Meio ambiente

Artigo – Alguém combinou com o adversário?

Vai começar o asfaltamento da rodovia Porto Velho-Manaus. Projetos de infra-estrutura como esse favorecem o grande capital e condenam a Amazônia. Como paliativo, o governo lança mecanismos de proteção ambiental. Duvida-se que os predadores da floresta acreditem em seu funcionamento
Por Leonardo Sakamoto
 20/06/2006

"O senhor já combinou com o adversário para deixar a gente fazer tudo isso?"

A indagação de Garrincha após ouvir as orientações do técnico Feola, antes do jogo com a União Soviética, na Copa de 1958, na Suécia, acabou se transformando em pérola do futebol nacional. Questiona o excesso de confiança em nossas ações, quando menosprezamos outros fatores que podem influenciar no processo.

Trocando gramados por florestas, a mesma pergunta poderia ser feita sobre a política do governo federal para a Amazônia. As ações de combate ao desmatamento ilegal às margens da BR-163, a Rodovia Cuiabá-Santarém, vistas como salvadoras por parte da sociedade civil, não adiantarão de nada se o "adversário" – os atores do desmatamento da floresta – continuarem sem a devida marcação. E essa liberdade em campo, trazida pela conivência de várias esferas de governo com o modelo de expansão do capitalismo na Amazônia, já vai render outro tento: o asfaltamento da BR-319, ligando Porto Velho a Manaus, previsto para começar até o final deste ano.

Após a morte da missionária Dorothy Stang, em fevereiro de 2005, o governo brasileiro baixou uma série de medidas para proteger comunidades extrativistas e de pequenos agricultores e o meio ambiente no Pará. Criou-se, por exemplo, bolsões de preservação em torno da BR-163 para proteger a região do impacto do seu asfaltamento – que servirá para facilitar o escoamento da produção do Mato Grosso através do porto de Santarém.

Que o Estado brasileiro só toma alguma atitude contra atores da expansão agrícola quando o derramamento de sangue de inocentes é estampado na mídia nacional e internacional, isso não é novidade. Xapuri, Eldorado dos Carajás e Unaí estão aí, para citar apenas alguns além de Anapu. Mas essa atitude é isolada no tempo e no espaço, com fazendeiros e madeireiros restabelecendo sua força logo a seguir.

Porque a verdade é que o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério do Desenvolvimento Agrário não possuem estrutura de fiscalização suficiente, através do Ibama e do Incra, para garantir a preservação nem das reservas já existentes, o que dirá desses imensos bolsões recém-criados. Isso, é claro, já descontados os funcionários de ambas as autarquias que jogam contra o patrimônio, aliando-se com as pessoas que deveriam fiscalizar.

A verdade é que essas regiões continuarão sendo exploradas, de uma forma ou de outra, porque o vetor de desmatamento estará instalado. Em algumas décadas, corre-se o risco de fotos de satélite mostrarem dois chumaços verdes de cada lado da BR-163, envolvidos por campos de soja e pastagens. O apoio irrestrito e burro ao latifúndio monocultor vai continuar. Seja ele em forma de financiamento a juros baixos e de isenção de impostos (sem nenhuma contrapartida social ou ambiental) ou da implantação de uma infra-estrutura de transporte que não é pensada para o desenvolvimento do país e sim para o escoamento de suas riquezas. A Amazônia e o Cerrado, dessa maneira, vão se tornando nuggets de redes de fast food européias, óleos de soja na mesa dos brasileiros e ripas de madeira nas obras de grandes condomínios.

Agora, que o asfaltamento da BR-163 tornou-se fato consumado e apoiado até por algumas entidades da sociedade civil, o próximo alvo é a BR-319. O Ministério do Meio Ambiente promete criar um colchão de proteção nos moldes da BR-163, com uma faixa de 100 km em que é proibido desmatar. Mas aqui a estupidez é ainda maior, porque essa estrada é paralela a um grande rio. E por mais que o trânsito de barcaças no Madeira gere um impacto ambiental, ele não é comparável ao trazido pelo asfalto entre as cidades de Humaitá e Careiro.

O problema não é só de preservação ambiental, mas sim das populações ribeirinhas e indígenas que moram na região, que não é um terreno baldio. O discurso da fronteira agrícola constrói uma idéia de vazio a partir dos dados de baixa densidade demográfica (baixa, não inexistente) que pode e deve ser ocupado – justificando as ações de construção de infra-estrutura e de colonização. E como tem feito historicamente, o Estado, em algum momento, irá promover a colonização da região fixando de forma precária os trabalhadores rurais em lotes sem estrutura e insustentáveis, de forma contrária às aspirações dos movimentos sociais. Mas continuará garantindo, dessa forma, mão-de-obra barata para madeireiros e o agronegócio.

Foi assim quando Juscelino Kubitschek mandou construir a BR-153 (Belém-Brasília) ou quando a ditadura militar ampliou a BR-222 e a PA-150 (no Sudeste do Pará) e abriu a BR-230 (Transamazônica). Essas linhas ofereceram a Amazônia Oriental ao capital privado nacional e internacional, em uma marcha constante para o Oeste e o Norte. O asfaltamento da BR-319 se junta à construção do gasoduto Urucu-Porto Velho, tornando-se um dos grandes vetores de desmatamento da Amazônia Ocidental.

Se o adversário continuar fazendo o que quiser em campo, e com a anuência do juiz, perderemos feio o jogo – ao contrário dos 2 a 0 que o Brasil plantou nos soviéticos em 1958. Em outras palavras, se modelo de desenvolvimento agrário do país continuar livre, e com o apoio do governo e de seus ministérios fortes (Fazenda, Planejamento, Casa Civil), os bolsões de proteção serão paliativos. E a discussão não será se a Amazônia vai para o brejo, mas quando e como.

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