Reforma Agrária

MST, 25 anos: camponeses protagonizam luta pela terra

Principal movimento social do país, com mais de 2 milhões de pessoas mobilizadas sob sua bandeira, o MST recolocou a reforma agrária na agenda política nacional e transformou a luta pela terra em uma causa de massas
Por Carlos Juliano Barros
 23/01/2009

Desde a última terça-feira (20) até sábado (24), milhares de militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de todo o país estão reunidos no município de Sarandi, no interior do Rio Grande do Sul, para uma série de atividades que marcam as comemorações do aniversário de 25 anos de um dos principais movimentos sociais do país.

O lugar escolhido para o encontro, a antiga Fazenda Anonni, tem uma importância simbólica: no final da década de 70, ela foi palco de diversas ocupações – instrumento de luta pela reforma agrária adotado pelo movimento – que são consideradas a gênese do movimento. No local, há hoje quatro assentamentos. Alguns dos participantes do primeiro encontro realizado em janeiro de 1984 na cidade de Cascavel (PR), que culminou com a criação do MST, fizeram parte justamente das mobilizações pioneiras que reivindicavam a destinação das terras da Anonni para pequenos produtores.

Encontro em assentamento do Rio Grande do Sul celebrou os 25 anos do MST (Foto: Verena Glass)

José Juliano de Carvalho, professor aposentado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP) e diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), define o MST, que completou um quarto de século, como "a mais importante organização social de massas da história da questão agrária no Brasil".

Os números corroboram as palavras de José Juliano. Das 230 mil famílias acampadas em beiras de estrada à espera de um pedaço de chão em todo o Brasil, cerca de 100 mil estão vinculadas ao movimento. Presente em 24 das 27 unidades da federação, já conduziu pelo menos 370 mil famílias a projetos de assentamento. Ao menos dois milhões de pessoas estão organizadas sob a bandeira vermelha do MST. Trabalhadores rurais ligados à organização integram aproximadamente 400 associações e cooperativas que produzem alimentos de forma coletiva, evitando o emprego de agrotóxicos e a utilização de sementes transgênicas, além de operar 96 agroindústrias que processam as matérias-primas cultivadas por esses agricultores familiares.

No campo da educação, outra importante vertente de atuação do movimento, há cerca de 2 mil escolas públicas espalhadas por assentamentos e acampamentos, onde estudam quase 300 mil alunos e trabalham 10 mil professores. O MST ainda mantém convênio com mais de 50 instituições de ensino superior para a graduação de profissionais das mais diversas áreas, como pedagogia, direito e agronomia – com foco nas comunidades.

"Nesses 25 anos, os objetivos continuam os mesmos: a luta pela terra e a mudança da estrutura da sociedade", declara Marina dos Santos, integrante da coordenação nacional do movimento. Não se pode negar, porém, que mesmo com todo o barulho causado por movimentos como o MST, a estrutura fundiária brasileira segue como uma das campeãs mundiais em termos de concentração. Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), 1% das propriedades equivalem a quase um terço da área somada de imóveis rurais. Na contramão, os pequenos sítios com até 100 hectares, que respondem por cerca de 85% do número total de imóveis rurais, ficam com apenas 20% do território destinado à agropecuária no Brasil.

Os militantes do MST seguem despertando a ira e arrepiando os cabelos das entidades de classe e dos parlamentares que defendem os interesses ruralistas. "Até hoje eles não constituíram uma entidade. São pessoas que se resguardam na clandestinidade. São pessoas que atacam, invadem e destroem e simplesmente não sofrem as penalidades da lei. Isso dá a eles um conforto inimaginável", disse em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo o deputado federal Ronaldo Caiado (DEM/GO), um dos expoentes ruralistas. Na década de 1980, ele foi um dos fundadores da União Democrática Ruralista (UDR), criada para reagir – não raro, através da violência ostensiva por meio da contratação de milícias armadas – às ocupações de terra que cresciam naquele momento.

A senadora Kátia Abreu (DEM/TO), que acumula a presidência da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), entidade que representa principalmente os interesses do chamado agronegócio, declarou à mesma Folha que a luta pela reforma agrária empreendida pelo MST é uma espécie de "assombração viva" para os grandes produtores.

As perseguições políticas ao movimento não ficam apenas no discurso. Aprovado numa manobra nos estertores da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Terra, o relatório alternativo do deputado Aberlardo Lupion (DEM/PR), outro baluarte da bancada ruralista, chegou a pedir o enquadramento das ocupações de terra como ato terrorista e crime hediondo. Não custa lembrar que a primeira versão do relatório final da CPMI, redigida pelo então deputado João Alfredo (PSOL/CE), defendia o fortalecimento do Incra e a reforma agrária como ferramenta para combater a violência no campo, mas acabou sendo barrada pelos integrantes da comissão.

A atuação do MST também foi adotada como alvo de investigações do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul. Em setembro do ano passado, os advogados do movimento encaminharam uma denúncia às Organizações das Nações Unidas (ONU) contra posicionamentos do MP gaúcho, que enquadrou oito trabalhadores do MST na Lei de Segurança Nacional, criada durante a ditadura militar, por reivindicar a destinação de uma fazenda localizada em Coqueiros do Sul (RS) para fins de reforma agrária. Ouvido na época pela Repórter Brasil, o jurista Fábio Konder Comparato qualificou de "delírio" a atitude do MP, condenou a criminalização dos movimentos sociais e reiterou que as ações dos integrantes do movimento têm como objetivo o cumprimento da função social da terra, prevista na Constituição Federal.

Os agricultores familiares respondem por 70% da produção dos alimentos consumidos pela população brasileira, segundo levantamento do Minist&eacut
e;rio do Desenvolvimento Agrário (MDA). O atual governo, contudo, "não entende mais a reforma agrária como uma política de desenvolvimento para o país, e dá apoio incondicional ao agronegócio", de acordo com análise de Ariovaldo Umbelino de Oliveira, professor do Departamento de Geografia da USP.

Grandes empresários que produzem soja, cana-de-açúcar, celulose e carne bovina para o mercado estrangeiro – bases essenciais de sustentação da plataforma de exportação brasileira estimulada pelo Palácio do Planalto – são tratados com vivas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em declarações que repercutiram internacionalmente, o presidente chegou a tachar os usineiros brasileiros até de "heróis nacionais".

A partir da base
A luta de trabalhadores rurais pelo acesso à terra não começou com o MST. Ao longo da história brasileira, ela vem pipocando em focos pontuais do território nacional desde a formação dos quilombos, passando por episódios emblemáticos como a formação do povoado de Canudos e a guerra do Contestado, chegando até a constituição das Ligas Camponesas na Região Nordeste, na metade do século XX.

De lá pra cá, a reforma agrária chegou a ser colocada em xeque inclusive por setores da esquerda brasileira. "No mundo acadêmico, muitos estudiosos haviam decretado o fim do campesinato e da necessidade da reforma agrária. O MST recolocou isso para a sociedade e confrontou relações de dominação que eram intocáveis na nossa história", argumenta o professor José Juliano. 

Antes do surgimento de organizações como o MST e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) – criada em 1975 como um dos braços da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) no campo -, a reforma agrária era uma causa defendida principalmente por intelectuais e grupos do meio urbano. Influenciados pela "opção radical pelos pobres" da "Teologia da Libertação", corrente progressista da Igreja Católica lapidada por clérigos latino-americanos, o MST e entidades parceiras como a CPT assumiram a dianteira na luta pela reforma agrária como meio de transformação a partir da base.

Para Marina dos Santos, da coordenação nacional do movimento, o MST se diferenciou de outras organizações ao se articular praticamente em todo país. "Temos relações com vários setores da sociedade, Igreja, partidos políticos, governos, mas continuamos sendo autônomos", completa.

Passados 25 anos desde a sua fundação, o encontro de Sarandi é uma oportunidade para que os militantes façam uma espécie de balanço e de auto-avaliação, repensando as estratégias para o futuro.

Na avaliação de João Paulo Rodrigues, que também faz parte da coordenação nacional do MST, o encontro acontece em "um período difícil para a classe trabalhadora e para a esquerda no Brasil – um período de descenso da luta social". O coordenador da campanha de combate ao trabalho escravo da CPT, Frei Xavier Plassat, também concorda com a análise de que houve uma desaceleração das mobilizações dos movimentos sociais em geral, em especial durante o governo do presidente Lula. "O MST", ressalva Xavier, "é um dos [grupos sociais] que mais resistiu a esse refluxo".

Para contornar esse momento de fragmentação, João Paulo prega novas alianças, principalmente com setores ligados ao meio urbano. Para ele, essas parcerias precisam extrapolar aquelas aproximações históricas já firmadas com entidades como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a União Nacional dos Estudantes (UNE). "A reforma agrária tem que ser uma proposta do povo brasileiro, e não somente do MST", propõe. 

"Outro grande desafio é continuar combatendo o latifúndio improdutivo, que ainda existe em uma parte significativa do território nacional", afirma João Paulo. De acordo com o professor Ariovaldo, os imóveis rurais considerados improdutivos, e que de acordo com a Constituição Federal deveriam ser desapropriados para fins de reforma agrária, compreendem uma área de cerca de 120 milhões de hectares. "O Incra sabe quais são os imóveis improdutivos do país. Não se faz reforma agrária porque ela traz a nu esse lado escandaloso da nossa sociedade", argumenta Ariovaldo.

enfrentamento ao modelo agrícola com base no agronegócio primário-exportador ocupa espaço privilegiado na agenda do MST. De acordo com João Paulo, as conseqüências relacionadas à opção em curso são preocupantes: concentração de terras nas mãos de transnacionais interessadas em expandir monoculturas, exploração de mão-de-obra escrava, aumento do desmatamento das florestas nativas e popularização das sementes transgênicas patenteadas por grandes empresas do setor.

Em contraponto aos que defendem a vocação exportadora da agropecuária brasileira, a coordenadora Marina dos Santos lembra que, ao longo desses 25 anos, a militância do MST contribuiu para divulgar em nível internacional a bandeira da "soberania alimentar": imperativo de produção mínima e livre de amarras para a garantia do direito básico à alimentação. "Nesse tempo todo, a sociedade reconheceu o MST como movimento que luta contra o latifúndio que concentra terra e contra o agronegócio que quer se apropriar das riquezas naturais que pertencem à nação e aos trabalhadores", finaliza.

Notícias relacionadas:
MST faz denúncias à ONU contra processo de criminalização
Movimentos denunciam onda que criminaliza lutas populares
Subestimados, movimentos do campo apresentam plataforma
Proposta do MST se aproxima de relatório e de iniciativa da ONU
Movimentos cobram aplicação de agenda "esquecida" da FAO
Sem-terra demonstram força política em dois atos em Brasília
MST reúne 18 mil e propõe mudanças que não se limitam à reforma agrária

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM