

Novos abatedouros
A assessoria da Emater informa que cinco novas "unidades didáticas de processamento e beneficiamento de carnes" financiadas com recursos do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT) já estão em fase de instalação (João Câmara, Lagoa Salgada, Cerro Corá, São Vicente, Ouro Branco) e que uma, em São Paulo do Potengi, já foi inaugurada. Cada unidade custará R$ 300 mil, somando-se a obra e os equipamentos. A gestão dos espaços será comunitária (pref
eitura, produtores, munícipes) e, conforme a realidade regional, terá estrutura para o abate de bovinos, ovinos, caprinos e suínos.

Os seis novos matadouros serão acompanhados de outras 22 unidades (incluindo Nova Cruz) – nove das quais serão apenas prédios, sem a previsão de equipamentos no convênio – que totalizam um investimento de R$ 8,7 milhões: R$ 7,9 milhões do governo federal, sendo parte do MCT e parte do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), e R$ 875 mil do governo estadual. O projeto, explica a assessoria da Emater, está ligado a outras iniciativas de desenvolvimento rural, como o crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e a política de assistência técnica agropecuária. A idéia é reunir diversos elementos que possam melhorar a qualidade de vida e viabilizar renda.

Novo matadouro de São Paulo do Potengi não está em atividade por problema técnico (Foto:Emater)

A carne vendida em feiras livres tem preços baixos. A Emater avalia que os novos matadouros "induzem a organização do setor" e podem incrementar a qualidade da carne (agregando valor ao produto), permitindo assim a venda por preços melhores a supermercados (melhorando a cadeia produtiva). Cerca de 90% do crédito agropecuário distribuído pelo Pronaf no estado vai para a criação (gado, caprinos, ovinos, etc.).

Em São Paulo do Potengi (RN), a nova unidade inaugurada em 13 de abril deste ano ainda não promoveu esse conjunto de mudanças pretendidas pela Emater. O secretário municipal de Agricultura, Pecuária e Pesca, Johan Adonis, realça que a "unidade didática de processamento e beneficiamento de carnes" recebe esse nome justamente porque também tem a incumbência de treinar profissionais para atuar na área (os chamados magarefes).

Segundo ele, a produção no novo matadouro segue as normas vigentes e o boi é abatido com pistola de ar comprimido – e não a marretadas, como nos matadouros antigos – e há controle rígido do acesso de pessoas. "Só entra quem é credenciado. E temos lá várias pessoas treinadas: técnicos agropecuários, veterinário, etc.". Os marchantes não entram com o seu "pessoal", garante o secretário. A câmara fria armazena cerca de 30 bois e a capacidade diária de abate chega a 60 bois diários.

Contudo, o antigo matadouro não foi fechado. "Temos projetos de transformar o antigo matadouro numa escola cultural de poesia e música ou num abrigo para idosos", revela Johan. Na opinião dele, as denúncias são importantes "como alerta", mas a situação retratada pela fiscalização não se aplica propriamente a São Paulo do Potengi. "Há mulheres que costumam trabalhar nos matadouros", frisa o integrante da administração do prefeito José Leonardo Casimiro (PSB), lembrando que há casos em que crianças seguem as mães. "Trata-se de um processo de transição de uma cultura para outra".

Medidas efetivas
A equipe da fiscalização do MTE esteve em São Paulo do Potengi no dia 31 de maio, isto é, um mês e meio depois da inauguração do novo matadouro. Mesmo assim, segundo descreve a auditora fiscal Marinalva, o matadouro antigo estava em plena atividade. Dezenas de bois, ovinos e suínos foram abatidos naquele final de semana e havia mulheres, meninas e meninos trabalhando no local.

Jovem caminha com os pés descalços pelo chão coberto de sangue em Nova Cruz (Foto: SRTE-RN) 

"Mesmo com a construção dos novos, os matadouros medievais resistem", adiciona Marinalva, da Superintendência Regional de Trabalho e Emprego do Rio Grande do Norte (SRTE-RN). Ela conta que ninguém indicou a existência do novo estabelecimento e que um servidor municipal cobrava normalmente as taxas de uso das dependências no abatedouro antigo. O secretário Johan Adonis, por sua vez, informa que houve problemas técnicos em equipamentos do novo matadouro e que, em função disso, a atividade continua concentrada no matadouro antigo, após quase dois meses da inauguração do novo.

Na opinião da fiscal, a primeira e mais urgente providência a ser tomada seria o controle da entrada de pessoas nos matadouros, já que quase a totalidade dos municípios do Rio Grande do Norte tem um matadouro municipal. "Você entra, pergunta quem é que administra o lugar e ninguém fala nada", discorre. A presença da polícia pode inibir a entrada de crianças e adolescentes, mas é temporária. "É preciso instalar portões, distribuir crachás, etc.".

Outra medida importante sugerida por ela seria a organização de ações conjuntas com a participação de representantes de diversos setores como o Ministério da Agricultura, a Vigilância Sanitária e a fiscalização do trabalho. "Todas as coisas estão interligadas. As questões dos alimentos e das feiras são de interesse público".

Procedimento extrajudicial
A quantidade de abates em João Câmara (RN), ponto de convergência da região conhecida como Mato Grande, chega a 80 bois por dia, conforme as contas de Marinalva. "As vísceras dos animais ficavam expostos numa construção anexa ao matadouro municipal", complementa a fiscal.

O promotor Paulo Pimentel confirma que o colega afastado Ivanildo Alves da Silveira, instaurou procedimento extrajudicial em 2006, com base em TAC firmado junto à prefeitura. Na ocasião, Ivanildo solicitara a inspeção da secretaria estadual de Agricultura e, a partir do relatório recebido, definiu critérios de melhoria das condições do abatedouro com relação a questões de higiene, de meio ambiente e de cumprimento do direito ao consumidor.

Garoto tira fezes de entranhas do boi; procurador que priorizar proteção de crianças (Foto: SRTE-RN)

As condições impróprias foram confirmadas pelo secretário de Administração e Fazenda de João Câmara, Mauro Bandeira. "Nos últimos 20 anos foram feitos vários melhoramentos, mas mesmo assim sabemos que são insuficientes para os padrões vigentes".

Ele diz que a construção do novo matadouro pelo mesmo convênio da Emater está em fase conclusiva (espera que a
inauguração seja realizada até 15 de julho) e promete que o antigo abatedouro será desativado. O secretário declara que crianças não trabalham e nem entram mais no local. "O novo abatedouro está localizado a cerca de 1 km do centro da cidade e terá a proteção de seguranças. Será montada ainda uma cerca para aumentar o isolamento", prevê o integrante da gestão da prefeita Maria Gorete Leite (PPS). A capacidade do novo abatedouro poderá chegar, nos períodos de picos de produção, a 220 animais por semana.

Nesta segunda-feira (9), Xisto Tiago de Medeiros Neto, da Procuradoria Regional do Trabalho da 21a Região (PRT-21) se reuniu com auditores fiscais do MTE e com representantes do Ministério Público Estadual pra tratar do assunto. "É preciso apurar caso a caso as responsabilidades de prefeituras, dos possíveis beneficiários [produtores, intermediadores e comerciantes] e dos pais ou responsáveis pelas crianças", convoca.

"O que é prioritário agora é a proteção da criança e do adolescente", analisa. Uma consulta prévia aos conselhos tutelares atesta que a maioria das crianças que freqüenta os matadouros vai à escola regularmente e parte delas recebe até benefício de programas sociais governamentais. "Isso está acontecendo fora do período da aula e precisa acabar. Esse quadro surpreende mesmo quem participa do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e Proteção do Adolescente Trabalhador (Foca) [coordenado pela fiscal Marinalva], em especial por que a população local não fez denúncias para promotores, procuradores e imprensa. Foi preciso uma ação do conselho tutelar municipal para que a questão viesse à tona".

O procurador antecipa que deve buscar acordos por meio de TACs antes de aplicar medidas repressivas. "Se preciso for, pedirei a interdição. Ocorre que muitas vezes não é só suspender. Temos que buscar a inserção social".

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