Denúncia

Esquema de tráfico e escravidão de estrangeiros expõe EUA

Seis pessoas ligadas à Global Horizons, com sede em Los Angeles, respondem processo por aliciar e submeter cerca de 400 tailandeses em regime de trabalho forçado, por meio de programa do governo norte-americano
Por Bárbara Vidal e Maurício Hashizume
 11/10/2010

Acusadas de transformar o "sonho americano" de centenas de tailandeses em pesadelo, seis pessoas ligadas à empresa Global Horizons respondem processo, desde o início de setembro, no que vem sendo chamado pelas autoridades norte-americanas como o "maior caso de tráfico de pessoas e trabalho escravo contemporâneo dos Estados Unidos".

O presidente da empresa, Mordechai Orian, se entregou à polícia em Honolulu, no Havaí. Ele chegou a ser preso, mas acabou sendo liberado após o pagamento da fiança – que foi reduzida de US$ 1 milhão para US$ 250 mil. Empresário de nacionalidade israelense, Mordechai permanece, porém, sob vigilância. Com receio de que o principal acusado pelo esquema fuja da ilha, procuradores federais pedem que ele seja novamente encarcerado. Caso seja condenado no julgamento que já foi marcado para fevereiro do ano que vem, o executivo poderá permanecer mais de 70 anos na cadeia.

Terceirizada encarregada da contratação de mão de obra para empreendimentos agrícolas, a Global Horizons deve prestar contas à Justiça pelas denúncias de aliciamento, servidão por dívida e trabalho forçado de cerca de 400 trabalhadores que deixaram a Tailândia, entre 2004 e 2005, para trabalhar em fazendas situadas em diversos estados dos EUA. E mais: todos as vítimas entraram no país mais rico do mundo por meio de um programa federal para trabalhadores "visitantes", conhecido como H-2A.

Detalhes do esquema de escravidão vieram à tona com a publicação de reportagem pela revista Mother Jones (maio/junho de 2010). Sob o título "Atado pela América", o jornalista John Bowe – autor do livro Nobodies, que trata da mesma temática – descreve o contexto no qual se insere o H-2A. De acordo com ele, "o programa acomoda preocupações de todas as partes interessadas". Vale lembrar que, todos os anos, o governo norte-americano divulga uma relação que classifica diversos países do mundo de acordo com os problemas relacionados ao tráfico de pessoas. Em 2010 os EUA se auto-incluíram, pela primeira vez, na lista. É claro que no "Grupo A" de nações que mantém ações exemplares no combate ao problema.

"Os liberais favoráveis aos imigrantes podem se sentir bem trazendo trabalhadores estrangeiros para a ´luz da legalidade´. Empregadores do agronegócio cansados de regulações de fiscalização contra irregularidades trabalhistas se veem livres de lidar com o recrutamento, a acomodação e a supervisão de trabalhadores rurais. Ativistas antiimigração encontram conforto no fato de que, na teoria, esses temporários serão mandados para casa depois que o trabalho for encerrado", explica John Bowe. "Isso mostra por que trazer mais trabalhadores estrangeiros temporários é uma coisa aceita por quase todos no debate sobre imigração".

Na reportagem, o jornalista descreve a história de um tailandês de 35 anos que recebeu uma oferta para trabalhar por três anos nos EUA com um salário entre US$ 7 e US$ 10 por hora. A perspectiva de ganhos era de até US$ 50 mil por ano, 25 vezes mais que o valor médio acumulado por um empregado comum na Tailândia. Tudo isso de forma legal, como um trabalhador temporário "convidado", protegido pelas leis vigentes.

O esquema criminoso começava ainda na Tailândia. Para conseguir a vaga, os interessados tiveram de pagar taxas de recrutamento de US$ 11 mil até US$ 21 mil (R$ 19 mil a mais de R$ 35 mil) a "gatos" que atuavam como intermediários da Global Horizons na Ásia. Para conseguir o dinheiro, contraírram dívidas com agiotas, recorreram a empréstimos bancários e hipotecas de imóveis e terrenos, além do uso de recursos e bens de parentes.

De acordo com os relatos de vítimas, eles eram obrigados inclusive a assinar papéis em branco antes de partir da Tailândia para a América do Norte. Levados para lugares isolados do país – desde granjas em Utah até fazendas de fruticultura no Havaí, passando por propriedades nos estados de Washington, Pensilvânia e Colorado -, alguns tiveram os passaportes confiscados. Agentes da Global Horizons permaneciam nos locais onde estavam trabalhando para garantirem que os estrangeiros não fugissem.

A jornada prometida era de 8 horas diárias, mas o trabalho era tão instável que, por vezes, não chegava a 4 horas. Em certos dias, eles sequer iniciavam o turno, o que resultava em vencimentos muito aquém do combinado. Na prática, os "convidados" trabalhavam tantas horas quanto a empresa quisesse, isto é, permaneciam à mercê dos empregadores.

Houve casos de agressão física, ameaças de "deportação" em caso de "mau comportamento" (alguns trabalhadores foram mandados de volta a seus países de origem no meio do programa). Na teoria, eles estavam livres para deixar seus trabalhos a qualquer momento. Mas, o descumprimento das ordens dos empregadores e o retorno implicavam em riscos diretos e indiretos a toda família. Ou seja, na prática, eram escravos contemporâneos.

De acordo com Susan French, procuradora da Divisão dos Direitos Civis do Departamento de Justiça dos EUA, todos os anos muitas companhias são processadas por submeter trabalhadores em condições análogas à escravidão. São, segundo ela, apenas pontas de icebergs. Para monitorar os locais de emprego de todos os 137 milhões de pessoas em atividade nos EUA, a Divisão de Salários e Horários do mesmo Departamento tem apenas 953 funcionários. Desde 1973, o número caiu 14%, enquanto a quantidade de trabalhadores aumentou 50% durante o mesmo período.

Uma das fazendas que matinha trabalhadores estrangeiros da Global Horizons era a Maui Pineapple Co., que fazia parte da Maui Land & Pineapple Co., cuja maioria pertence a Steve Case, co-fundador da AOL, outro acionista é Pierre Omidyar, fundador da eBay, "benfeitor generoso de organizações anti-escravistas", de acordo com o repórter, John Bowe.

Presidente e fundador da Global Horizons, Mordechai "Motty" Orian chegou a conceder entrevista a John Bowe na sede da empresa em Los Angeles. O empresário relatou que fazendeiros pagavam entre 45% a 80% a mais por cada trabalhador para contratar a empresa. Além de "economizar" com gastos de transporte, alojamento, alimentação, salários e assistência, os empreg
adores optavam pelos serviços da terceirizada principalmente pelo controle. Mordechai chegou inclusive a citar ao jornalista que um produtor da Carolina do Norte reclamava que "se trouxesse 200 mexicanos do México, sabia que 100 deles deixariam o emprego". Já os tailandeses, isolados por dívidas, pela distância e pela ausência de ligações culturais e comunitárias, dificilmente tinham como deixar as fazendas.

Quando perguntado sobre as dívidas dos trabalhadores estrangeiros, o dono da Global Horizons desfiou uma série de respostas. Uma foi a de que eles mentiam sobre o montante de dinheiro pago. A outra foi zombar da ideia de que pudesse existir alguém suficientemente estúpido para assinar papéis em branco. E a terceira foi culpar o sistema, pois eram contratados por "gatos" de "gatos" de "gatos". Cada intermediário, justificou, faz as suas promessas para atrair gente e tirar o seu quinhão no negócio. E completou: "Governos do Terceiro Mundo estão sempre sujeitos à corrupção".

Em 2006, após constatar que a Global Horizons "sabidamente forneceu falsas informações" acerca do programa de emprego temporário para estrangeiros "convidados" na área de agricultura, o Departmento do Trabalho proibiu a empresa de trazer novos trabalhadores do exterior.

Um relatório de 2007 do Southern Poverty Law Center aponta que esses "convidados" têm pouquíssimos direitos. As taxas de recrutamento – algumas delas inclusive legalizadas – oferecem um poderoso incentivo para que empresas se animem a atuar na área de importação de mão de obra estrangeira quanto e por quanto tempo for possível, mesmo diante de pouco serviço. Esses casos envolvem trabalhadores que já chegam aos Estados Unidos com dívidas monumentais e levam famílias à bancarrota. Só no ano passado, 60 mil estrangeiros entraram nos EUA como "convidados".

Chanchanit Martorell, diretora-executiva do Centro de Desenvolvimento da Comunidade Tailandesa, afirma que mais de 1,1 mil vistos de trabalho agrícola estavam sendo emitidos pela Global Horizons aos tailandeses. O centro oferece assistência às vítimas de tráfico de pessoas que conseguiram escapar dos empregadores e buscam permanecer nos EUA.

"Já faz muito tempo [que esse tipo de problema vem ocorrendo], mas nós temos persistido e lutado e finalmente chagado a alcançar uma vitória muito importante", afirmou Chanchanit ao Los Angeles Times. Além do presidente da Global Horizons, o diretor de relações internacionais, o supervisor regional do Havaí, o supervisor de campo local e mais dois aliciadores foram acusados no processo judicial que tramita no Havaí.

Também ao LA Times, o agente especial do Federal Bureau of Investigation (FBI) – a Polícia Federal dos Estados Unidos -, Tom Simon, foi preciso na descrição: "Antigamente costumavam manter escravos com chicotes e correntes. Hoje, eles são mantidos por ameaças econômicas e intimidação".

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