São Paulo

Zara não comparece à Assembleia Legislativa; CPI é defendida

Enrique Huerta Gonzalez, presidente da Zara Brasil, não atendeu ao convite para tratar, em comissão do Legislativo estadual, dos flagrantes de escravidão na cadeia produtiva da marca. CPI do trabalho escravo recebe mais apoios
Por Bianca Pyl e Maurício Hashizume
 01/09/2011

São Paulo (SP) – Convidado a prestar esclarecimentos sobre a exploração de trabalho escravo na fabricação de peças de roupas da Zara, o presidente da marca no Brasil, Enrique Huerta Gonzalez, não compareceu à reunião da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Cidadania, da Participação e das Questões Sociais da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), no início da tarde desta quarta-feira (31).

Os sócios administradores da empresa AHA – que atuava na intermediação entre a Zara e as oficinas de costura subcontratadas onde imigrantes sul-americanos foram encontrados em condições análogas à escravidão – também não estiveram presentes para tratar do assunto no Legislativo estadual. 

Identificações dos convidados e cadeiras vazias na reunião da comissão da Alesp (Foto: MH)

Em comunicado, a Zara Brasil declarou que, em função do "curto período de tempo entre o recebimento do convite e a data da reunião", o presidente da filial brasileira da companhia espanhola, que faz parte do grupo Inditex, "encontra-se impossibilitado de comparecer perante a comissão". À Comissão, a Zara informou complementarmente que o executivo estava cumprindo agenda fora do país e sugeriu que o compromisso com os membros da Alesp fosse transferido para outra data posterior a partir de 23 de setembro.

Os advogados da AHA também protocolaram documento em que atribuem a ausência dos sócios ao "tempo exíguo" e pediram que sejam notificados com menos 15 dias de antecedência. Apresentados pelo deputado Carlos Bezerra Jr. (PSDB), os requerimentos de convite aos responsáveis legais pelas empresas envolvidas foram aprovados na segunda-feira (29).

As "cadeiras vazias", segundo Carlos Bezerra Jr., só comprovam a gravidade das denúncias. "Se não respeitam nem os direitos humanos dos trabalhadores, essas empresas também não vão respeitar essa Casa", comentou. Para que as ausências não se repitam, ele defende a instalação imediata de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Trabalho Escravo para apurar não apenas o caso envolvendo a Zara, que faz parte de um dos maiores grupos têxteis do mundo, mas também o conjunto das diversas questões relacionadas à ocorrência de escravidão no Estado mais rico do país, em pleno século XXI.

Deputado Carlos Bezerra Jr. propõe uma CPI para apurar questões relacionadas à escravidão (MH)

Uma CPI tem a prerrogativa de fazer convocações, e não apenas convites, e conta ainda com suporte do aparato policial. "Eles não estão aqui porque não é uma CPI", sustentou Carlos Bezerra Jr., que também é vice-presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. A proposta da CPI, de autoria do mesmo, já recebeu o apoio necessário de assinaturas dos membros da Alesp e foi protocolada na semana passada.

O deputado estadual, que é médico e foi vereador da capital até 2010, frisou a necessidade de que os envolvidos façam um esclarecimento público sobre a manutenção de pessoas (incluindo uma adolescente de 14 anos) em condições análogas à escravidão, impedidos de ir e vir, em condições degradantes, sob jornadas exaustivas etc.

"É só a ponta do iceberg. Esquemas como esses podem estar associados a outros crimes como o tráfico internacional de pessoas, à exploração sexual, inclusive de adolescentes e de crianças, além da questão do trabalho infantil", adicionou Carlos Bezerra Jr., que destacou ainda que a Assembleia Legislativa está diante de uma oportunidade histórica de contribuir no combate ao "gravíssimo" crime contra a violação de direitos humanos. "Não se pode permitir que isso continue acontecendo no nariz da sociedade paulistana".

Durante a reunião marcada pela ausência dos convidados das empresas, o deputado Ênio Tatto (PT), que é líder do partido que representa na Casa, reiterou o apoio da bancada petista à CPI. Sem isso, advertiu, os envolvidos tendem a "não comparecer e fugir do debate". Para o líder petista, o regimento – que estabelece como limite a instalação de cinco CPIs concomitantes – pode ser alterado para que a CPI do Trabalho Escravo, por conta de seu caráter extraordinário, passe a funcionar na Alesp.

De acordo com Ênio Tatto, todos os líderes se manifestaram favoravelmente à alteração por meio de um projeto de resolução, diante da urgência e da gravidade do tema. Nas palavras do petista, porém, o líder do governo, Samuel Moreira (PSDB), teria apontado, de "forma estranha", a existência de problemas quanto aos ajustes no regimento, inclusive trazendo a tona a existência de uma "ordem cronológica" para a criação de CPIs, pois vários outros pedidos foram firmados além das cinco que já estão instaladas: do ensino superior privado e da TV por assinatura, que estão em funcionamento; e da remuneração dos médicos pelos planos de saúde, da contratação de serviços odontológicos por planos de saúde e do consumo de álcool, que estão sub judice.

Integrantes da Comissão da Alesp, imprensa e público, em geral, acompanharam a reunião (MH)

Em entrevista à Repórter Brasil, o líder do governo disse que não há objeção nenhuma quanto ao mérito da CPI. "Fui um dos primeiros a assinar o pedido", reiterou. Samuel Moreira (PSDB) ressaltou, contudo, que manifestou na reunião do colégio de líderes uma "preocupação" quanto à mudança no regimento e aos possíveis critérios utilizados para justificar a abertura da CPI em questão. Segundo ele, existem outras propostas anteriormente protocoladas que também reivindicam urgência e relevância como a CPI da Eletropaulo.

O representante central do governador Geraldo Alckmin (PSDB) na Alesp alegou que não foi coloca
da nenhuma proposta concreta de mudança de regimento para que a bancada do governo pudesse avaliar de forma objetiva a sugerida brecha em casos de "excepcionalidade", sem deixar margens para o enfraquecimento das regras e até para a contestação jurídica da própria CPI.

A Assembleia, frisou Samuel Moreira, tem autonomia para decidir pela mudança no regimento. Mas a posição do governo, sinalizou, dependerá da proposição de mudança colocada em pauta. A preocupação referente aos riscos de uma modificação açodada das regras de funcionamento da Casa, segundo ele, também é compartilhada com outras lideranças partidárias.

Outra saída aventada pelo líder do governo seria um acordo de consenso entre todos os partidos, sem necessidade de mudança no regimento. Bastaria que os pedidos protocolados de CPI que estão na "fila" fossem temporariamente retirados em bloco por seus autores para que a CPI do Trabalho Escravo passasse a ser a primeira além das que estão instaladas. Nessa condição de "sexta colocada", a comissão poderia ser aberta, como já ocorreu com a CPI da Pedofilia. Após a criação, todos os outros pedidos poderiam ser protocolados novamente na ordem cronológica em que estavam.

Leonardo Sakamoto, da Repórter Brasil (à esq), atendeu convite de Adriano Diogo (à dir) (MH)

"Regimento nenhum é maior que a vida humana", reivindicou o autor do pedido da CPI do Trabalho Escravo, Carlos Bezerra Jr. Questionada pela Repórter Brasil sobre as situações flagradas nas operações coordenadas pela Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP), a Inditex, que controla a Zara, definiu os casos como "terceirizações não autorizadas", bem como sublinhou as aplicações de um código de conduta e de um programa de auditorias a fornecedores baseados em normas internacionais e na legislação brasileira, com participação de empresas especializadas. Entretanto, a companhia preferiu não oferecer explicações adicionais sobre o fato de que nenhuma audiência de monitoramento foi realizada em 2010. Apenas nove análises iniciais em toda a cadeia produtiva da Zara no Brasil (que inclui cerca de 50 empresas e cerca de sete mil trabalhadores) foram de fato promovidas.

Comissão, Plano e Fundo
Como os representantes das empresas não atenderam ao convite, Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil, foi chamado a fazer uma apresentação a respeito do trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Ele realçou que, de 1995 até hoje, mais de 41 mil trabalhadores (centenas deles em São Paulo) já foram libertados de condições análogas de escravo no país.

Leonardo lembrou que a política "de Estado" de enfrentamento ao trabalho escravo começou com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, ainda em 1995, foi mantida e reforçada durante as duas administrações consecutivas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, e vem prosseguindo na gestão da também petista Dilma Rousseff.

Durante a campanha eleitoral de 2010, tanto Dilma como o governador Geraldo Alckmin (PSDB) assinaram a Carta-Compromisso Contra o Trabalho Escravo (www.compromissopelaliberdade.org.br), que estabelece diretrizes e obrigações relacionadas ao combate a esse tipo de crime.

Em âmbito estadual, pontuou o coordenador da ONG, três têm sido as medidas centrais para o fortalecimento do combate à escravidão contemporânea: a constituição de uma Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae) com legitimidade e condições para atuação, a elaboração de um Plano Estadual com responsabilidades e metas e a formação de um Fundo Estadual de recursos para fomentar as ações definidas conjuntamente entre governo, trabalhadores, empregadores e sociedade civil.

Também foi enfatizado o risco – econômico, e não apenas no campo das causas humanitárias – associado ao trabalho escravo, que continua presente no "núcleo do negócio" das cadeias produtivas dos mais diversos setores econômicos. "Uma economia mais limpa não deve levar em conta apenas o aspecto ambiental, mas também as condições sociais e trabalhistas, como um todo". Para Leonardo, a escravidão atual revela que a Lei Áurea de 1888 implicou somente em uma "mudança de metodologia de exploração dos trabalhadores".

Comerciários de SP e UGT fizeram protesto contra
escravidão na Oscar Freire; confira álbum (BP)

A designação de uma subcomissão específica para se dedicar à implementação de uma Coetrae em São Paulo foi determinada de imediato pelo presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Adriano Diogo (PT), que também anunciou que a instância deve se articular com a Secretaria de Justiça e da Defesa da Cidadania e a Secretaria do Emprego e das Relações de Trabalho para solicitar que mais providências também sejam tomadas em nível estadual.

Na rua e no shopping
A reunião contou ainda com a presença de dirigentes e militantes do Sindicato dos Comerciários de São Paulo, que vem realizando atos contra a exploração de trabalho escravo na indústria da moda. Josimar Andrade de Assis, diretor de relações sindicais da organização, afirmou que os casos de exploração que vieram à tona "tem tudo a ver" com a categoria, que atua na outra ponta da longa cadeia produtiva, ou seja, exercendo funções nas lojas da rede espanhola Zara como a de vendedores das peças que levam etiquetas da marca.

O dirigente exibiu uma pilha de processos trabalhistas envolvendo a Zara e relatou uma série de irregularidades "que não vem de hoje" e vem sendo registradas pelo sindicato, como pressões psicológicas que geram quadros de depressão, proble
mas relacionados ao banco de horas, desvios de função e quebras de contrato de comissões. Além de manifestar apoio total à CPI, Josimar também solicitou que os membros da Alesp demonstrem empenho para que o quadro de auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) seja reforçado, com vistas a intensificar as fiscalizações.

Na sexta-feira passada (26), o Sindicato dos Comerciários, que é filiado à União Geral dos Trabalhadores (UGT) e representa mais de 450 mil trabalhadores, organizou uma manifestação contra o trabalho escravo na indústria da moda em plena rua Oscar Freire, no bairro dos Jardins, local que reúne várias lojas de grifes famosas nacionais e internacionais.

Com gritos de ordem como "Ó madame / Não compra, não! / Roupa de grife feita com a escravidão", o sindicato visou conscientizar os consumidores que circulavam por uma das regiões mais badaladas da cidade. Motivado pela divulgação dos flagrantes de trabalho escravo na cadeia produtiva da Zara, o ato contou com a presença de cerca de 300 pessoas.

"Não podemos comprar uma peça feita com trabalho escravo e trabalho infantil pagando um valor dez vezes maior do que o trabalhador recebeu", argumentou Ricardo Patah, presidente dos Sindicato dos Comerciários e da UGT, que também mobilizaram militantes para chamar atenção para o trabalho escravo nas confecções em shopping da cidade com loja da Zara.

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