Violência

Em 2008, 70% dos índios assassinados eram Guarani Kaiowá

Dados fazem parte de relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Para liderança indígena Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul, falta de terras demarcadas pelo governo faz com que conflitos fiquem mais acirrados
Por Bianca Pyl
 18/05/2009

Dos 60 assassinatos de indígenas ocorridos no Brasil inteiro, 42 vítimas eram Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul. Os outros assassinatos ocorreram no Maranhão (3), Minas Gerais (4), Alagoas (2), Pernambuco (2) e Tocantins (2). Os dados são do Relatório de Violências Contra Povos Indígenas 2008, divulgado pelo Conselho Indígenista Missionário (Cimi).

"Ninguém é condenado quando mata um índio. Na verdade, os condenados até hoje são os indígenas, não os assassinos", desabafa Anastácio Peralta, liderança do povo Guarani Kaiowá da região. O relatório do Cimi destaca o caso de um jovem da mesma etnia, morto por um agente policial. A polícia alega resistência da vítima, que teria resultado num confronto.

Houve 42 vítimas fatais do povo Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul (Foto: Verena Glass)

"Nós estamos amontoados em pequenos acampamentos. A falta de espaço faz com que os conflitos fiquem mais acirrados, tanto por partes dos fazendeiros que querem nos massacrar, quanto entre os próprios indígenas que não tem alternativa de trabalho, de renda, de educação", lamenta Anastácio Peralta.

Há suspeitas de que muitos dos assassinatos possam ter sido praticados pelos próprios indígenas. Em 12 casos, os principais suspeitos são familiares da vítima. Vingança foi o motivo alegado em pelo menos oito casos.

O relatório destaca que "a violência entre os próprios índios é o indicativo mais importante para avaliar o grau de tensão e profundo mal estar dentro das aldeias indígenas, sendo, inclusive, uma das causas para os deslocamentos de muitas famílias para a beira de estradas ou centros urbanos".

A violência denominada "interna" é considerada mais complexa pelo Cimi. "Os povos indígenas aprenderam durante a longa luta pela recuperação e posse de suas terras a elaborar inúmeras estratégias de enfrentamento", aponta o relatório. Mato Grosso do Sul também é o único estado onde houve suicídios: 34 no total, sendo todas as vítimas da etnia Guarani Kaiowá.

Anastácio avalia que os assassinatos e suicídios entre indígenas acabam gerando maior preconceito contra as comunidades. "Com isso, os meios de comunicação divulgam só as brigas e mortes, mas não analisam como estamos vivendo. A polícia vem rapidamente prender um índio que fizer algo errado. Mas se algo for feito contra ele, não são tomadas providências".

Casos de violência contra os profissionais da Fundação Nacional do Índio (Funai) também foram registrados em 2008. "Os antropologos são impedidos de entrar e realizar os estudos para a demarcação das nossas terras. Eles são ameaçados por capangas dos fazendeiros", conta Anastácio Peralta.

O documento do Cimi destaca ainda que a Funai "não teve condições políticas para desenvolver as suas atividades, uma vez que o próprio presidente da fundação estabeleceu acordos com fazendeiros e autoridades estaduais para restringir os trabalhos deste Grupo Técnico (responsável pela realização dos estudos antropológicos), submetendo-os à ingerência daqueles que declaradamente se opõem a demarcação das terras".

A população Guarani Kaiowá é composta por mais de 44,5 mil, de acordo com dados da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) de 2009. Desse total, mais de 23,3 mil estão concentrados em três terras indígenas (Dourados, Amambaí e Caarapó), demarcadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (criado em 1910 e extinto em 1967), que juntas atingem 9.498 hectares de terra.

Território
Em 2008 foram registrados 16 conflitos relativos aos direitos territoriais. Os casos aconteceram na Bahia (2), no Ceará (4), no Maranhão (1), no Mato Grosso (1), no Mato Grosso do Sul (1), no Pará (1), em Rondônia (5) e em Santa Catarina (1). O relatório aponta que em 9 casos a causa principal "foi a morosidade das autoridades na regularização das terras indígenas. Há casos de Terras Indígenas TIs) já homologadas, onde invasores continuam na área e o governo federal não efetua a desocupação".

O governo federal homologou apenas uma TI em 2008, enquanto 57 territórios já declarados aguardam apenas a homologação.

O levantamento do Conselho Indigenista Missionário aponta 37 casos de omissão e morosidade na regularização de terras indígenas, no ano passado. "A Funai não atende às demandas das comunidades indígenas. Há demora na demarcação e algumas vezes até paralisação do processo. A falta de recurso é usada como justificativa", diz Roberto Liebgott, vice-presidente do Cimi. A Constituição de 1988 estipula um prazo de cinco anos para o reconhecimento e regularização de todas as terras indígenas (TIs).

"Em muitos casos, depois da constituição do Grupo Técnico (GT), há demora para se iniciar a pesquisa antropológica e o levantamento fundiário. Casos exemplares desta situação ocorrem nos três estados da região Sul e no Mato Grosso do Sul", adiciona Roberto.

Os indígenas enfrentam outro problema mesmo depois da homologação: a retirada dos invasores. A terra Apyterewa, do povo Parakanã, no Pará, é um exemplo. A terra já foi homologada, no entanto os mais de 1,2 mil fazendeiros e madeireiros continuam no local, segundo o relatório do Cimi.

Outro caso relatado é o da comunidade Tupinambá, que foi expulsa de forma violenta de uma terra que havia retomado porque a Funai não cumpriu o prazo estipulado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) para finalizar o relatório de identificação das terras.

Há sete casos de conflitos provocados pela construção de obras, como um centro turístico e um porto no Ceará. Em Rondônia, de acordo com avaliação do Cimi, obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal não levaram em conta os impactos aos povos isolados nas regiões atingidas, colocando em risco a sobrevivência dos mesmos. É o caso da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, no Rio Madeira, e do asfaltamento da BR-429, que liga os municípios de Presidente Médici e Costa Marques.

Recursos
Tramita no Congresso um projeto de lei que permite a exploração de recursos minerais em TIs. A matéria causa preocu
pação dos povos indígenas, que dependem dos recursos naturais das suas terras para sobreviver. 

Em 2008, ocorreram 41 casos de invasões possessórias e de exploração de recursos naturais em áreas indígenas no Brasil. Foram registrados casos de invasão por parte de grileiros, agricultores e pecuaristas. Madeireiros e garimpeiros retiraram ilegalmente de terras indígenas madeira e minerais como cascalho, areia, pedras preciosas e ouro.

Os casos ocorreram nos estados do Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rio de Janeiro, Rondônia, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina e Tocantins.

O estado com o maior número de casos (8) foi Rondônia. O relatório do Cimi contabiliza invasão de terras indígenas por fazendeiros, exploração ilegal de madeira, retirada de areia e construção de obras. O relatório sobre violência contra indígenas sublinha ainda que o próprio governador de Rondônia, Ivo Cassol, ocupa 80% do território tradicional do povo Wayurú.

Mato Grosso aparece com sete registros (entre desmatamento, exploração ilegal de madeira, invasão por fazendeiros, poluição de rios por agrotóxicos e pesca predatória). "Isto não surpreende, visto que o Mato Grosso tem registrado os piores índices de desmatamento em conseqüência da expansão de monoculturas, sobretudo de soja, que requerem, além de espaço, uso intensivo de agrotóxicos", conclui o documento do Cimi.

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