Em comunhão com a terra

Alterar as características do Sertão nordestino não é a melhor solução para o seu desenvolvimento. O homem está começando a entender que, melhor que transformar, é adaptar-se ao meio, em paz com a natureza. Despontam projetos que utilizam tecnologia desenvolvida aqui mesmo no Brasil e que podem ajudar a região a puxar o crescimento do país neste novo século.
Por Leonardo Sakamoto
 01/06/2001


Plantação de atriplex, espécie que pode ser irrigada com a água salobra, encontrada na maior parte do subsolo do sertão

Toneladas de mantimentos foram enviadas aos flagelados da seca no Nordeste, ao mesmo tempo em que frentes de trabalho tiveram que ser abertas para garantir um mínimo de renda às famílias que perderam a lavoura. E, se não fosse o bastante, muitos deixaram suas casas, migrando na esperança de conseguir emprego.

A descrição acima, que poderia se encaixar em qualquer noticiário, não é de hoje, mas da seca que atingiu o Nordeste entre 1721 e 1727. Portugal, em um esquema de emergência, enviou navios carregados para contornar o problema. De lá para cá, pouco mudou, uma vez que, já na aquela época, optava-se por entregar cestas básicas ao invés de fomentar o desenvolvimento, mantendo o sertanejo eternamente dependente do poder de plantão.

Contudo, a região não só tem saída como pode ser a responsável em puxar o crescimento da nação neste novo século – papel que muitas vezes ficou restrito ao sul maravilha. Projetos já implantados atestam a viabilidade, estudos mostram o que aguarda o Nordeste. Soluções encontradas aqui mesmo, por cabeças e tecnologia tupiniquins. E o melhor de tudo: convivendo em harmonia com o meio ambiente.

Água – Vetor para o desenvolvimento

Por mais espaçados que sejam os períodos de chuva, ela existe no Semi-árido. O problema é que cai de uma só vez, inviabilizando muitas vezes a agricultura comercial. Grande parte dos projetos aponta a construção de estruturas para o armazenamento dessas chuvas como parte da solução.

No rio Capibaribe, o Departamento Nacional de Obras contra a Seca ergueu próximo ao município de Surubim a imponente barragem de Jucazinho. O objetivo é perenizar quase toda a extensão desse curso d`água, imortalizado nos poemas de João Cabral de Melo Neto. O retirante, protagonista de "Morte e Vida Severina", em sua fuga da seca, constatou que o rio, seu guia, muitas vezes desistia de correr. Hoje, Severino teria que fazer o mesmo caminho a nado, desviando das estações de bombeamento que estão sendo construídas.

Porém, deve-se levar em consideração que represas ou canais de distribuição a céu aberto estão sujeitos às perdas com evaporação no Semi-árido, que são muito grandes. Por isso, a tendência é construir reservatórios menores, mas em maior número, interligados e próximos às zonas de consumo.

A forma de captação de chuvas que hoje se tornou presente em muitas comunidades são as cisternas – grandes caixas d`água feitas de alvenaria ou placas de concreto pré-moldado. Um reservatório com capacidade para 12 mil litros pode abastecer uma família de cinco pessoas durante oito meses sem chuva. Em São José da Tapera, interior de Alagoas, que foi considerado pela ONU o município mais pobre do Brasil, a situação começou a mudar com a implantação de uma série de projetos simples, entre eles o da instalação de cisternas pela prefeitura e a organização não-governamental Visão Mundial. O problema é que com a estiagem mais longa, em alguns lugares caminhões-pipa tomam o lugar da chuva. Ou seja, todas as saídas encontradas precisam estar em plena integração.

Ao contrário do que pensa a maioria da população, por baixo do Semi-árido, não corre um rio de água doce. Cerca de 70% da região está localizada sobre formação rochosa – a água, quando existe, fica armazenada entre rachaduras subterrâneas. Em contato com os sais contidos nessas rochas, torna-se salobra – imprópria para consumo. Nos outros 30%, áreas sedimentares, é possível encontrar bons lençóis freáticos. Mas cavar poços nesses locais nem sempre é a melhor saída, pois muitas vezes devem ser feitas captações profundas, de centenas de metros. Para poder utilizar todo o potencial subterrâneo, a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais está realizando um mapeamento de toda a região.

Morador retira água potável de cisterna em São José da Tapera (AL)

Além disso, é impossível tratar de uma solução final para o problema da falta de água em regiões do Nordeste sem envolver o São Francisco. Em 1852, D. Pedro 2º pediu para que o engenheiro Henrique Halfeld realizasse um estudo para transpor as águas do rio além das chapadas entre Pernambuco e Ceará, até o riacho dos Porcos. Nos últimos 150 anos, o projeto surgiu e desapareceu diversas vezes do cenário político nacional, esbarrando em problemas financeiros, tecnológicos ou de interesses de governantes. Com o atual ciclo de seca, que deve ter seu ápice em 2005, a idéia de transpor parte do "rio da integração nacional" para o Semi-árido voltou à tona.

Após o sinal verde do governo, foram feitos estudos e planejamentos, do qual nasceu um polêmico projeto, orçado na época em 1,5 bilhão de reais e de gigantescos impactos ambientais e sociais. Em resumo, a idéia é captar 70 m3/s de água em dois pontos distintos do Velho Chico e bombeá-los por grandes tubulações até rios e reservatórios nos Estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte.

Antes que um balde fosse levantado, a mesma seca fez baixar o nível dos reservatórios das usinas hidrelétricas, colocando o Nordeste à beira de um colapso energético. Moradores das regiões que seriam afetadas protestaram. Hoje, o projeto não está engavetado, mas também não saiu do papel. O que, de certa forma, foi oportuno. Há dúvidas se a quantidade bombeada seria suficiente para promover desenvolvimento, ao mesmo tempo em que alguns temem pela "morte" do rio caso haja essa retirada de água. A população deve aproveitar o momento e decidir o que quer do rio e fazer um "orçamento" da água, planejando o seu uso entre os diversos setores.

Das várias propostas para o São Francisco, a maior delas é, sem dúvida, a do Projeto Semi-árido, da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco. A instituição realizou um balanço completo do rio e de suas potencialidades, apontando as formas mais eficientes de gerar riqueza no sertão com a água.

Segundo Rui Junqueira, coordenador do projeto, poderá se buscar água na bacia do Paraná, do excedente não utilizado no r
eservatório de Furnas, além de terminar de regularizar o próprio rio. Com isso estima-se um aumento de vazão do rio da ordem de 900 m3/s entre Três Marias e Sobradinho. O Velho Chico se transformaria em um grande condutor, levando água para um sistema de reservatórios integrados no Semi-árido para garantir água também ao pequeno produtor. A implantação do Projeto Semi-árido levaria em torno de 40 anos, gerando 15 milhões de empregos diretos e indiretos – números estimados para 2020.

Força do vento utilizada para bombear água de poço em Canoa Quebrada (CE)

Energia – Limpa, acessível e abundante

Remanso, Casa Nova, Sento Sé, Pilão Arcado. As águas da represa de Sobradinho aos poucos engoliram cidades e encheram um dos maiores lagos artificiais do mundo. Esse mar, criado para abastecer um conjunto de usinas hidrelétricas ao longo do médio e sub-médio São Francisco, foi um dos principais responsáveis por impulsionar o desenvolvimento nordestino. Contudo, a falta de planejamento e o atual ciclo de seca pelo qual está passando o Velho Chico levaram os reservatórios aos níveis mais baixos de todos os tempos, colocando a região à beira de um colapso.

Enquanto isso, o Brasil continua deitado em berço esplêndido, ignorando uma abundância de recursos naturais renováveis e não poluentes. O Nordeste é considerado uma das melhores jazidas de vento do planeta, com potencial suficiente para gerar 10 mil megawatts de energia elétrica a partir de usinas eólicas – a mesma quantidade de tudo o que é produzido pelas hidrelétricas, mas sem inundar grandes áreas ou lançar resíduos tóxicos na atmosfera. Ventos constantes, não existência de fortes rajadas na região (garantindo a estabilidade das grandes turbinas) e a pequena turbulência – desgastando menos os equipamentos que na Europa ou nos EUA.

"E é exatamente nos meses de seca do rio que temos as maiores velocidades de vento no litoral", afirma Everaldo Feitosa, vice-presidente da Associação Mundial de Energia Eólica e coordenador do Centro Brasileiro de Energia Eólica. O órgão há dez anos é referência em pesquisa e implantação de tecnologia que, infelizmente, ainda não emplacou no país – há míseros 20,3 MW instalados. Os resultados mais expressivos vêm de Pernambuco, incluindo a ilha de Fernando de Noronha, e do Ceará – que possui a maior central de geração, em Fortaleza. Basicamente, o Brasil está aproveitando cataventos apenas para bombear água de poços. Segundo Feitosa, o fato de existirem excelentes pontos de captação em áreas isoladas, não apenas no litoral, mas também no interior, possibilita que os investimentos mudem de direção e migrem para dentro, abrindo o caminho para a construção de centros de alta tecnologia no sertão.

Devido a fatores como a proximidade com o Equador e o céu limpo, sem nuvens, o Semi-árido nordestino possui mais de 3 mil horas anuais de brilho do sol – estimativa comparável às dos desertos da Austrália e da África. O problema de estar entre os quatro maiores índices de insolação do mundo pode ser revertido em benefício para a própria região.

O açude, que garantia água para o povoado de Malvinas, em Felipe Guerra (RN), estava seco em 2001. Cavou-se uma cacimba para ver se dava para tirar alguma coisa, mas sua água, salobra, só serviu aos animais.

E é isso o que está fazendo o Núcleo de Apoio a Projetos de Energias Renováveis (Naper) da Universidade Federal de Pernambuco, com o apoio de outras entidades. Na região do município de Afogados da Ingazeira, divisa com a Paraíba, o núcleo implantou sistemas de células fotovoltaicas, que convertem a luz do sol em eletricidade para pequenas propriedades rurais. O objetivo é possibilitar a irrigação do solo a partir da água obtida em cacimbas cavadas nos leitos secos de rios. Culturas que se adaptam bem às condições, como a graviola, têm sido produzidas, garantindo renda ao agricultor.

De acordo com Heitor Scalambrini, coordenador do Naper e professor de engenharia da UFPE, o Brasil possui 5 MW de potência instalada de energia solar, sendo que 80% deste total está no Nordeste. Concentrada no interior, também é usada em escolas, residências e iluminação pública. Um potencial gigantesco, pois apenas 40% do total de comunidades rurais são eletrificadas.

Enquanto isso, outra fonte começa a brotar na zona da mata. Desde o século 16, engenhos e usinas produzem açúcar no Nordeste, rodeados pelo mar verde dos canaviais. Muitos dos problemas sociais ainda persistem junto à casa grande e à senzala, mas a cana, que já produziu álcool durante a crise do petróleo na década de 70, descobriu um novo subproduto: a eletricidade.

Há um bom tempo, as usinas produzem a energia elétrica de que necessitam em pequenas centrais, através da queima do bagaço e folhagens da cana. Agora, muitas estão se adaptando para aumentar a geração e jogar o excedente na rede. A Usina Caeté, em São Miguel dos Campos, Alagoas, foi a primeira do Nordeste a vender eletricidade ao sistema – cerca de 2 dos 11 megawatts gerados durante o período de safra. Segundo Maurício Veras, coordenador da área elétrica e de instrumentação, o objetivo é comercializar 12 MW em cinco anos. "Não é necessário construir nada, apenas trocar os equipamentos por modelos mais eficientes." O melhor é que toda a tecnologia utilizada na geração a partir do bagaço foi desenvolvida aqui no Brasil, na cidade de Sertãozinho, interior de São Paulo.

Há várias formas de levar a energia que o Nordeste precisa para crescer. Sem ela, todas as outras iniciativas são inúteis ou impensáveis. Projetos existem, mas ainda são pioneiros. E assim como foi com a o bagaço de cana, para reduzir o preço da energia eólica ou solar, é preciso investimento público pesado em pesquisa e na indústria. O que não é pecado, pois o modelo de subsídios para energias não poluentes é adotado com sucesso em outros países. A médio e longo prazos, o Nordeste seria capaz de construir usinas em localidades remotas, que injetariam energia diretamente em fábricas ou fazendas, sem gastos com transmissão. Isso criaria as condições necessárias para a instalação de pólos de desenvolvimento em pleno sertão e daria uma folga ao Velho Chico, que então, aliviado, dedicaria-se à irrigação.

Tanque para criação de camarões em Poço Redondo (SE), desenvolvido em comunidades pelo Projeto Xingó

Conhecimento – tecnologia nacional transformando a realidade

Não adianta apenas garantir água e energia. Há dezenas de projetos espalhados que não deram certo porque esqueceram de repassar tecnologia à população. E o Nordeste possui diversos exemplos de centros de pesquisa que trabalham nos problemas da região – muitas vezes de formas inusitadas. Em Morro Vermelho, município de Poço Redondo (SE), famílias estão utilizando a água salobra do subsolo, imprópria até para o gado beber, em criações de camarões de água salgada. Enfim, o sertão vai virar mar.

O responsável pela implantação dessa idéia inovadora é o Programa Xingó, um instituto que tem como objetivo abrir uma fronteira de desenvolvimento auto-sustentável no Semi-árido. Atua na região do rio São Francisco, entre os Estados de Pernambuco, Bahia, Sergipe e Alagoas em um total de 29 municípios.

A criação de camarão branco vem dando bons resultados, pois as altas temperaturas aceleram as taxas de crescimento do animal – que atinge o tamanho comercial em quatro meses. "No sertão, há muitos poços que estão parados, por ter a salinidade muito alta, e que poderiam ser bem utilizados", ressalta Ruy Cardoso Filho, engenheiro de pesca responsável pelo projeto. A pouca quantidade de água inviabilizaria programas de grande porte, mas é perfeita às necessidades dos pequenos produtores.

A criação faz parte de um projeto maior, de uso múltiplo de águas subterrâneas, com processo de dessalinização para consumo humano e plantação de vegetais que resistem bem à água salobra. "O projeto melhorou nossa vida em 100%. Antes, a gente vendia as vacas para comprar água", conta Evaldo Correia dos Santos, morador de Morro Vermelho.

O pólo formado pelas cidades de Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), separadas por uma ponte sobre o São Francisco, é pioneiro em culturas irrigadas. Quem chega de avião vê um tapete verde de plantações se abrindo, cercado ao longe pelo amarelo-ocre do sertão. As condições do clima, funcionando como uma estufa natural, e a grande disponibilidade de água do rio proporcionam uma das melhores condições do país para o desenvolvimento da fruticultura. Quanto mais seco, melhores as safras de uva para se produzir vinho. Prova disso é que entre os municípios de Petrolina e Lagoa Grande já há oito vinícolas instaladas, fabricando tintos, brancos suaves e secos e espumantes.

Eugênio da Silva, 15 anos, mostra um maracujá. Ele toca a produção irrigada de frutas da família na ilha de Assunção, rio São Francisco, em Cabrobó (PE).

A região também é a maior exportadora de manga do país, detendo 90% do mercado, com 14 empresas especializadas apenas no mercado norte-americano, obedecendo as normas fito-sanitárias exigidas. A agroindústria alimentícia, que cria derivados dos produtos agropecuários ao invés de vendê-los ao natural, aumentando o seu valor de mercado, encontra nas margens do São Francisco um campo vasto e pouco explorado.A Agência Regional de Agronegócio Familiar do Sub-Médio São Francisco atua na região passando o conhecimento necessário para que os proprietários possam administrar seus negócios, além de assessorá-los na comercialização direta ao comprador.

Os recursos estão aí, a estrutura começa a despontar. Mas para qualquer solução definitiva será necessário destinar recursos, a fim de tocar as obras paradas e abrir novos campos de desenvolvimento – o que já poderia estar acontecendo com o dinheiro de planos emergenciais que apenas garantem a sobrevivência até a próxima seca. Enquanto isso, a população espera a possibilidade de desenvolver-se por conta própria, sem depender de assistencialismos ou de trocar um voto por um par de chinelos.

Nordeste, 2001

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