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Apanhadores de Flores
Foto: André Dib

Apanhadores de flores


Parque Nacional proíbe atividade tradicional que é o centro da vida de dezenas de famílias do norte de Minas: a colheita de flores

Por Jessica Mota
27 de janeiro de 2018

COMUNIDADES APANHADORAS DE FLORES

  • Onde estão: na região da Serra do Espinhaço, norte de Minas Gerais

  • Atividades: colheita e venda de flores, raízes, cipós e frutos. Roçado e criação de animais

  • Por que lutam: pela recategorização do Parque Nacional das Sempre-Vivas em Reserva de Desenvolvimento Sustentável

  • Ameaças: Parque Nacional das Sempre-Vivas, gerido pelo ICMBio, impõe restrições às ações humanas. Avanço da monocultura de eucalipto e pinus, da mineração e de fazendeiros

  • Como se organizam: associações e Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas, articulação com o Ministério Público Federal, com a Defensoria Pública Federal e com o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. Debates na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri

“Como que chega uma pessoa no meu território, em que a gente nasceu e se criou, onde a gente sobrevive durante anos e diz: ‘vocês têm que viver assim’?”. A fala de Aldair Souza, 44 anos, não se dirige exatamente a uma pessoa, mas a uma unidade de conservação. Ele é morador da comunidade de Pé de Serra, a 47 km de Buenópolis, a cidade mais próxima. Criou-se na vida tranquila dos campos abertos da Serra do Espinhaço, norte de Minas Gerais. O trabalho sempre veio da terra, seja com a colheita das flores para venda, seja com a criação de gado, a agricultura e a colheita dos frutos secos do cerrado. Bisneto de apanhadores de flor, ele aprendeu na família como fazer a colheita e as queimadas controladas, que fazem as flores brotarem depois. Como tantos ali, conhece a diversidade e particularidade das mais de 200 espécies que nascem só nessa região, entre elas as flores sempre-vivas.

A chegada do Parque Nacional das Sempre-Vivas, criado em 2002, mudou drasticamente as condições de vida dessa população. Quase tudo o que sabiam fazer se tornou proibido e invalidado. Com 124 mil hectares, a unidade de conservação se sobrepõe a 11 comunidades tradicionais existentes na região, que em sua maioria se identificam como apanhadoras de flores – mas há também vazanteiras, geraizeirase quilombolas, e em muitas delas as identidades se misturam. O parque, que abrange os municípios de Olhos d’Água, Bocaiúva, Buenópolis e Diamantina, é uma unidade de proteção integral. Dentro dele é proibido caçar, pescar, criar animais e exercer qualquer uma das atividades praticadas pelas famílias que vivem ali. Até a coleta de flores foi proibida depois da criação do parque, quando passou a ser considerada como uma atividade de impacto.

A colheita das flores é o centro da vida da gente que vive na região, gente acostumada a se guiar pelo ritmo dos ciclos da natureza. Na época das colheitas, famílias inteiras vão para o alto da Serra. Montam moradia nas cavernas que lhes dão sombra – chamadas de lapas – e passam ali cerca de três meses. É quando acontecem os encontros, reencontros, a alegria da festa, casamentos e nascimentos. “É uma farra”, resume Aldair em um sorriso. Maria de Fátima Alves, de 38 anos, é ela mesma filha da colheita. Seus pais se conheceram em cima da Serra e dali construíram a família e seu sustento.

Foi a partir de 2007 que as coisas começaram a mudar e chegou o terror, como define Aldair. A gerência do Parque começou a fazer intimidações e ameaças às famílias que permaneciam ali. Aldair e Maria de Fátima citam um episódio em que uma funcionária do parque apontou uma arma para uma criança. Antônio, de 74 anos, pai de Maria de Fátima, foi multado e ameaçado dentro de sua casa, segundo ela relata. Muitas vezes, os barracos e pertences das famílias eram queimados ou levados. Com a violência, muitas pessoas adoeceram, outras se mudaram dali. O ICMBio afirma que sua corregedoria instituiu um processo administrativo disciplinar para apurar os fatos e que o Ministério Público Federal abriu inquérito civil com o mesmo objetivo.

Após denúncias dos moradores, a gerência mudou. Mas as proibições continuaram. “Eles falam que não proíbem a pessoa, que podem continuar, porque realmente por lei eles não podem tirar enquanto não for indenizado, mas ao mesmo tempo vai privando as pessoas de ter as coisas”, relata Maria de Fátima. Apesar das restrições às comunidades, seguiram os avanços da monocultura de eucalipto, para produção de carvão mineral, da mineração de quartzito e de fazendeiros, que ameaçam a permanência no território tradicional.

Foto: André Dib A chegada do Parque Nacional das Sempre-Vivas mudou drasticamente a vida das comunidades. Todas as atividades foram proibidas. Foto: André Dib
Na colheita, as famílias se instalam nas cavernas, no alto da Serra. É quando acontecem os encontros, reencontros, casamentos e nascimentos. Fotos: André Dib e João Roberto Ripper

Resistência

Foi com a ameaça de perda de território que as comunidades começaram a perceber que tinham modo de vida próprio, que dependia da serra para continuar existindo. Eram elas quem, há gerações, mantinham a área do parque “conservada”. Passaram a afirmar sua condição, vencendo o estigma da pobreza.

Organizadas, exigem que o Parque se torne uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável, o que permitiria a continuação do manejo praticado pelas famílias e seu sustento. Aldair aponta dificuldades em dialogar com o ICMBio. “Muitas vezes as propostas são ignoradas. Não consideram as ideias da gente, na verdade não consideram as comunidades”, fala. A atitude desrespeita a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho , que estabelece no Brasil um marco legal de consulta às comunidades tradicionais sobre qualquer projeto que as afete.

O ICMBio afirma que desde 2012 busca construir um instrumento de garantia de direitos das comunidades tradicionais, “não obtendo sucesso mesmo com o apoio do MPF, pois as lideranças com quem o órgão dialogava não aceitavam que o ICMBio iniciasse este debate nas comunidades”. Confira a íntegra da resposta.

Hoje, nas brechas, as famílias conseguem desenvolver a colheita das sempre-vivas, as flores mais cobiçadas. Em 2017, a colheita rendeu quase meio milhão de reais ao conjunto de comunidades da região de Pé de Serra, segundo Aldair. As flores são vendidas a atravessadores e vão para exportação. Atualmente, as comunidades estão aprendendo melhor sobre a cadeia de valores para incidir sobre ela. As sempre-vivas custaram, nessa colheita, R$ 16,50 o quilo.

“Essa política ambiental está muito equivocada ao achar que o caminho da conservação ambiental é esse de retirar comunidade tradicionais, como se isso fosse de fato promover conservação”, critica Claudenir Fávero, professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. “Acho que está muito claro que este não é o caminho. São muitos exemplos de que isso não resulta em conservação e causa exclusão social”.