Três homens de nome José: a vida depois da escravidão

A história de três migrantes nordestinos submetidos a trabalho escravo pela empreiteira OAS nas obras de ampliação do aeroporto de Guarulhos, em 2013
Igor Ojeda
 30/03/2016

José Alex é pernambucano de Águas Belas, mas há duas décadas vive em Petrolândia, a menos de 200 quilômetros dali.

José Evanci é sergipano de Poço Redondo, e também mora em Petrolândia, para onde se mudou aos dois anos.

José Hildo é baiano de Glória. Nascido e criado na zona rural do município, onde vive até hoje.

Petrolândia e Glória, ambas localizadas à beira do rio São Francisco, estão separadas por apenas 60 quilômetros. A primeira em Pernambuco, a segunda na Bahia. Os destinos dos três jovens de nome José, no entanto, cruzaram-se a mais de dois mil quilômetros ao sul: Guarulhos, na Grande São Paulo.

Entre agosto e setembro de 2013, eles e mais 108 trabalhadores foram submetidos a condições análogas à escravidão nos alojamentos da OAS, empreiteira que era a responsável pela ampliação do aeroporto de Cumbica, obra inserida na lista de melhorias na infraestrutura do país previstas para a Copa do Mundo que seria realizada no ano seguinte.

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Obra do terminal de Guarulhos, feita pela OAS. Foto: Divulgação

De eletricista a pedreiro

José Alex, o mais jovem, tem 22 anos. Tinha 19 quando, com mais uns 40 homens, tomou o ônibus caindo aos pedaços para o estado de São Paulo. Nascido em Águas Belas, antes de completar dois anos foi com a mãe e os dois irmãos para Petrolândia após seu pai ser assassinado. “Mainha começou a namorar com meu padrasto, que era padeiro, e tocamos a vida por aqui. Depois de um tempo, ela virou costureira”.

Com 14 anos, o irmão do padrasto de José Alex, eletricista, chamou-o para trabalhar. Quatro anos depois, surgiu uma oportunidade de emprego de servente de pedreiro nas obras de ampliação de uma fábrica da Gerdau em Ouro Branco, em Minas Gerais. “Tem vantagem quando a pessoa trabalha em firma. Quando você sai, recebe acerto. Quando você trabalha com comércio, não tem essa vantagem.”

Um mês depois, no entanto, José Alex pegou gripe forte e, como não melhorava, teve de voltar para casa. Em Petrolândia, o jovem sarou. Menos de três meses depois, ouviu de um amigo na rua: “Tem uma viagem aí pra Guarulhos, quer ir?”

Mexendo massa desde os 12

José Evanci, também morador de Nova Petrolândia, tem 27 anos. Nasceu em Poço Redondo, no Sergipe, e, também aos dois, mudou com a família para Petrolândia, em busca de melhorar a vida. Para sustentarem os cinco filhos, o pai arranjou serviço de pedreiro e depois virou pescador, enquanto a mãe foi trabalhar de empregada doméstica.

Aos 12 anos, “pra não ficar sem fazer nada”, José Evanci começou a ajudar o pai nas obras. Revezava os períodos do dia com seu único irmão menino: enquanto um ia à escola, o outro ia trabalhar. “Botava tijolo pro meu pai, mexia uma massinha… fui crescendo e consegui emprego num supermercado. Fazia entrega, colocava mercadoria nas prateleiras. Depois, fui para uma loja de agricultura.”

Em 2012, soube por um amigo de um emprego na construção da Arena Grêmio, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Ficou nove meses exercendo a função de armador, como é chamado o profissional responsável por fazer armações para pilares, vigas e lajes. “Deu tudo certo, graças a deus. Tinha alojamento, tudo direitinho, a obra era toda organizada”. De volta a Petrolândia, com o dinheiro juntado, José Evanci reformou a casa da mãe, comprou uma moto e um terreno. “Nunca bebi, nunca fumei, não gosto de festa, uso o dinheiro pra melhorar a vida mesmo”, conta.

Alguns meses depois, avisaram-no de um trabalho no Recife, capital do Estado. Quando faltavam poucos dias para a viagem, o destino mudou. As vagas eram em Guarulhos. “Como estava tudo pronto, todo mundo concordou em ir”, lembra José Evanci, então com 25 anos.

Viajar para sustentar a família

José Hildo, de 25 anos, cresceu ajudando a família na roça, na zona rural de Glória, na Bahia. Plantavam feijão, milho, melancia, para comer e vender. Mas a vida não era fácil. Aos 18 anos, para tentar ganhar um dinheiro a mais e contribuir em casa, começou a trabalhar em construção civil… e a viajar.

Primeiro, foi a Salvador, capital baiana. Depois, tomou o rumo do Recife. Poucos meses depois de completar 23 anos, casado, com um filho de um ano e com a esposa grávida de poucos meses, recebeu um telefonema de um colega pedreiro que estava em uma obra em Guarulhos. Tinha trabalho por lá.

Promessas tentadoras

A partir do momento em que ficaram sabendo da oportunidade de emprego no estado mais rico do país, os três jovens de nome José, três trabalhadores nordestinos em busca de uma vida melhor, também passaram a compartilhar experiências praticamente idênticas. Do aliciamento de mão de obra – que, por sua vez, configura tráfico de pessoas – à submissão ao trabalho escravo. Táticas de enganação e exploração reveladoras do modo de agir característico de quem comete esses crimes.

José Alex e José Evanci, inclusive, foram contatados pessoalmente pelo mesmo homem, chamado Luciano, que falava em nome da OAS. José Hildo recebeu a proposta de trabalho por telefone, de um homem do qual não lembra o nome. Ao trio, e às outras dezenas de trabalhadores, foram feitas as mesmas promessas: emprego com carteira assinada nas obras de ampliação do aeroporto de Guarulhos, salário em torno de R$ 1.400, e alojamento, café da manhã e almoço fornecidos pela empreiteira. Ao funcionário da OAS responsável pelo contato, deveriam pagar R$ 450: R$ 250 pela viagem, R$ 200 pelo agenciamento. “Pagamos feito uns abestalhados”, lamenta José Alex.

Os cerca de 2,2 mil quilômetros que os separavam de Guarulhos não foram percorridos como o prometido. Em vez de um ônibus confortável e em boas condições de manutenção, o veículo fretado com o dinheiro dos operários estava em péssimo estado. José Alex e José Evanci viajaram juntos. Ambos não se esquecem das três ou quatro vezes em que o coletivo quebrou no meio da estrada, uma delas até com um princípio de incêndio.

Bairro onde três dos alojamentos foram encontrados no distrito de Cumbica. Foto: Stefano Wrobleski
Bairro onde três dos alojamentos foram encontrados no distrito de Cumbica. Foto: Stefano Wrobleski

Promessas quebradas

Três ou quatro dias depois, já no destino final, os trabalhadores começaram a ver as promessas sendo descumpridas uma a uma. Após o exame médico, foram informados que não trabalhariam imediatamente e que teriam de esperar alguns dias para serem chamados. Tampouco havia alojamento. Segundo José Alex e José Evanci, somente então Luciano, o agenciador, começou a procurar casas para alugar na região do aeroporto. Achou uma numa favela local.

Foram dias intermináveis. Quase 40 homens amontoados em uma única residência, sem colchões, lençóis e cobertores suficientes. As condições de higiene eram precárias, e em nenhum momento a OAS forneceu alimentação. “Fomos comprando comida. Ficamos três dias só no pão com mortadela e água”, conta José Alex. No quarto de José Evanci, havia oito pessoas no total. “O pessoal dormia em cima de colchão, papelão, pano”, relembra. “Sair de Petrolândia pra ficar nessa situação? Se, pelo menos, a gente fosse registrado, poderia procurar outra casa pra ficar”, reforça José Alex.

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Cozinha de uma das casas onde moravam os trabalhadores. Foto: Stefano Wrobleski

Alguns dias depois, descobriram o restaurante de uma senhora, que sugeriu que pagassem pelas refeições somente quando fossem registrados. Mas os dias foram passando sem novidades, e a dona do estabelecimento avisou: “Não vai dar mais, estou lisa, não dá pra comprar comida”. José Alex ligou para a mãe, que mandou R$ 50. Outros também contribuíram, e o fornecimento pôde ser retomado.

Cerca de duas semanas depois, mais 17 homens chegaram para ficar na casa, agravando as condições de moradia. Quase terminando o primeiro mês desde o desembarque em Guarulhos, os trabalhadores se revoltaram com o agenciador. Teve início um bate-boca. Exigiram que ele levasse comida ou devolvesse o dinheiro dado em Petrolândia, para que pudessem voltar para casa. Luciano disse que não daria para fazer o reembolso porque já havia comprado um carro.

Foi então que três dos homens foram até o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário de Guarulhos (Sindcongru) e à Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE-SP) denunciar as condições a que eram submetidos. No total, após alguns dias de fiscalizações em algumas casas no entorno do aeroporto, os auditores fiscais da SRTE resgataram 111 trabalhadores. As condições degradantes do alojamento, o tráfico de pessoas e a servidão por dívida foram determinantes para a caracterização de trabalho escravo.

Obra da OAS no aeroporto de Guarulhos. Foto: Divulgação
Obra da OAS no aeroporto de Guarulhos. Foto: Divulgação

José Alex, José Evanci e José Hildo, assim como os demais 108 homens, foram hospedados em um hotel, com as despesas pagas pela OAS. Foram registrados e, em seguida, demitidos pela empreiteira, que pagou todas as obrigações previstas e as verbas rescisórias. Só restava agora voltar para casa, dessa vez num ônibus em boas condições de manutenção.

A partir do momento em que desceram do coletivo e botaram o pé no chão de suas respectivas cidades, os três jovens chamados José tomaram rumos distintos na vida.

Voltar a São Paulo

Com pouco mais de R$ 6 mil na conta e com três meses de seguro-desemprego garantido, José Alex ficou um tempo parado após a volta à casa da mãe. Gastou todo o dinheiro rapidamente. “Fui comprando roupa, gastando, sem pensar”, conta, rindo. Alguns meses depois, um amigo que era motorista nas obras da transposição do rio São Francisco tocadas pela empreiteira S.A. Paulista o indicou para trabalhar como servente de pedreiro. “Só registrava se fosse na peixada”, diz, explicando o termo: “No conhecimento, na indicação”.

Lá, ficou um mês e vinte dias, quando foi demitido. “Recebi direitinho, mas um pessoal disse pra eu pôr na Justiça, por quebra de contrato. Quando o meu amigo pediu demissão para fazer outra coisa, toda turma que ele arrumou foi mandada embora. E meu contrato era de 60 dias, mas me botaram para fora antes.”

José Alex, então, voltou a procurar emprego. “Mas aqui é meio parado. Só com conhecimento”. Até que o irmão do padrasto o chamou novamente, dessa vez para ajudá-lo a instalar sistemas de câmeras de vigilância. Um tempo depois, abriu uma autorizada de máquina de lavar e, como não conhecia completamente o novo serviço, José Alex ficou novamente desempregado.

José Alex considera ir mais uma vez a São Paulo. Foto: Acervo pessoal

Nesse meio tempo, ele e os demais trabalhadores submetidos à escravidão pela OAS que eram de Petrolândia entraram com ações individuais contra a empreiteira. Após acordo, todos receberam uma indenização monetária. José Alex ficou com cerca de R$ 10 mil, que, dessa vez, investiu em um terreno que a mãe havia comprado e doado aos filhos. “Bati o alicerce do terreno, e com o restante do dinheiro comprei uma moto.”

Atualmente, sem ter mais trabalhos em vista, o pernambucano de Águas Belas considera ir mais uma vez a São Paulo. Outro irmão do padrasto, morador de Guarulhos, prometeu arranjar-lhe um emprego numa metalúrgica local. “Tô topando qualquer coisa, o importante é trabalhar. Minha mãe daria o dinheiro para a viagem, porque o que eu recebi acabou”. Ele explica que no futuro pretende construir um mercadinho no terreno que herdou. “Já quero levantar as paredes, deixar ele pronto para comprar prateleiras e começar.”

Um novo baque

Apenas oito dias foram suficientes para que José Evanci, de volta a Petrolândia após ser resgatado do trabalho escravo, fosse indicado por seu barbeiro para um emprego com carteira assinada numa loja de material de construção. Começou fazendo entrega de material, com sua moto. Oito meses depois, assumiu função no depósito, onde passou a receber e organizar as mercadorias. O dinheiro que recebeu da OAS em salários devidos e verbas rescisórias foi juntado ao arrecadado com a venda da moto para dar entrada num carro Fox 2010.

No começo de 2015, no entanto, o sergipano de Poço Redondo sofreu outro baque. Descobriu ter um câncer raríssimo no coração. Enquanto faz tratamento pelo SUS, ele teve de se afastar do trabalho pelo INSS, de onde recebe cerca de R$ 800 mensais, mesmo valor que ganhava na loja. “Fiz duas cirurgias, lá no Recife. Fiz sessão de quimioterapia, fiquei careca… de lá pra cá estou reagindo bem”, conta. “Fiz um ecocardiograma e uma tomografia, que não acusaram mais nada. Aí fiz uma ressonância, estou esperando o resultado. Com fé em Deus vai estar tudo ok.”

Com a ação contra a OAS movida a partir de Petrolândia, José Evanci recebeu R$ 5 mil, dos quais uma parte serviu para quitar algumas parcelas do carro. “Ficou mais um pouco para mim. E guardei outra parte para quando precisar, porque estou doente”, explica.

Quando se curar completamente, ele quer voltar ao emprego e não sair mais da cidade. No futuro próximo, o desejo é viver da roça. “Sei mais ou menos plantar. Não vou dizer que sei de tudo, mas a gente planta melancia e banana aqui no nosso quintalzinho.”

Ficar junto da família

Com o dinheiro recebido da OAS, José Hildo ajudou nas contas da família por um tempo e comprou uma moto, que facilitou suas idas à roça, onde retomou o trabalho. No entanto, a ideia era viajar de novo. Pensava: “quando pintar oportunidade, eu vou”. No primeiro semestre de 2015, ela surgiu. Ficou sete meses em Alta Floresta, no Mato Grosso, empregado numa obra de uma usina hidrelétrica de responsabilidade da empreiteira Quebec. “Lá deu tudo certo. Era carteira assinada e tinha alojamento em boas condições.”

De volta para casa, José Hildo fez um curso de vigilante noturno, com o objetivo de não precisar sair mais. Ele já tem um emprego à vista, de vigia noturno numa escola. Perguntado se na nova ocupação receberia mais do que numa obra em outro estado, não hesitou: “Acabo ganhando mais porque estou em casa. Para que ganhar muito e ficar longe da família?”.

Assessorado pelo advogado do Sindcongru, de Guarulhos, o baiano de Glória entrou com uma ação por trabalho escravo e danos morais contra a OAS. Apenas uma audiência foi realizada, em Paulo Afonso, a 40 minutos de sua cidade. “Espero ganhar, e que sirva de lição para eles”, diz.

À época da primeira fiscalização, a OAS negou que as pessoas que moravam naquelas condições fossem seus trabalhadores. “A OAS ressalta que as pessoas que se encontravam nos locais citados pela fiscalização não eram funcionários da Construtora, e que a empresa, nas pessoas dos seus representantes, não teve qualquer participação no incidente relatado,” dizia a nota. (Leia a íntegra).

A postura da empreiteira após o flagrante de trabalho escravo em 2013, no entanto, não mudou. Poucos meses depois, uma nova fiscalização resgatou 103 trabalhadores da OAS em condições análogas à escravidão em alojamentos na cidade de Santa Isabel, na região metropolitana de São Paulo. Eles dormiam ali, mas se deslocavam todos os dias para as obras de ampliação do aeroporto de Guarulhos.

Em outubro de 2014, o Ministério Público do Trabalho (MPT) entrou com uma ação para que empreiteira pagasse uma multa de R$ 540 mil por esta ter descumprido as obrigações estabelecidas em acordo judicial celebrado por conta do primeiro flagrante. A Justiça do Trabalho decidiu favoravelmente ao pedido do MPT, e atualmente a multa está em fase de execução.

Do lado das vítimas da empreiteira, a lição foi bem assimilada. A experiência vivida pelos três homens de nome José ensinou-os a se informar melhor sobre as ofertas de emprego que envolvam viagens a outros Estados. Se ganhar um bom dinheiro mas ficar longe da família não compensa, o que dizer de sair de casa para ser superexplorado? “Agora, pra sair tem que saber se é certo mesmo, pra não ficar daquele jeito. O cara fica mais atento”, garante o baiano José Hildo.

Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk DGB_BW_Logo_RGB

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