Artigo – Confisco da terra: a árvore e a floresta

"O Poder Executivo precisará mostrar pulso firme para os desafios espinhosos que se colocam no horizonte da erradicação do trabalho escravo. A lista é extensa: desde o enfrentamento político da exploração da mão-de-obra escrava em fazendas-modelo do agronegócio até o julgamento do 1º vice-presidente da Câmara, Inocêncio de Oliveira (PFL-PE) por prática de trabalho escravo no Tribunal Regional do Trabalho do Estado do Maranhão"
frei Xavier Plassat
 02/09/2004

Houve muita conversa, em 9 anos de trâmite legislativo, até se chegar à aprovação da emenda aglutinativa da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) do confisco das terras de escravistas. O texto, aprovado em 11 de agosto de 2004 pela Câmara dos Deputados que deve retomar o caminho do Senado devido às alterações sofridas em sua redação , arrasta-se há anos no Congresso Federal.

É fruto de propostas antigas, apresentadas por ilustres parlamentares (Paulo Rocha, em 1995; Marçal Filho e Adão Pretto, em 1999; Ademir Andrade, em 2001, cuja proposta foi acrescentada às demais). Visa estender às terras flagradas com trabalho escravo a mesma pena aplicável às glebas encontradas com plantio de psicotrópicos: a expropriação sem indenização.

Vale lembrar, en passant, que tal pena, devidamente estipulada no Art. 243 da Constituição, nunca teve aplicação, ainda que exista constante ocorrência de plantios de psicotrópicos em vários cantos e polígonos do Brasil.

A proposta foi apresentada como decisiva para a erradicação do trabalho escravo, tarefa com a qual o Estado brasileiro se comprometeu ao aderir – há décadas! – a convenções internacionais (da Organização Internacional do Trabalho/OIT, da Organização das Nações Unidas/ONU, da Organização dos Estados Americanos/OEA). Além disso, o país, há 18 meses, adotou plano explicitamente voltado para esse recorrente desafio. Diz o artigo IV, inciso 10 do Acordo de Solução Amistosa assinado em 18 de setembro de 2003 entre o governo brasileiro, de um lado, e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), do outro, para solucionar o caso conhecido como José Pereira:

"A fim de melhorar a Legislação Nacional, que tem como objetivo proibir a prática do trabalho escravo no país, o Estado brasileiro compromete-se a implementar as ações e as propostas de mudanças legislativas contidas no Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, elaborado pela Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, e iniciado pelo Governo brasileiro em 11 de março de 2003."

Gota no oceano
Embora seja uma das medidas com maior teor simbólico (a ameaça ao sagrado direito de propriedade, alicerce de uma sociedade essencialmente patrimonial, pelo menos na visão de sua autoproclamada elite), o confisco da terra é tão somente uma das 76 propostas de mudanças inscritas no Plano Nacional. O trabalho para tentar levantar essa única árvore fala por si só quanto da dificuldade que haverá para erguer o resto da floresta.

Na tese que sustenta o confisco, nada de revolucionário: por ser um crime que atenta contra valores fundamentais do nosso convívio social – liberdade, dignidade, cidadania -, a imposição do trabalho escravo merece a reprovação máxima, simbolizada pela perda pura e simples do bem que foi instrumento e ocasião do crime, a propriedade, elevada por seus aduladores ao status de ídolo, à qual podem ser sacrificadas vidas alheias.

O Estatuto da Terra já previa a perda – mediante indenização – da propriedade que não cumprisse sua função social (seja por não produzir a contento ou por descumprir os deveres impostos pela lei trabalhista e ambiental). O confisco é a radicalização deste princípio, em relação a valores tidos como centrais numa sociedade democrática.

Chama a atenção da pessoa de boa fé que tenha sido tão árduo vencer a inércia, senão a resistência, dos congressistas em tal matéria. Não faltaram manobras ardilosas por parte de expoentes da bancada ruralista como o deputado federal Ronaldo Caiado (PFL/GO), a deputada federal Kátia Abreu (PFL/TO) para conseguir protelar, alterar e desvirtuar a proposta ou, ainda, confundir a sociedade. É como se a degradação humana imposta à vítima do trabalho escravo pudesse ser comparada à perda patrimonial imposta ao seu algoz, consciente ou inconsciente.

A leitura dos nomes de quem se absteve ou votou contra – foram 18 deputados: 5 do Paraná, 2 do Tocantins, 2 da Bahia, 2 de São Paulo, 2 de Goiás, 1 de Sergipe, 1 de Alagoas, 1 de Santa Catarina, 1 de Rio Grande do Sul, 1 do Distrito Federal; entre estes, 6 do PFL, 6 do PP, 2 do PSDB, 2 do Prona, 1 do PMDB e 1 do PTB – é instrutiva da geografia territorial e política dos defensores do statu quo nessa matéria.

A moleza das forças governistas em querer ganhar essa batalha é outro ensinamento do quanto custam alianças pautadas na estrita governabilidade, nome que a moda atribui à manutenção no poder.

As alterações introduzidas no texto aprovado no Plenário em relação ao texto que a Comissão havia aprovado por unanimidade versam sobre a inclusão das propriedades urbanas, a destinação das propriedades confiscadas à reforma agrária ou a programas de habitação popular, o direito à ampla defesa expressado na retirada do advérbio imediatamente. Elas têm o efeito de protelar mais um pouco o andar da carruagem, forçando novo exame no Senado e volta à Câmara. Tudo isso sem prazo determinado e com o risco, novamente, de descumprimento de acordos construídos em Comissão e possíveis novas surpresas.

Lista Suja
Quem se sente ameaçado pelo confisco da propriedade? Os mesmos que reclamam da feliz iniciativa da chamada Lista Suja dos escravistas modernos, em cujas duas edições recentes, divulgadas pelo governo, 101 empresas e proprietários rurais perderam o direito a financiamento público subsidiado, e – espera-se para breve – perderão acesso a outros financiamentos, inclusive na rede privada.

Os mesmos que constam na lista de cerca de 800 proprietários fiscalizados nos últimos 9 anos, por meio do Grupo Móvel de Fiscalização (constituído em 1995), ocasião em que nada menos de 11.500 pessoas foram libertadas. Sim: libertadas do cativeiro, da degradação, da servidão por dívida, da chamada escravidão "moderna".

Entre eles, apenas dois tiveram até hoje sanção penal, nenhum foi para a cadeia, quase nenhum pagou além do direito do qual havia lesado seus funcionários (a exceção só passou a se constituir com a prática, recentíssima, da condenação pela Justiça do Trabalho ao pagamento de indenização por danos morais coletivos, cujo valor, em datas recentes, começou a se tornar dissuasivo: existe uma demanda a ser julgada em breve, em Marabá-PA, no valor de R$ 85 milhões Caso Lima Araújo Ltda-AL).

Alguns políticos pegos em flagrante de escravização, entre eles eminentes deputados e respeitados senadores, também se sentem incomodados em seu livre poder de lucrar. O mesmo ocorre com expoentes do agronegócio em cujas terras são desveladas a cada dia ocorrências de trabalho escravo. De São Desidério-
BA, Querência ou Brasnorte-MT a Campos-RJ, passando por Araguaína-TO, Açailândia e Balsas-MA, Redenção e Dom Eliseu-PA. Sem falar das práticas abertamente criminosas em processo de apuração na região de Unaí-MG (o rei brasileiro do feijão, Norberto Mânica, foi apontado pela Polícia Federal como mandante do assassinato dos três fiscais e do motorista do Ministério do Trabalho). As divisas tão cobiçadas de nossa balança externa com manchas de sangue.

Ainda existem os madeireiros e pecuaristas que transformam a Floresta Amazônica em vasto cerrado degradado e as carvoarias que completam essa tarefa mortífera. No ranking, a pecuária conta com 50% das ocorrências de escravidão; o deflorestamento e a carvoagem, com 25%; o agronegócio, com os outros 25%. Na cadeia produtiva do trabalho escravo, ainda por ser mais claramente desvelada, sem dúvida estão muitos dos produtos do nosso consumo cotidiano e de nossa exportação tão louvada.

Limpar o Brasil dessa mancha não combina com conchavo ou barganha. Cobrado pela comunidade internacional (sejam quais forem os interesses reais em jogo aqui ou ali), o governo Lula com forte determinação política pode, nessa empreitada, contar com o apoio da sociedade civil. Estamos numa queda de braço que já foi marcada por ameaças (a informantes; a funcionários públicos; a agentes da sociedade civil organizada) e violências brutais (Unaí). Nessa batalha está em jogo o valor central de nossa sociedade, preceito constitucional e horizonte de qualquer ação política que se respeite: a dignidade.

Combate integrado
É exagerado pensar que a lei do confisco da terra possa constituir em si o antídoto essencial à erradicação do trabalho escravo. Se é politicamente importante contabilizar os votos majoritários em favor da PEC 438-A, não há como gritar vitória somente porque esse obstáculo estaria quase vencido. O Plano de Erradicação foi construído dentro de uma lógica de combate integrado aos fatores que permitem que a escravidão continue prosperando em nosso meio, combate que implica contribuição das várias instituições do Estado e participação ativa da sociedade.

O fim da impunidade é, sem contestação possível, essencial nesse combate. Primeiro, garantindo uma fiscalização ágil, rigorosa, independente. O avanço nos últimos 18 meses é incontestável: o Grupo de Fiscalização Móvel ampliou para 7 o número de equipes operacionais e já são 7 mil os trabalhadores resgatados no período, em mais de 100 operações e 400 propriedades. Segundo, produzindo uma punição efetiva, exemplar, dissuasiva, tanto nos aspectos penais (penas privativas de liberdade) quanto nos aspectos pecuniários e econômicos (multas, indenizações, confisco, sanções financeiras e comerciais), garantindo ao mesmo tempo uma real compensação dos danos impostos às vítimas e à sociedade.

A nova atuação do Ministério Público Federal e, sobretudo, do Ministério Público do Trabalho já apresentam promissores resultados. Mas para que a impunidade seja superada, há muito que fazer. A competência da Justiça Federal para julgar essas matérias continua, até hoje, sem determinação clara, e aguardamos ainda o cumprimento do engajamento subscrito pelo Estado brasileiro (no mesmo Acordo de Solução Amistosa já citado): art. IV, inciso 12: "Por último, o Estado brasileiro compromete-se a defender a determinação da competência federal para o julgamento do crime de redução análoga a de escravo, com o objetivo de evitar a impunidade."

Iniciativas legislativas serão necessárias para elevar o quantum das penas previstas no art.149 CP (alterado em dezembro passado sem – curiosamente – tocar nesse ponto crucial). Aguarda-se ainda do Conselho Monetário Nacional a votação da resolução, impedindo a concessão de empréstimos de bancos públicos bem como de instituições privadas aos escravocratas modernos cujo nome consta na Lista Suja, e, do Incra, o efetivo recadastramento dos imóveis flagrados com uso de mão-de-obra escrava.

De forma mais proativa, aguarda-se políticas que venham disciplinar o avanço desenfreado da chamada fronteira agrícola a preço de devastação humana e ambiental. E construir alternativas de educação, qualificação, geração de emprego e reforma agrária nas principais áreas de aliciamento e nos focos de emigração temporária (interior da Bahia, Piauí, Alagoas, Maranhão, Pará, Tocantins etc). O apoio cego do Estado às exigências do agronegócio entra, neste sentido, na contramão do projeto político de erradicar o trabalho escravo.

Perpassando as medidas previstas no Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, espera-se uma intensa ação de prevenção e mobilização que pouco saiu do discurso. Iniciativas começaram a ser tomadas em alguns estados, devendo ainda se consolidar em políticas públicas (Pará, Piauí, Mato Grosso, Maranhão): comissão ou fórum estadual, plano estadual de erradicação, câmara de fiscalização.

A Comissão Pastoral da Terra vem intensificando, nessa parte, as ações de terreno, visando identificar, alertar e mobilizar os trabalhadores mais vulneráveis ao aliciamento; esta é uma das frentes da campanha nacional permanente De Olho Aberto para não Virar Escravo, que vem sendo articulada desde 1997.

Estão em jogo, com certeza, opções de modelo de desenvolvimento para o país, para o campo, para a agricultura brasileira. Nas palavras do jornalista Maurício Hashizume, "o Poder Executivo precisará mostrar pulso firme para os desafios espinhosos que se colocam no horizonte da erradicação do trabalho escravo. A lista é extensa: desde o enfrentamento político da exploração da mão-de-obra escrava em fazendas-modelo do agronegócio até o julgamento do 1º vice-presidente da Câmara, Inocêncio de Oliveira (PFL-PE) por prática de trabalho escravo no Tribunal Regional do Trabalho do Estado do Maranhão".

Ao contemplar a árvore do confisco da terra – um confisco que oxalá possa advir sem esperar o translado em julgado de casos patentes, documentados, comprovados; do contrário, provavelmente, nunca virá a se concretizar -, não podemos esquecer da floresta diversificada formada pelo conjunto de medidas articuladas e coerentes que a erradicação efetiva da escravidão moderna exige que sejam assumidas com toda força.

Frei Xavier Plassat é coordenador da campanha da Comissão Pastoral da Terra (CPT) contra o trabalho escravo.

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