O mercado fica cada vez mais exigente

 02/05/2010

Muitos desafios ainda a enfrentar no desrespeito ao trabalho, principalmente ao trabalho infantil, mas o cenário é de mais oportunidades e qualificação

Setenta anos depois da criação do salário mínimo, é mais fácil ser trabalhador no Brasil?

Existem mais oportunidades, mas há uma quantidade maior de pessoas necessitando de trabalho. Temos um grande número de trabalhadores que não consegue espaço, quase sempre, pela falta de qualificação. O mercado fica cada vez mais exigente, e a educação profissional ainda está deixando a desejar, embora tenhamos avançado muito. Existe, por outro lado, uma facilidade de direitos, mas temos dificuldade na efetivação destes, porque muitos trabalhadores aceitam condições de trabalho inadequadas, prejudiciais à saúde ou, então, sem observância destes direitos, com relações trabalhistas precárias, por questões de sobrevivência. Temos uma grande quantidade de trabalhadores em atividades informais, enfrentando o problema da proteção social, da seguridade. Ainda é um grande desafio.

Vemos um aumento de empregos temporários e o descumprimento das leis trabalhistas. Essa situação prejudica o cidadão?

A insegurança nas relações de trabalho são prejudiciais. No contexto em que as pessoas estão com necessidade de solução urgente de seu problema, de sustento da família, elas se submetem a essas relações de trabalho precárias, mas não asseguram a dignidade. Uma relação de trabalho segura e estável deve ser construída em um vínculo reconhecido.

Quais os principais problemas do trabalhador cearense?

As relações de trabalho precarizadas se manifestam seja no simples empregado assumido nessa condição, sem carteira assinada, seja naquelas formas de trabalho em que as relações de emprego venham disfarçadas, por meio de uma falsa cooperativa em que os trabalhadores são chamados a assinar um termo de adesão como se fossem cooperados, para que não se sintam empregados e não reclamem seus direitos trabalhistas. Outro aspecto muito prejudicial e presente no mundo do trabalho é não considerar o que de fato ocorre na relação do trabalhador com a própria empresa. Existem muitos trabalhadores que prestam hora extra, mas não podem registrar porque a empresa não paga, ou paga a menor, ou paga "por fora", ou seja, sem registrar todos dados para fins legais, inclusive para fins de Os trabalhadores estão normalmente fragilizados com a situação, com medo de perder o emprego e acabam por se submeter a exploração. Além disso, relações perigosas no que ser refere à saúde e aos índices de acidente de trabalho são verificados em vários setores da economia. A construção civil tem fama de ser líder. Ainda temos registrados o trabalho análogo de escravos, que é bem maior do que as estatísticas apontam e muito mais do que as fiscalizações encontram. Outro problema sério no País é o trabalho infantil; 4,5 milhões de adolescentes estão nesta situação de trabalho, boa parte destas nas chamadas piores formas de trabalho infantil, seja o trabalho infantil doméstico, seja o trabalho nas atividades ilícitas, na exploração sexual, na agricultura familiar.

Você trabalha com uma questão cultural que é a naturalização do trabalho infantil. Como estão combatendo esse problema?

Estamos desenvolvendo uma ação muito intensa neste campo junto às escolas públicas e já construindo uma agenda com as escolas particulares. Estamos levando para a sala de aula o debate em torno da efetivação do direito da criança e do adolescente, em especial promovendo a erradicação do trabalho infantil e a profissionalização do adolescente. Em todo o Estado do Ceará estamos em 94 municípios desenvolvendo esta ação, são cerca de duas mil escolas e cinco mil educadores que já estão participando dessas ações com uma política sistemática de abordagem destes temas em salas de aula. O objetivo é romper esta barreira cultural de efetivação dos direitos da criança e do adolescente que é exatamente o fato de que 50% dos adultos trabalharam quando criança, e isso faz com que vejam com normalidade o trabalho infantil. Mas todo um esforço que está sendo feito, seja na implementação de políticas públicas para atendimento à criança e ao adolescente no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, seja nas políticas de conscientização da sociedade.

E o que estão fazendo com os pais que tiram as crianças da escola em época da colheita?

Esse debate da escola não fica resumido à sala de aula, pois perpassa as paredes e vai para a comunidade escolar. Em um segundo momento, depois de debatido o tema com os alunos, a escola está chamando os pais para também promover o debate. Hoje no País, estes demandam muito mais uma política pública e uma conscientização da sociedade do que uma fiscalização como nas relações de trabalho das empresas. Esse tem sido o enfoque. As políticas públicas focadas na família, quando se trata de trabalho de crianças de 5 a 13 anos, quando o trabalho infantil é proibido totalmente, e uma política pública voltada no adolescente e na formação profissional, quando se trata de trabalho de adolescente de 14 a 17 anos.

Se Fortaleza é uma cidade informal, esta é uma ação que tenta lutar contra a maré…

O trabalho infantil é visível na cidade, na ruas, nos semáforos, nas praias, nos lixões, nas coletas de material reciclado. Ainda temos dificuldades na educação, que embora tenha avançado em termos quantitativos ainda tem muitas dificuldades em termos de qualidade. Temos um baixo rendimento escolar, médio em Fortaleza, então há este desafio: melhorar a qualidade do ensino público e também a política pública de atendimento às famílias em situação de vulnerabilidade social. Há muitas crianças em situação de rua e um problema de aumento da violência registrado em várias cenas que preocupam o cidadão ao sair de casa, decorrente exatamente desta falta de política. Muitas vezes, a sociedade reclama uma solução através da polícia, mas na verdade a solução tem que ser através da política pública de atendimento. Se a gente não cuida dessas crianças elas serão exatamente o reflexo do problema que teremos no futuro. Crianças em situação de vulnerabilidade são vítimas fáceis do mundo do crime.

O trabalho doméstico é outra questão cultural muito forte a ser combatida, pois é muito presente a figura da "madrinha" que traz para a Capital a menina do interior para criar. Como combater esta relação que é aceita com naturalidade?

O trabalho infantil domést
ico foi incluido em 2008 nas piores formas de trabalho infantil do Brasil. Agora o trabalho só é permitido aos maiores de 18 anos, desde quando o Brasil assinou a convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para eliminar as piores formas de trabalho infantil e incluiu o doméstico. A ideia da madrinha, de que está ajudando para a vida educacional e tudo mais… tem que romper esta cultura. Porque de fato o trabalho doméstico para a criança e o adolescente, na maioria das vezes, se dá em condições prejudiciais. O primeiro prejuízo é o da convivência familiar, pois a criança sai de sua família e vai viver sob os olhares de outra e que, muitas vezes, não vai ter o mesmo cuidado que receberia em casa. Perde em carinho, amor, a identidade familiar e até na educação porque o rendimento escolar é menor. O próprio tratamento é afetado, porque é considerada uma pessoa da família, mas na verdade isso é só para mascarar uma relação de trabalho. O que se tem buscado é esclarecer a sociedade para que não explore e nem permita a exploração do trabalho infantil doméstico. Você vai encontrar, inclusive entre pessoas que promovem cidadania fora de casa, no trabalho, na política, na igreja, nos movimentos sindicais, em tantos outros espaços fora de casa, e esquecem de promover o direito dentro de casa. Esquecem de promover o direito do empregado doméstico, deixando de assinar a carteira, de recolher a contribuição da previdência e aceitando, por exemplo, a exploração do trabalho infantil doméstico sob a alegação de que está ajudando aquela criança ou adolescente. Na verdade, a gente busca romper este aspecto cultural, que é ainda muito forte, e que no caso do Ceará são 25 mil crianças e adolescentes nesta situação de acordo com dados do IBGE e coloca o Ceará no quarto lugar do País.

Essas campanhas se restringem só às ações da Procuradoria? Não pensam em estender aos meios de comunicação?

Pretendemos chegar a esses espaços, mas creio que na escola já temos chegado. Neste trabalho que estamos fazendo, tanto em Fortaleza quanto no Interior, atingimos cinco mil educadores. Estamos trabalhando também com os agentes comunitários de saúde que estão nos lares, no dia a dia convivendo com este problema. Estamos trabalhando com estes grupos porque eles são os cuidadores das crianças e dos adolescentes. Não estamos em uma campanha que comece e acabe em um dia, mas uma campanha permanente, que iniciamos em 2008 com 52 municípios e estamos agora em 94 municípios e em breve ao restante.

Entre 2006 e 2008, o número de acidentes de trabalho no Ceará saltou 68%, com 53 óbitos em 2008, frente aos 2.757 no País. Aumentou o acidente de trabalho ou a notificação ?

As duas coisas aumentaram. Não dá para saber se o aumento da estatística é exclusivamente de aumento dos acidentes ou da notificação, em função da visibilidade que o problema passa a ter. Os problemas decorrentes disso é o peso por falta de prevenção é muito grande, veja a quantidade de trabalhadores que ficam incapacitados; o peso para a previdência social é muito maior. Porque tem aumentado? Por causa da precarização das relações de trabalho. Uma coisa chamada de terceirização, que se construiu no mundo do capitalismo e cada vez mais avança, e das formas mais precarizantes possível, ela traz essa dificuldade de controle na prevenção de acidentes, porque você distribui as responsabilidades para os terceiros. E quando você terceiriza, quarteiriza e vai passando responsabilidades para outros nesta cadeia, e vai diminuindo o grau de controle.

A fiscalização de combate ao trabalho escravo existe desde 1995, mas mesmo assim a situação persiste. O programa tem surtido efeito?

O efeito mais importante é o reconhecimento do problema. Porque desde a abolição dos escravos a gente passou um bom tempo achando que o trabalho escravo era um problema da história. Estava no passado. Havia toda uma relação trabalho precarizante durante este período, em condições indignas, em que as pessoas não reconheciam isso como um problema, então entrava no campo da normalidade. No momento em que o País criou o grupo especializado em regaste de trabalhadores em situação análoga de escravo e começou a dar visibilidade a esse problema, hoje as pessoas têm a sensação de que aumentou o trabalho escravo, mas na verdade o que aumentou foi a visibilidade e o enfrentamento do problema. Aqui no Ceará, a gente tem poucos registros. É um número pequeno em relação aos números registrados no Brasil, mas porque o setor produtivo do Ceará é proporcionalmente menor e isso ainda se deve à questão geográfica. O trabalho degradante se dá de uma forma mais frequente nos locais distantes de sua residência e que tem vastas extensões territoriais, como no Centro-oeste, onde tem grandes produções agrícolas ou da pecuária.

Esta baixa notificação local, então, é porque os cearenses saem para outros estados?

Somos exportadores de mão de obra escrava. Os trabalhadores encontrados em situação análoga a de escravos na estatística nacional, boa parte são do Nordeste. E temos uma grande quantidade de trabalhadores que migram com regularidade, se você pegar Itatira, por exemplo, uma grande quantidade de trabalhadores sai para outros estados no corte da cana do Sudeste. Os problema sociais decorrentes disso são grandes, como a falta de estrutura familiar porque deixam aqui as viúvas de maridos vivos. Ou seja, o problema em que o homem passa de oito meses fora de casa. Depois vem os problemas sociais decorrentes do seu retorno. Se garantir a educação dos filhos já é difícil com o pai e a mãe, imagina quando for só a mãe.

Pode-se dizer que o mundo do trabalho está em busca de soluções mais rápidas?

Tem-se buscado soluções mais rápidas, porque em um determinado momento as discussões se davam muito no âmbito individual e agora estamos construindo cada vez mais soluções de conflitos coletivos. Isso evita uma série de problemas, por que as vezes você tem um processo aqui na procuradoria que atingem mil a dois mil trabalhadores e isso evita de mil a dez mil ações. Sempre que possível resolver o problema através da mediação. O processo tem que ser um meio de solução de conflitos e não o fim em si mesmo.

Fique por dentro
Quem é Antônio

Cearense de Morada Nova, aos sete anos Antonio de Oliveira Lima, 41, mudou-se com a família para Redenção, onde trabalhou como agricultor até terminar o Ensino Médio e vir cursar Direito na Universidade Federal do Ceará, ou seja, ele mesmo vítima do trabalho infantil. Antes de ser aprovado em concurso para o Ministério do Público do Trabalho, em 2001, atuou como analista Judiciário no Tribunal de Justiça do Ceará e procurador do INSS. Em janeiro de 2004, assu
miu a chefia da PRT em Alagoas, função que renunciou, em maio de 2005, para voltar ao Ceará. Titular no Ceará da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente, ele tem se destacado nesta área de atuação e foi agraciado, em dezembro de 2009, em Brasília, com o Prêmio de Direitos Humanos da Presidência da República, como reconhecimento à sua atuação.

ADRIANA SANTIAGO
Editora

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