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Ribeirinhos de Montanha e Mangabal
Foto: Marcio Isensee Sá

Camponeses da Serra do Centro


No Tocantins, famílias resistem à soja há 30 anos e são consideradas invasoras em território que ocupam há gerações

Por Carolina Motoki e Jessica Mota
Fotos de Márcio Isensee Sá, do Tocantins
3 de julho de 2018

COMUNIDADES CAMPONESAS

  • Onde estão: espalhadas pelo país, aqui tratamos das que estão na Serra do Centro, nordeste do Tocantins

  • Atividades: plantio de roças, coleta de frutos e remédios no Cerrado, caça, criação de pequenos animais e pastoreio de gado em áreas coletivas

  • Por que lutam: pela regularização do território tradicional e pela preservação do Cerrado e suas águas

  • Ameaças: apropriação do território pela expansão da soja, parte sobreposto a área considerada reserva legal de grandes fazendas

  • Como se organizam: em mutirão e com organização da produção; com a construção de Escola Família Agrícola; com apoio da Comissão Pastoral da Terra, buscam mediação do Ministério Público Federal

Para se chegar às comunidades camponesas na Serra do Centro, onde o Tocantins faz fronteira com o Maranhão, é preciso atravessar um mar de soja que se perde no horizonte. Nem sempre foi assim. Em toda casa que se visite, as histórias das antigas gerações são narradas em detalhes, desde o tempo das tataravós. A memória segue viva em oposição à condição presente do local, onde a monocultura substituiu a vegetação do Cerrado. As famílias ainda recordam até onde ia cada território e onde começavam os campos de uso comum. Os limites eram marcados pela vegetação e pelos riachos, que hoje se perderam na uniformidade das plantações que já fizeram do município o maior exportador de soja do Tocantins.

O projeto Campos Lindos foi implantado na década de 1990 em um contestado esquema de titulação de terras públicas levado a cabo pelo então governador Siqueira Campos, no recém-criado estado, sobre territórios ocupados por comunidades tradicionais. O conflito gerado permanece até hoje, com mediação do Ministério Público Federal (MPF), que elaborou um relatório antropológico e propôs um termo de ajustamento de conduta entre os plantadores de soja e as comunidades.

Onde hoje estão as plantações que abastecem os entrepostos das multinacionais Bunge e Cargill, havia um extenso campo plano, rico em água, plantas e animais. Sobre ele, festas religiosas, encontros e casamentos se repetiram por pelo menos cem anos. “Sempre houve gente, uns saindo e outros chegando”, lembra Joaquim Miranda Silva, da comunidade Vereda Bonita, ao dar seu depoimento ao relatório antropológico do MPF.

As famílias guardam também a herança e a influência da cultura indígena Kraô, com a colheita de frutos, a caça, a pesca e o jeito de cultivar suas roças: em mutirão, fertilizadas pelas cinzas de pequenas áreas queimadas, em sistema de rodízio para que a vegetação e o solo se regenerem, no que é conhecido na região por “roça de toco”. Mandioca, abóbora, milho, feijão, arroz não faltavam nas mesas. Só era necessário comprar calçados, querosene, café e sal, trazidos de Balsas, no Maranhão, em lombo de animal e atravessando os rios em barcos de madeira de buriti. O algodão era fiado pelas mulheres que teciam roupas e redes para dormir. O gado era criado solto e as roças cercadas, para impedir a entrada dos animais.

Foto: Marcio Isensee Sá Área desmatada para o cultivo de soja. Ao fundo, área de Cerrado, onde estão as comunidades. Foto: Marcio Isensee Sá
Foto: Marcio Isensee Sá Famílias camponesas usam tradicionalmente o Cerrado para coleta de alimento e remédio. Foto: Marcio Isensee Sá

Quem é o invasor?

Desde a implantação do projeto, o conflito se estende por vários capítulos. O primeiro ignorou a presença das famílias. A área foi desapropriada e dividida em lotes, vendidos a preços baixos e desmatados para o plantio.

Algumas das famílias foram obrigadas a sair dali, em função de sucessivas ameaças e apropriações de terra. Algumas foram morar na cidade de Campos Lindos, que já ocupou a primeira posição no ranking do IBGE de municípios mais pobres do Brasil. Outras se mudaram para cidades maiores da região. As que ficaram estão no que sobrou de Cerrado, considerado como reserva ambiental “em condomínio” do projeto – quando os lotes têm uma reserva legal comum, como medida de compensação ambiental. A ameaça de despejo é permanente.

Com apoio da Comissão Pastoral da Terra, as famílias acionaram o Ministério Público Estadual e descobriram que o projeto era cheio de irregularidades. “As leis ambientais foram ignoradas, nenhum estudo de impacto foi apresentado antes da liberação do projeto. Os relatórios ambientais realizados foram produzidos posteriormente, porém nenhum deles foi aprovado pelos órgãos fiscalizadores – e seguem assim até hoje”, revela Pedro Ribeiro, da Comissão Pastoral da Terra Araguaia-Tocantins.

Fruto de ampla mobilização, cerca de 70 famílias conseguiram ter lotes titulados pelo Instituto de Terras do Tocantins, em torno de 50 hectares cada. Muitos ficaram sem títulos, mas permaneceram na área. O relatório antropológico do MPF conclui que “há uma quantidade razoável de famílias que foram ignoradas pelo cadastramento, em virtude da utilização de critérios questionáveis como considerar que pais e filhos que possuíam casas próximas uma da outra constituíam um único núcleo familiar e precisariam de uma única área para obter seu sustento”.

No segundo capítulo, a briga se estendeu pelos anos. As famílias enfrentam, desde então, a limitação do território e a insegurança jurídica sobre sua permanência nas terras, além dos efeitos da redução das suas matas, com o desaparecimento da caça.

A narrativa da vida presente é mais dura, se comparada à de antigamente. Os moradores denunciam a contaminação dos cursos d’água por agrotóxicos e a morte de duas crianças da mesma família após a aplicação de veneno por avião. Diversas audiências públicas foram realizadas, sem resultados efetivos. Apesar disso, esse capítulo também foi de resistência: organizadas, as comunidades ergueram com as próprias mãos uma escola do campo, e empreenderam diversos projetos de geração de renda, como o beneficiamento de polpas de frutas e a criação de abelhas.

Ameaças crescentes

O terceiro capítulo, mais recente, parte de uma investida mais forte por parte da Associação Planalto, que reúne os sojeiros, para evitar multas ambientais. Uma ordem de reintegração de posse foi emitida pela Justiça Estadual e confirmada por instâncias superiores em 2016 contra 59 famílias camponesas, o que gerou desespero na comunidade.

O Ministério Público Federal foi acionado pelas famílias e pela CPT, em razão de as comunidades se autoafirmarem como tradicionais e, portanto, com direitos territoriais. O MPF enviou uma equipe de antropólogos ao local, que reiterou a condição. “A Constituição garante o reconhecimento da existência e a forma de trabalhar como comunidade tradicional, mas no cerrado do Tocantins não garante”, atesta o camponês João Bandeira.

Sendo território tradicional, de acordo com o relatório do MPF, somente as famílias poderiam definir quem deve ficar ou sair da área, o que se contrapõe à ordem de despejo, investida principalmente sobre os que chegaram mais recentemente para viver nas comunidades.

O resultado da negociação mediada pelo MPF foi um termo de ajustamento de conduta, acordo extrajudicial firmado em 2016. O TAC determinou a elaboração de um plano de manejo por parte da Associação Planalto, que possibilitaria a permanência das famílias na área reivindicada pelo projeto como reserva ambiental.

O plano de manejo apresentado pela Associação Planalto atesta a mudança radical pela qual passou o território desde a chegada do projeto: “o crescimento das áreas destinadas ao cultivo da soja teve aumento de 3.498% e o da pecuária de 48%. Houve um decréscimo de 27% de áreas com vegetações naturais, com perda de 9% de florestas e 32% de savanas em relação a 1990”. A grande transformação pela qual passou o entorno obrigou também os camponeses a mudarem o seu modo de produção, já que os agrotóxicos e a redução da área do plantio alteraram a dinâmica do cultivo. “A gente vem acompanhando uma extrema mudança da forma de produção, não é mais tão natural, está se modificando e se alterando”, explica o camponês João Bandeira.

Além de todas essas transformações já sentidas pelas famílias, o plano de manejo da Associação Planalto dita regras sobre o que podem e não podem fazer dentro da área considerada como reserva. “As famílias ficam obrigadas a plantar no mesmo quadrado por anos e anos, o que desrespeita a forma tradicional de manejo, que prevê, por exemplo, a rotatividade da área, tempo de descanso da terra e a regeneração da mata”, expõe Rafael Oliveira, agente da CPT. A mesma avaliação tem a Alternativa para Pequena Agricultura no Tocantins, organização que presta assessoria técnica às comunidades.

O plano também foi analisado pela Naturatins, responsável pela fiscalização ambiental no estado, que deu parecer negativo ao documento por “não estar de acordo com a legislação”.

O MPF submeteu o caso à 6a Câmara em Brasília e deve apresentar também uma análise sobre o Plano de Manejo. Procurado pela Repórter Brasil, o órgão disse que só irá se manifestar após a conclusão do procedimento.

A Associação Planalto declarou, por meio de seu advogado, que o TAC deu legitimidade da propriedade aos sojicultores, confirmando as decisões das instâncias judiciais (íntegra das respostas da Associação Planalto).

Depois de conhecer as limitações do plano de manejo, João Bandeira concluiu que o termo de ajustamento de conduta gera insegurança às famílias. “Não dá para trabalhar contra a comunidade, precisa repensar o plano e o acordo”, diz.