Trabalho escravo

Para procuradores, terceirização não anula culpa por trabalho escravo

Em reunião científica, membros do MPT defendem responsabilização civil, trabalhista e criminal de empresas flagradas com escravidão em suas cadeias produtivas
Por Thaís Brianezi
 14/11/2014

São Paulo – A responsabilização das grandes marcas e empresas que se encontram na ponta das cadeias produtivas é uma estratégia importante para a erradicação do trabalho escravo contemporâneo no Brasil. É preciso que sejam cada vez mais comuns decisões como a tomada pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT) em São Paulo em setembro deste ano, que reconheceu a responsabilidade solidária da Collins pela exploração em condições degradantes e jornada exaustiva de uma costureira empregada em 2009 em uma oficina terceirizada pela grife. Os caminhos jurídicos para que isso ocorra foram tema do terceiro e último dia da 7ª Reunião Científica sobre Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas, encerrada nesta sexta-feira (14) na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

“Cada vez cresce minha certeza de que o meio mais eficiente de se combater o trabalho escravo é a cadeia produtiva. Já há decisões que responsabilizam o tomador final do serviço do ponto de vista civil e trabalhista. Precisamos avançar também para a responsabilização criminal”, defendeu a procuradora do trabalho Christiane Nogueira. Ela lembrou que os órgãos financeiros também podem ser acionados por sustentarem empresas e empreendimentos que exploram mão de obra escrava e destacou  a ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) contra o Banco do Brasil, relativa a um flagrante ocorrido no início de 2009 em Feira de Santana, no interior da Bahia, em obras do programa do governo federal “Minha Casa, Minha Vida”.

Um dos empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida em Feira de Santana (Foto: Manu Dias/Secom-BA)
Um dos empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida flagrado com trabalho escravo em Feira de Santana (Foto: Manu Dias/Secom-BA)

Os também procuradores do trabalho João Sabino e Mariana Flesch apresentaram o artigo “Trabalho escravo e responsabilidade na cadeia produtiva”, que teve ainda a autoria da própria Christiane Nogueira e das procuradoras Ana Elisa Segatti e Dirce Trevisi. O trabalho detalhou três instrumentos jurídicos que sustentam a responsabilização civil e trabalhista dos tomadores de serviço: as chamadas tese da subordinação jurídico estrutural, os contratos coligados e conexos e a teoria da cegueira deliberada.

“A tese da subordinação jurídico estrutural defende que a proteção ao trabalhador seja feita a partir da chamada subordinação objetiva, ou seja, pelo reconhecimento de que sua atividade é controlada pela grife, ainda que seu contrato de trabalho seja com a oficina de costura”, explicou Mariana. “Outro instrumento jurídico que reforça esse entendimento são os contratos coligados e conexos, isto é, a relação existente entre o contrato trabalhista feito com a pequena oficina e o contrato de prestação de serviço dela com a grande marca”, completou a procuradora.

O terceiro instrumento, conhecido como teoria da cegueira deliberada, nasceu na Suprema Corte dos Estados Unidos. “Por meio dele, é possível acionar o tomador final pela omissão diante das infrações ocorridas em diversos elos de sua cadeia produtiva”, detalhou Mariana.

Cada vez cresce minha certeza de que o meio mais eficiente de se combater o trabalho escravo é a cadeia produtiva. Precisamos avançar também para a responsabilização criminal

Direito Ambiental
A relação entre a ocorrência de trabalho escravo contemporâneo e o desmatamento já é bastante conhecida. Ela foi inclusive reforçada na apresentação “A territorialização do trabalho escravo contemporâneo no Cerrado brasileiro”, feita por José Victor Juliboni Cosandey, mestrando em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Uma associação menos comum, mas promissora, é entre o combate ao trabalho escravo e o Direito Ambiental. “A área do Direito Ambiental do Trabalho bebe na fonte do Direito Ambiental amplo. E ele prevê que há responsabilidade solidária e objetiva de todos que concorrem para um dano”, contextualizou João Sabino. “A ocorrência do trabalho em condições degradantes sempre envolve violação ao meio ambiente do trabalho, como o descumprimento das normas de conforto, higiene e segurança. Então, ele pode ser entendido como um dano ambiental pelo qual o tomador do serviço tem responsabilidade objetiva e solidária”, apontou o procurador.

Ele explicou também que, quando se trata de crime ambiental, pode haver responsabilização criminal da pessoa jurídica, com penas que incluem a suspensão das atividades da empresa e a proibição de que ela contrate com o poder público durante dez anos. “No caso de trabalho escravo, a pessoa física do empregador já é responsabilizada criminalmente pelo artigo 149 do Código Penal. Uma tese ainda não testada, que estamos aprofundando, é que poderia haver também responsabilização criminal da empresa, fundamentada no crime ambiental”, defendeu o procurador.

piaçava
A extração da piaçava é um exemplo de cadeia produtiva pulverizada. Fotos: MPT/AM

Escravos da piaçaba
As cadeias produtivas, porém, nem sempre têm uma grande empresa como tomador final. Quando elas são pulverizadas, como acontece com a extração da piaçava no interior do Amazonas, a responsabilização trabalhista, civil e criminal dos empregadores se torna mais difícil. O procurador Renan Bernardi Kalil, mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), apresentou o trabalho “A extração da piaçava e o trabalho escravo contemporâneo na região do Rio Negro no Estado do Amazonas”. Ele deu detalhes da operação de fiscalização que resgatou 13 trabalhadores de condições degradantes e servidão por dívida no primeiro semestre deste ano, em Barcelos (AM).

“Esses homens ficavam de dois a cinco meses isolados na mata, com alimentos superfaturados adiantados pelo patrão. Quando voltavam à cidade para pesar a produção, o empregador não levava em consideração todos os quilos, alegando que a palha estava molhada.  Além disso, ele fazia descontos relativos à dividia ilegal e, muitas vezes, o trabalhador não recebia nada. Ou, no caso que presenciamos, recebia quase R$ 1 mil por cinco meses de trabalho intenso: menos de R$ 200 por mês”, relatou Kalil.

O MPT realizou uma segunda operação de fiscalização em Barcelos no segundo semestre deste ano, que não resultou em novos flagrantes. “Sabemos que as pessoas foram alertadas da nossa presença via rádio amador e se esconderam. O extrativismo de piaçava é a atividade predominante na região do Médio Rio Negro, muitas vezes a única fonte de trabalho dos moradores”, ponderou o procurador. “É urgente melhorar as condições de produção, abolir o aviamento [como é tecnicamente conhecida a cadeia de endividamento]. E, também, pensar em modos de os próprios trabalhadores controlarem a produção, quem sabe por meio de cooperativas”, alertou Kalil.

É a primeira vez que São Paulo sedia a Reunião Científica sobre Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas, que tradicionalmente acontece no Rio de Janeiro e, apenas em 2012, ocorreu em Cuiabá. O evento é promovido pelo GPTEC/NEPP-DH/UFRJ e pela ONG Repórter Brasil e esta sétima edição contou com o apoio da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), da Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo de São Paulo (Coetrae-SP) e do Departamento de Jornalismo da PUC-SP.

 

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