Índios fecham rodovia por arquivamento de PEC e novas demarcações em São Paulo

Povo guarani inicia jornada de lutas contra proposta que pretende transferir ao Legislativo prerrogativa para homologação de terras indígenas. Também pedem demarcação de dois territórios na capital
Por Tadeu Breda
 26/09/2013

Povo guarani inicia jornada de lutas contra proposta que pretende transferir ao Legislativo prerrogativa para homologação de terras indígenas. Também pedem demarcação de dois territórios na capital

São Paulo – Cerca de 200 índios guarani que moram em aldeias localizadas no município de São Paulo fecharam pacificamente no início da manhã de hoje (26) a Rodovia dos Bandeirantes, sentido capital, na altura do km 20, zona noroeste da cidade. O trânsito ficou interrompido por aproximadamente uma hora e meia. A polícia esteve no local, mas negociou com os manifestantes e não interveio.

“Se não tem PEC, dialogamos com o governo. Com a ameaça da PEC, não tem outro jeito: temos de lutar”, afirma Marcos Tupã, 42 anos, coordenador geral da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), organização política que congrega povos guarani-mbya e guarani-nhandeva das regiões Sul e Sudeste do país. A declaração de Tupã resume bastante bem a razão que levou os guarani a deixar de lado sua vocação negociadora e ir às ruas: eles são radicalmente contrários à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que aguarda formação de comissão especial na Câmara.

Apresentado em 2000 pelo deputado Almir Sá (PPB-RR), o projeto pretende transferir para o Legislativo a competência para demarcar territórios de ocupação tradicional no Brasil, sejam indígenas ou quilombolas. Desde a Constituição de 1988, essa prerrogativa cabe exclusivamente ao governo federal. São basicamente três fases. A Fundação Nacional do Índio (Funai) realiza estudos antropológicos, geográficos e fundiários que atestam – ou não – a ancestralidade do território. Uma vez aprovado o relatório, o Ministério da Justiça deve assinar um documento chamado Portaria Declaratória. A última etapa fica com a Presidência da República, responsável pela homologação da terra.

“A PEC 215 acaba com qualquer garantia de demarcação de novas terras indígenas no país”, avalia Marcos Tupã, lembrando que a bancada ruralista, que congrega integrantes tanto da oposição como da base governista, possui grande poder de influência sobre as decisões do Congresso. De acordo com o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), há pelo menos 142 deputados (de um total de 513) e 18 senadores (de 81) alinhados aos interesses dos grandes latifundiários e produtores rurais. “Por isso, estamos mobilizados nacionalmente. Queremos que a proposta seja arquivada: sua aprovação levará a mais confrontos e mais genocídio, porque os povos indígenas não ficarão de braços cruzados.”

Apesar de ser a principal razão que levou os guarani a fecharem a Rodovia dos Bandeirantes, hoje, a tramitação da PEC 215 não é o único motivo que desagrada os povos originários de São Paulo. A Comissão Guarani Yvyrupá também exige que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, autorize imediatamente a publicação das portarias declaratórias de duas terras indígenas localizadas na capital: a Terra Indígena Tenondé Porã, na zona sul, e a Terra Indígena do Jaraguá, zona noroeste. Ambos territórios já tiveram seus estudos antropológicos realizados e aprovados pela Funai, respectivamente, em abril de 2012 e abril de 2013. Isso significa que já venceu o prazo de 90 dias para que o relatório produzido pelo órgão recebesse contestações administrativas. O texto está pronto para seguir tramitando.

“Falta apenas a assinatura do ministro”, reivindica Marcos Tupã. O líder guarani conta que as duas terras indígenas localizadas em São Paulo abrigam quatro aldeias: duas em cada território. A Terra Indígena do Jaraguá é formada pelas aldeias Pyau e Ytu. Nelas residem cerca de 600 guarani. Reconhecida na década de 1980, a reserva do Jaraguá possui uma área de apenas 1,7 hectare – o que faz dela a menor terra indígena do país. As outras duas aldeias paulistanas estão na Terra Indígena Tenondé Porã, às margens da represa Billings: se denominam Barragem e Krukutu, e também foram reconhecidas nos anos 1980. Possuem superfície de aproximadamente 26 hectares cada uma, onde se distribui uma população de 1.200 pessoas.

“Junto com a publicação das portarias declaratórias, queremos também a correção dos limites dessas duas terras indígenas”, explica Tupã, sublinhando que o artigo 231 da Constituição estabelece que os territórios tradicionais devem ser demarcados respeitando o espaço necessário para a sobrevivência de suas culturas. “Em São Paulo vivemos em áreas muito pequenas. As famílias cresceram bastante, e o espaço não permite que vivamos à nossa maneira. O que temos são apenas fragmentos de terra. Não dá para desenvolver nossos saberes e práticas, nem transmiti-los às crianças. A correção dos limites permitirá que tenhamos mais mata e espaço para nossas roças e atividades tradicionais.”

Outra reivindicação dos indígenas que fecharam a Rodovia dos Bandeirantes é o fim dos processos judiciais movidos pelo governo do estado de São Paulo contra povos guarani cujos territórios se sobrepõem aos limites de parques estaduais. É o caso da Terra Indígena Peguoaty, no município de Sete Barras, na região do Vale do Ribeira, e também da Terra Indígena Paranapuã, em São Vicente, no Litoral Sul. Elas compartilham seus limites territoriais com o Parque Estadual Intervales e com o Parque Estadual Paranapoã, respectivamente.

As duas terras indígenas da capital enfrentam problemas semelhantes. Cerca de 300 hectares da Terra Indígena do Jaraguá já reconhecidos pela Funai – e que entrariam na correção territorial reivindicada pelos guarani – estão sobrepostos ao Parque Estadual do Jaraguá. E a Terra Indígena Tenondé Porã tem 45% de sua superfície no interior do Parque Estadual da Serra do Mar.

“Como indígenas, não pensamos em desmatar. Temos uma forma de viver tradicionalmente, junto à natureza”, garante Marcos Tupã. O coordenador da Comissão Guarani Yvyrupa argumenta que a histórica presença dos guarani nas faixas litorâneas se deve a alguns preceitos religiosos. “Acreditamos que estar perto do mar, dentro da Mata Atlântica, nos dá fortaleza espiritual para buscar a ‘terra sem mal’ que estabelecem nossas crenças. A maioria dessas áreas, hoje, está dentro de parques estaduais. E somos acusados de invasores de parques”, contextualiza. “Queremos que o governo retire essas ações judiciais, reconhecendo a permanência dos indígenas nas terras que estão em sobreposição, e que possa haver uma gestão compartilhada entre governo do estado, povos indígenas e Funai.”

Além das três razões políticas, o fechamento da Rodovia dos Bandeirantes possui para os guarani de São Paulo uma grande simbologia. Batizada em homenagem a personagens históricos conhecidos pelos povos tradicionais como “assassinos de índios”, e que são cultuados como heróis pelos paulistas, a estrada foi construída durante o regime militar sem qualquer tipo de consulta prévia ou compensação aos guarani que já estavam instalados na região.

Como se não bastasse, a Rodovia dos Bandeirantes se apropriou de uma faixa de terra da aldeia. “Não é coincidência que a menor terra indígena do Brasil é atravessada por uma estrada com esse nome”, relaciona Marcos Tupã, classificando a bancada ruralista como os bandeirantes da atualidade. “Só querem defender o grande poder econômico: os interesses de grandes sojicultores, pecuaristas e madeireiros, que financiam esses parlamentares. Deixam de lado a preservação, os indígenas, todo o resto”

A manifestação de hoje faz parte da jornada nacional de lutas convocada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) para barrar o avanço da PEC 215 no Congresso e trazer à tona uma série de demandas localizadas dos diversos povos tradicionais que ocupam o território brasileiro – e lutam por direitos e terras desde a chegada do colonizador branco. Em São Paulo, além do fechamento da Rodovia dos Bandeirantes, os guarani estão preparando uma grande concentração com representantes de aldeias de todo o estado no próximo 2 de outubro, na Avenida Paulista. A concentração será às 14h no vão livre do Masp.

Texto originalmente publicado na Rede Brasil Atual.

 

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