Especial

Município do Tocantins lidera ranking de soja e de pobreza

Aditivado por projeto controverso que enriquece fazendeiros e transnacionais, Campos Lindos (TO) é líder estadual de produção de soja. Localidade tem a maior proporção de pobres de todo o país, segundo pesquisa do IBGE
Por Maurício Hashizume*
 20/07/2009

Confira o Capítulo 2 do Especial:
Fartura de grãos contrasta com precariedade de políticas sociais

A propaganda do agronegócio associa a expansão acelerada da soja à prosperidade. Os problemas são os fatos, que não escondem os problemas socioambientais vinculados à atividade. Uma dessas chagas atende pelo nome de Projeto Agrícola Campos Lindos, no Nordeste do Tocantins, a 491 km da capital Palmas (TO). O empreendimento, que este ano completou uma década e exporta milhares de toneladas do grão todos os anos, é resultado de dois contestados processos de "titulação" pública, não teve licença ambiental para se instalar, foi palco de trabalho escravo e desalojou famílias tradicionais que hoje padecem com índices vergonhosos de pobreza.

A Repórter Brasil preparou duas reportagens especiais que recuperam o processo de gênese do lucrativo negócio numa das áreas mais privilegiadas do Cerrado e revelam as consequências nada reluzentes para o "povo comum" da região. Este capítulo inicial trata da formação do Projeto Agrícola Campos Lindos – marcado pela aguda intervenção do ex-governador Siqueira Campos (PSDB), pelo beneficiamento privado dos "amigos do rei" e pela postura polêmica de órgãos públicos que deveriam zelar pelo interesse coletivo. O segundo e último capítulo esmiuçará as marcas da indigência no cotidiano e o grau de violação de direitos fundamentais em Campos Lindos (TO).

Capítulo 1) Topo dos rankings
As cifras e os números de Campos Lindos (TO) – na divisa com o Maranhão – impressionam. Desde 2005, o município é o campeão estadual de exportações. Exportações essas que, no caso campolindense, se resumem à soja. Em 2008, as vendas externas da localidade somaram US$ 78,5 milhões, mais de um quarto (26,4%) de tudo o que saiu do estado para fora do país em 2008. Aliás, a prevalência do comércio do grão em âmbito estadual é surpreendente: a cada US$ 10 exportados pelo Tocantins, US$ 8 dizem respeito à soja.

Essa "explosão" foi aditivada, em grande medida, pelo Projeto Agrícola Campos Lindos, instalado a partir do final dos anos 1990. Os grãos colhidos na Serra do Centro são escoados predominantemente ao mercado externo pelo Porto de Itaqui, em São Luís (MA). De acordo com dados da Produção Agrícola Municipal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a área plantada do grão em Campos Lindos (TO) saltou de 3,6 mil hectares, em 1999, para 49 mil hectares em 2007 (confira gráfico abaixo). No mesmo período, a área plantada no Brasil era de 13 milhões de hectares em 1999, atingiu o topo em 2005, com 23,4 milhões, e deu uma leve recuada para 20,5 milhões, em 2007.

Em termos de produção, os dados são ainda mais insinuantes. Em 1999, as lavouras renderam 9,3 mil toneladas de soja. Em 2007, esse montante saltou para 127,4 mil toneladas (veja Tabela 1612). Ou seja, um crescimento de 1.370% em oito anos. No Brasil, a produção aumentou 187%: de 30,9 milhões de toneladas, em 1999, para 57,8 milhões de toneladas, em 2007.

O valor da produção municipal também cresceu aceleradamente: de R$ 2,2 milhões, em 1999, a 55, 1 milhões, em 2007. A curva nacional foi bem menos acentuada: de R$ 7,2 bilhões, em 1999, para R$ 25,7 bilhões, em 2007. O ritmo acelerado também pode ser explicado pela presença de multinacionais como Bunge e Cargill, que estimularam a produção de soja: com a instalação de grandes silos de armazenamento no município, com o fornecimento de insumos e com compromissos de compra de tudo o que for produzido.

Criado no papel em 1989 e instituído na prática em 1993, Campos Lindos (TO) está no topo de outro ranking. A localidade ocupou o primeiro posto absoluto entre todos os municípios do país no Mapa de Pobreza e Desigualdade, divulgado no final do ano passado. O mesmo IBGE, que mede a produção, também cruzou dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2002-2003 com o Censo 2000 e revelou que 84% da população de Campos Lindos vivem na pobreza. Mais grave: 62,4% dos moradores estão na extrema indigência, ou seja, não ingerem o mínimo de calorias diárias para sobreviver.

Curiosamente, a terceira colocação da lista nacional também é ocupada pelo terceiro município tocantinense com maior produção de soja. Em Mateiros (TO), 26,8 mil hectares estão ocupados pelo grão e os pobres constituem 81,5% da população local. Pedro Afonso (TO), com 35 mil hectares, está em segundo lugar no total de área dedicada a sojicultura.

O IBGE constatou ainda que os habitantes dos três municípios com maior proporção de pobres do país – Campos Lindos (TO), Muricilândia (TO) e Mateiros (TO) – consomem, em média, 50% menos do que o padrão ideal de consumo para uma vida regular. Em São Paulo (SP), a "distância" para o consumo ideal é de 9,8%; e em Santos (SP), que tem o menor percentual de pobres do país (4,5%), essa diferença está somente 1,2% abaixo do ideal.

Pau que nasce torto…
Antes da intensa pressão da soja nas últimas décadas, as comunidades locais subsistiam com base no extrativismo (bacuri, buriti, mangaba, mel etc.), na caça e na pesca, na criação (principalmente de gado solto) e na lavoura em sistema rotativo (arroz, milho, mandioca, feijão, fava, abóbora e frutas). Os excedentes de algodão, arroz e farinha de mandioca eram comercializados e trocados por outros produtos nos mercados de Balsas (MA) e Riachão (MA).

Nessa época, o lugarejo ainda era um distrito de Piacá – atual Goiatins (GO) -conhecido como Monte Lindo, "em homenagem às cachoeiras e à beleza da Serra da Cangalha". O nome Campos Lindos, aliás, uniu o adjetivo Lindo (herdado de Monte Lindo) com o último sobrenome do primeiro governador do Tocantins, José Wilson Siqueira Campos (PSDB).

Antes disso, quando ainda fazia parte do Estado de Goi
ás, a área que hoje abriga o Projeto Agrícola Campos Lindos passou pela primeira "titulação" suspeita. De acordo com um dos ex-presidentes do Instituto de Terras do Tocantins (Itertins), Nelito Cavalcante, as terras foram alienadas pelo Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás (Idago), entre os anos de 1981 e 1982, "sem observância dos critérios mínimos exigidos por lei e o local teria sido alvo de especulação imobiliária".

A declaração faz parte da pesquisa "Do sertão à periferia: a expropriação camponesa pela expansão da soja – O caso da Serra do Centro em Campos Lindos", de Mariana Wiecko de Castilho e José Gerley Díaz Castro, com apoio da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Alternativas para a Pequena Agricultura no Tocantins (APA-TO) e da Universidade Federal do Tocantins (UFT) em Araguaína.

Nesse primeiro processo, 27 "proprietários" de outras regiões do país (parte produtores de grãos de outras regiões do país, parte especuladores imobiliários interessados no futuro valor de venda dos imensos terrenos promissores) foram beneficiados com grandes áreas de mais de 2 mil hectares, que começaram a ser ocupadas a partir de meados dos anos 1980.

Cerrado convertido em soja após duas "titulações públicas" controversas (Foto: Jane Cavalcante)

O Projeto Agrícola Campos Lindos surge na segunda "titulação" controversa da mesma área, a partir do Decreto 438/97, de 8 de maio de 1997. No ato, Siqueira Campos declara de utilidade pública (sob alegação de improdutividade) os 105,6 mil hectares da Fazenda Santa Catarina e decide pela desapropriação. Para efetivar o projeto, o mandatário determina que o Itertins e a Procuradoria Geral do Estado (PGE-TO) adotem providências administrativas e judiciais.

Com a manobra, o governo estadual consuma a "grilagem pública" da "grilagem pública" e favorece apadrinhados, invertendo a fórmula original dos assentamentos de "reforma agrária", que busca garantir terra aos excluídos. Afastados do terreno que já foi classificado como "filé mignon" agrícola do Cerrado, famílias de antigos posseiros ficaram à míngua.

O processo de imissão ao Estado foi protocolado em Goiatins (TO) no dia 6 de fevereiro de 1998, às 16h30. Naquele mesmo fim de tarde, o juiz Edimar de Paula foi conduzido de avião especial até a comarca para despachar a petição. Além disso, ele acolheu o depósito do valor irrisório de indenização e não determinou o cumprimento da lei que determina procedimento de avaliação dos bens para a fixação de quantia indenizatória justa. A referência de preço citada nos documentos é de pouco mais R$ 1 milhão para uma área de cerca de 100 mil hectares, ou seja: uma média de risíveis R$ 10 por cada hectare.

O auto de imissão de posse foi lavrado com presteza, no dia 16 de fevereiro de 1998. No mesmo dia, o oficial de justiça que cumpriu o mandado encontrou "apenas" 96,3 mil hectares (em vez da extensão de 105,6 mil hectares atribuídos inicialmente), fato que demonstra o nível da confusão fundiária no bojo das sucessivas intervenções "de cima para baixo".

Amigos do rei
Durante o processo, ficou acordado que os contemplados pagariam pelas terras apenas o que fosse pago pelo Estado, a título de indenização. Segundo nota do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campos Lindos (TO), a ação de indenização contemplou apenas os 27 favorecidos pelo Idago e ignorou as 80 pequenos agricultores com média de 40 anos de posse mansa e pacífica. Essas mesmas famílias, ainda segundo o sindicato, não foram nem contatadas nem informadas sobre o projeto. Depois, aqueles que ficaram (pressionados, muitos foram embora) descobriram – como será destacado no segundo capítulo deste especial – que suas posses tinham sido "convertidas" na área de Reserva Legal em condomínio dos grandes produtores de soja.

Em reação, esse conjunto de 80 famílias de posseiros, mais cerca de 50 que viviam na área de influência do projeto, divulga uma nota pública em 25 de março de 1998, assinada pelo bispo de Miracema (TO), João José Burke, em que pedem solidariedade frente às ameaças de despejo.

Nota do governo estadual prometeu benefícios a posseiros, que acabaram à míngua (Reprodução)

Sob pressão, o governo estadual divulga "esclarecimentos" em 30 de março de 1998. "O Governo pretende titular as terras para os posseiros e proprietários e apoiar a instalação de uma cooperativa para organizar a área, respeitando os direitos de todos, dando-lhes a oportunidade de participarem de um moderno processo de produção agroindustrial, com elevados benefícios para as suas famílias, o Estado e o País", anuncia o secretário de comunicação, Sebastião Vieira. O comunicado sustenta ainda que "os posseiros estão sendo informados de tudo que está sendo feito", apesar da manifestação das famílias. 

"Com a desapropriação da área, o Governo assume o comando das ações, exatamente para dar garantia à famílias que, há decênios, moram na área e para ensejar uma correta parceria de posseiros, proprietários não especuladores e investidores", acrescenta o aviso oficial publicado nos jornais locais.

Em abril de 1998, 74 famílias entram com três ações na Justiça, com pedido de liminar, pedindo a suspensão do projeto até que seja solucionada a situação de cada posseiro. Nenhum dos processos avançou, mas as organizações próximas aos posseiros continuaram denunciando as contradições entre o discurso e a prática do governo estadual.

A seleção dos 47 contemplados iniciais para o novo projeto foi feita em 1999, pela Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins (Faet), com apoio da Companhia de Promoção Agrícola (Campo). A Campo
foi fundada em 1978 como fruto do acordo entre consórcios para a implantação do Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (Prodecer), em parceria com o Banco do Brasil e com cooperativas de produtores.

Sem cerimônias, representantes da Faet e da Campo se autobeneficiaram com o Projeto Agrícola Campos Lindos. A hoje senadora Kátia Abreu (DEM-TO), à época presidente da Faet e atualmente à frente da Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), ficou com um lote de 1,2 mil hectares e seu irmão, Luiz Alfredo Abreu, com outro de mesma dimensão. O presidente da Campo, Emiliano Botelho, foi agraciado, com um lote ainda maior: 1,7 mil hectares. Pessoas próximas ao então presidente do Itertins, Nelito Cavalcante, também foram atendidas com lotes. A reportagem entrou em contato com o Itertins para ouvir o órgão sobre o turbulento processo de "titulação" do projeto agrícola, mas não obteve resposta.

A lista dos beneficiados pelo projeto deflagrado por Siqueira Campos é reveladora. Inclui o ex-ministro da Agricultura do governo Itamar Franco, Dejandir Dalpasquale, que presidiu a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), e Tiago Turra, filho de outro ex-ministro da Agricultura (Francisco Turra, do governo Fernando Henrique Cardoso), que já deu declarações públicas de que não chegou a se apossar do terreno. Casildo Maldaner, ex-senador e ex-governador de Santa Catarina pelo PMDB, também foi brindado com um lote, mas não mantém o negócio. O brigadeiro Adyr da Silva, ex-presidente da Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer), e uma série de políticos da região – José Wellington Martins Belarmino, de Pedro Afonso (TO), e Jonas Demito, de Balsas (MA) – também foram contemplados neste início. Não foram esquecidos grandes produtores e personalidades públicas do Sul do país – como João Carlos Di Domenico e Vilibaldo Erich Schmid, de Campos Novos (SC) – e de Minas Gerais – João Benício Cardoso e Eurípedes Tobias, de Paracatu (MG).

Outros dois figurões foram atendidos: Assuero Doca Veronez, atual presidente da Comissão de Meio Ambiente da CNA e dirigente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Acre (Faec), e o empresário Carlos Alberto de Sá, de Brasília (DF), dono da Voetur, agência de turismo envolvida em diversas denúncias de irregularidades. Segundo fontes consultadas, Carlos Alberto comprou vários outros lotes do Projeto Agrícola.

Caju anão e babaçu?
Definida a relação dos escolhidos, o Itertins formalizou o repasse da terra por meio de Licenças para Ocupação e Exploração de Terras Públicas, mesmo sem levantamentos prévios de impactos sociais e ambientais, e estabeleceu o prazo de três anos para a efetivação da atividade agrícola.

 
Posseiros e entidades do campo fazem denúncias sobre o caso há mais de dez anos (Reprodução)

O requerimento para obtenção de Licença Prévia (LP) só foi protocolado pela Faet junto ao Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins) em maio de 2000. Ocorre que a entidade não apresentou o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) e, dois meses depois, entregou um "diagnóstico preliminar" que trata dos impactos previstos de forma bastante superficial. Para se ter uma idéia, documentos básicos como o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) da Faet e a guia de recolhimento para a licença não constavam da papelada entregue. O Naturatins, contudo, não registrou a ausência do EIA/Rima.

Apenas em outubro de 2000, o Naturatins torna público o recebimento de cinco vias da primeira versão do EIA/Rima enviado pela FAET e abre prazo de 45 dias para realização de audiências públicas sobre o empreendimento. De sopetão, no dia 13, o órgão ambiental estadual divulga um comunicado informando que a audiência tinha sido marcada para o dia 17, na vizinha Goiatins (TO), que fica a uma distância de 100 km de Campos Lindos (TO).

A primeira audiência seria apenas cômica, se não fosse trágica para o futuro da população local. Durante o evento (que reuniu 43 pessoas), uma das participantes chegou a perguntar se a região era apropriada para o cultivo do caju anão e também como era feita a colheita de babaçu. Trechos dessa audiência estão transcritos na monografia de especialização de Eloísa Arminda Duarte Batista, "A Monocultura da soja e a dimensão ambiental da função social da propriedade: projeto agrícola Campos Lindos (TO)", apresentada em 2006 na Universidade de Brasília (UnB).

Ainda antes da audiência, a Ministério Público Federal de Tocantins (MPF/TO) já havia recebido denúncias acerca de desmatamentos e queimadas ilegais na área do Projeto Agrícola Campos Lindos. Os procuradores federais requisitaram que o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) fizesse uma vistoria no local e elaborasse um relatório ambiental.

Novela sem fim
De 21 a 25 de setembro de 2000, equipe composta por dois engenheiros florestais, um fiscal do Ibama e um servidor do MPF/TO percorreu o empreendimento. Encontraram irregularidades quanto à Reserva Legal (35% da propriedade, no Cerrado) e grandes áreas de desmatamento sem autorização. Diante dos problemas, houve sugestões de elaboração de programa de manejo de microbacias hidrográficas, a recomposição de Reserva Legal e de Áreas Preservação Permanente (APPs) e a promoção de programas de educação ambiental. As irregularidades verificadas in loco fizeram o MPF/TO instaurar um inquérito civil público (ICP) para apurar os crimes ambientais, inclusive com indícios de participação de servidores públicos. A diretoria local do órgão chegou a ser afastada por causa das denúncias de corrupção e prevaricação.

Para completar o diagnóstico da situação e cumprir as atribuições de órgão ambiental, o MPF/TO solicitou que o Ibama analisasse imagens de satélite, comparando as áreas anteriormente cobertas por vegetação com os polígonos de desmatamento após a implantação do Projeto Agrícola Campos Lindos, que conta com incentivos fiscais generosos desde sua criação.

Caminhões carregados de soja partem da região para o Porto de Itaqui (MA) (Foto: Jane Cav
alcante)

Paralelamente, a análise do EIA/Rima pelo Naturatins foi concluída em fevereiro de 2001, com a apresentação de parecer que mostra impactos como a desestruturação superficial do solo em função do desflorestamento e o risco de erosões, principalmente nas áreas próximas aos córregos, além da alteração na qualidade das águas superficiais e subterrâneas por causa da utilização de fertilizantes e defensivos agrícolas. Os técnicos condicionam a concessão da licença mediante o cumprimento de 18 exigências.

Ocorre que, em junho de 2001, a Faet comunica ao Naturatins que estava transferindo o papel de requerente do licenciamento ambiental à Associação de Plantadores do Alto Tocantins (Planalto), que congrega parte dos contemplados por Siqueira Campos. Forma-se, então, uma comissão composta por Naturatins, Ibama, Itertins, MPF/TO, Faet e Associação Planalto para acompanhar o caso.

Mais de um ano depois da solicitação do MPF/TO e com apoio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Ibama finalmente apresenta os laudos técnicos, os mapas georreferenciados e os autos de infração em março de 2002. As imagens provam o imenso desmatamento irregular na área do projeto: mais de 19,6 mil hectares. Apenas oito proprietários não desmataram. Algumas propriedades não respeitaram sequer as APPs nas margens dos cursos d´água.

Em maio do mesmo ano, o Naturatins encaminha ofício ao presidente da Associação Planalto solicitando o seu comparecimento para o cumprimento das 18 exigências formuladas pelo órgão. A questão não avança. Em abril de 2003, o instituto estadual faz nova convocação para emissão da licença. Quase um ano depois, em março de 2004, reunião entre produtores, Naturatins, Ibama, Faet e a empresa que elaborou o EIA/Rima decidiu pela formação de uma outra comissão (formada por três membros eleitos na ocasião) para coordenar as pendências e dar andamento à negociação.

Naturatins e Ibama concluem novo parecer conjunto em abril de 2004. Novas exigências são estabelecidas para a regularização não apenas da Licença Prévia (LP), mas também da Licença de Instalação (LI). Em fevereiro de 2005, a Associação Planalto solicita prorrogação do prazo para entrega de um novo EIA/Rima e propõe que as multas do Ibama, aplicadas em 2002, sejam "anistiadas" em troca de ações de regularização ambiental.

Preço "muito bom"
Poucos foram os avanços até que, em meados de 2007, uma nova audiência pública é realizada para tratar da regularização ambiental do projeto. Desta vez, houve ampla participação dos segmentos envolvidos. Os participantes ficaram sabendo que, das 34 exigências técnicas do Ibama/Naturatins, apenas três tinham sido parcialmente cumpridas. Decidiu-se pela elaboração de mais um parecer do Naturatins e um prazo de 45 dias foi fixado a realização de nova audiência. O evento, porém, foi novamente deslocado para Goiatins (TO), o que reduziu a participação e o nível de cobrança social.

A Associação Planalto fez complementos ao EIA/Rima no final de 2008 e uma nova inspeção do projeto agrícola pelo Naturatins só veio a ser realizada em maio de 2009. Na prática, a área continua irregular do ponto de vista ambiental, com evidentes sobreposições de áreas de Reserva Legal com APPs. O Ibama foi consultado e não se posicionou sobre a questão do município, que foi citado como um dos pontos críticos no relatório da soja de 2008 do Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis, da Repórter Brasil.

Imagem da inspeção de 2000: "correntão" usado para "limpar" área do projeto (Foto: MPF/TO)

"Para poder fazer o projeto funcionar, houve um atropelamento das fases do projeto. Não foi feito aquele trabalho de legalização ambiental como a lei determinava. E aí o governo, na época, fez um loteamento e cobrou prazo das pessoas que receberam os lotes para que investissem na área", conta o prefeito de Campos Lindos (TO), Jorlênio Menezes Santos (PMDB). "Foi isso que atropelou um pouco os processos. Resultado: é um projeto que nasceu há oito anos e que tem desenvolvido bastante o município e o estado, só que até hoje eles não conseguiram resolver bem essa questão ambiental".

Segundo o prefeito Jorlênio, o projeto "trouxe problemas ambientais como o lançamento de agrotóxicos dentro dos rios e córregos, mas já está sendo revisto". "Eles estão procurando regularizar. Foi destinada uma área para reserva em condomínio e precisava de uma medida social para compensar. Não foi realizada ainda porque faltou organização por parte dos produtores e também por parte do poder público", admite.

Dona de área no empreendimento, Kátia Abreu não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem. Não esclareceu, por exemplo, por que declarou nas eleições ao Senado de 2006 que possuía dois terrenos em Campos Lindos com valores bastante inferiores aos de mercado. Só o lote de 1,2 mil hectares, estimado por ela em R$ 10 mil à Justiça Eleitoral, custaria alguns milhões, segundo imobiliária consultada pela reportagem. A senadora também não se manifestou sobre a contribuição de R$ 70 mil da Bunge (R$ 50 mil da Bunge Fertilizantes e R$ 20 mil da Bunge Alimentos), que mantém negócios em Campos Lindos, recebida no mesmo pleito.

Em entrevista exclusiva à Repórter Brasil, o ex-ministro Dejandir Dalpasquale confirma que possui de fato terras no Projeto Agrícola Campos Lindos. O ex-ministro e ex-presidente da OCB conta que foi convidado pelo governador Siqueira Campos "para produzir soja numa área que não tinha produção alguma" porque "era do ramo". Nas palavras dele, a situação do projeto, a despeito das evidências em contrário, está plenamente regular. "O governo estadual desapropriou e documentou. Os títulos foram todos registrados".

Apesar do conflito com os posseiros, ele sustenta que a questão da averbação da Reserva Legal – ele afirma manter áreas para este fim dentro do lote e também na área em condomí
nio – está em vias de conclusão. O preço pago pelas terras, confessa Dejandir, foi "muito bom". 

Pedido de intervenção
"O projeto foi criado de forma arbitrária", avalia o procurador Álvaro Manzano, do Ministério Público Federal do Tocantins (MPF/TO), que condena os valores "irrisórios" e o trâmite "irregular" de transferência das terras cobertas atualmente por soja. Ele e outros três procuradores da República entraram com um pedido de intervenção federal no Tocantins, em outubro de 2003, com base na conduta dos Poderes Judiciário e Executivo do Estado, relativa ao Projeto Agrícola Campos Lindos, que se tornou alvo de uma ferrenha disputa entre os atuais ocupantes e os 27 beneficiados pelo Idago na década de 1980 que, assim como os posseiros, também processou o governo estadual.

Campos Lindos tem a maior proporção de pobres do país, segundo o IBGE (Foto: Jane Cavalcante)

Os procuradores pedem que o procurador-geral represente ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela intervenção federal diante das sucessivas decisões do Judiciário favoráveis ao governo estadual. Na peça, eles ressaltam que "(…) causa surpresa o fato de que, no processo de desapropriação, os pleitos do Estado foram todos imediatamente deferidos por diversos juízes sucessivamente designados pelo Tribunal de Justiça, o mesmo não ocorrendo com relação aos formulados pelos expropriados que continuam sendo procrastinados".

Como parte da denúncia da posição "tendenciosa" dos juízes, o MPF/TO cita diversos atos em prol do Executivo estadual. Desde o início do processo de desapropriação, dez juízes pela Comarca de Goiatins (TO) que proferiram despacho impulsionando ações contestatórias foram removidos ou "promovidos" para outras comarcas, pelo Tribunal de Justiça.

Para os procuradores federais, "o Estado do Tocantins, notadamente através de seu Poder Judiciário, violou, desrespeitou, aniquilou, inúmeros direitos fundamentais, cabendo destacar os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e o direito à propriedade". "Quando os instrumentos ordinários de atuação de um Estado não cumprem, reiteradamente, sua função constitucional, ofendendo direitos fundamentais de seus cidadãos, impõe-se ao Estado Central agir, substituindo aquele e fazendo restaurar o ordenamento jurídico ao qual se sujeita toda a sociedade", emendam.

Depois de muitas idas e vindas, o processo foi julgado em 2006 e o único dos 27 ex-proprietários que teve o seu direito reconhecido foi Iakov Kalugin. O nome de Iakov consta da "lista suja" do trabalho escravo. Fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) encontraram 20 pessoas em condições análogas à escravidão no Lote 64 da Fazenda Santa Catarina (mais conhecido como Fazenda São Simeão), em novembro de 2003.

De acordo com o procurador federal Álvaro Manzano, novos trabalhos técnicos serão realizados para a garantia dos direitos dos posseiros que ainda resistem no local. Ele critica o "empurra-empurra" entre os produtores e os órgãos ambientais e afirma que a análise dos impactos da soja sobre os povos indígenas da região, como os Krahô, exige estudo mais detalhado.

Em notas, a assessoria do Naturatins afirma que a Associação Planalto já protocolou as complementações solicitadas ao último EIA/Rima, juntamente com os Planos Básicos Ambientais (PBAs), documento que visa nortear a implementação de medidas mitigadoras. À essa altura, o órgão promete ainda definir "encaminhamentos necessários para a regulamentação ambiental da atividade". O comentário resignado do procurador Álvaro Manzano sobre a disparidade da riqueza da soja com a pobreza da população de Campos Lindos (TO) resume bem a ópera: "Essa é a lógica de desenvolvimento do país".

*Colaborou Jane Cavalcante, de Araguaína (TO)

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