O pássaro carão quando canta no sertão é sinal de muita chuva. Contrariando todas as previsões meteorológicas de um ano seco, a ave deu os seus primeiros piados no dia 11 de janeiro de 2004, trazendo fortes chuvas para a região e alegrando os sertanejos que gritavam alegremente: “canta carãozinho de Nossa Senhora!”, numa espécie de agradecimento à chegada daquela situação hidrológica salvadora que fazia anos não acontecia. Passados 20 dias de intensos aguaceiros, o resultado foi desastroso: um sem-número de açudes estourados, estradas intransitáveis, muito sofrimento e, infelizmente, mortes de muitos nordestinos.
A situação está sendo comparada àquela verificada em 1924, quando ocorreu cataclismo semelhante no Nordeste, vindo ao encontro da crendice popular de que os anos terminados em 4 trazem bons invernos (os anos de 1914, 1924, 1964 e 1974 foram muito chuvosos e não houve seca propriamente dita em nenhum dos outros anos terminados em quatro). Mas o fato é que já existe uma boa parcela da população nordestina munida de espingardas de grosso calibre para calar, de vez, a voz daquela ave agora indesejada. Não podia ser diferente: em curto espaço de tempo, choveu em algumas regiões do Nordeste, dez vezes a média histórica prevista para o mês de janeiro. Açudes como o Boqueirão na Paraíba, que abastece Campina Grande, com cerca de 420 milhões de m³, e o Castanhão no Ceará, com 6 bilhões de m³, próximo a Fortaleza, encheram com as fortes chuvas, fatos inusitados pois no mês dezembro de 2003 estavam praticamente vazios. Foi realmente um dilúvio bíblico, o que veio a provocar estado de calamidade pública em quase todo o Nordeste.
Para nós pesquisadores que lidamos no dia-a-dia com esses assuntos, a situação criada no Nordeste não foi motivo de surpresa. Estranhamos apenas a intensidade com que o fenômeno aconteceu. A explicação foi a seguinte: ocorreram simultaneamente uma frente fria vinda do sul do país, com grande energia, que se fixou sobre o Nordeste, aliada à antecipação, em janeiro, da ação da zona de Convergência Inter-Tropical (massa de ar carregada de umidade que chega ao Nordeste proveniente da região do equador e que normalmente costuma agir no mês de fevereiro), somada ainda ao aumento de temperatura do Atlântico sul, que causa intensa evaporação e proporciona as instabilidades condicionais, levadas, invariavelmente, pelos ventos alísios ao interior da região. As chuvas provenientes desses três fenômenos somados, ao caírem em regiões de geologia cristalina, onde os escorrimentos superficiais são maiores do que a proporção de água que se infiltra no solo, causaram as fortes enchentes divulgadas pela mídia nos últimos dias e que assustaram todos os brasileiros.
Cremos que acerca dessas questões alguns pontos precisam de um maior esclarecimento. Primeiramente, é preciso alertar a população que as fortes chuvas caídas não acabaram com os problemas hídricos do Nordeste. Apenas alguns aspectos foram atenuados. A geração de energia, por exemplo, foi um desses aspectos. Ao final do ano de 2003, o reservatório nordestino (somatório volumétrico de todas as represas responsáveis pela geração de energia no Nordeste) chegou ao seu ponto crítico (com cerca de apenas 10% de seu volume útil), sendo necessário o acionamento do parque de termelétricas, em apoio às hidrelétricas, para o suprimento da demanda de energia da região. E essa conta ficou demasiadamente cara para a população usuária da energia, pois ela já pagava pela possibilidade de vir a usar o sistema alternativo de térmicas (o chamado “seguro apagão”) e, atualmente, paga também pelo seu uso, o chamado encargo de aquisição de energia emergencial, chegando a acrescer, em sua conta de energia, um percentual de cerca de 2% do valor do consumo. Cremos que o governo Lula, um governo dito popular, teria que chamar para si a responsabilidade do pagamento desses tributos, assumindo-os em sua totalidade e não transferindo-os para o povo, o qual, diga-se de passagem, é o menos culpado pela existência de tais problemas. Sobre o assunto, temos conosco três discursos proferidos, no Senado Federal, pelo Senador José Jorge, ex-mimistro de Minas e Energia do governo Fernando Henrique, pronunciamentos esses relacionados aos programas estratégicos para o aumento da oferta energética do país; aos cenários para os próximos anos em termos de oferta energética e a uma visão futurista da situação energética do Nordeste.
As leituras que fizemos de tais pronunciamentos nos deram a nítida impressão de que, com os investimentos havidos em termos de construção de linhas de transmissão, por exemplo, tinham sido resolvidos de certa forma, e até com folga, os problemas energéticos do Nordeste. Pelo visto, a contar da necessidade do acionamento das térmicas, não foi isso o que sucedeu. Ao nosso modo de entender dos pronunciamentos do senador apenas destacaríamos como de real importância o seu reconhecimento de que existe, na bacia do rio São Francisco, um indesejável risco hidrológico que precisa ser tratado com o devido cuidado. Nesse ponto, sua excelência tem razão. As chuvas do sul de Minas Gerais, responsáveis diretas pelo abastecimento da represa de Sobradinho (principal fonte regularizadora de vazão do São Francisco) ocorreram em menor intensidade quando comparadas àquelas ocorridas no Nordeste nos últimos dias, ocasionando um preenchimento de cerca de 25% do volume útil da mesma, o que obrigará a CHESF a proceder a gestão dos volumes existentes no seu complexo gerador com muita parcimônia, para não se ter que voltar, em futuro próximo, a se utilizar o parque gerador de termelétricas, onerando mais uma vez a vida do nordestino que já anda tão sacrificada. É viver para crer.
Outro aspecto importante a ser mencionado diz respeito ao atual cultivo de culturas de subsistência, principalmente milho e feijão, aproveitando-se a umidade do solo proveniente do atual período de enxurradas da região. Como houve antecipação do plantio com as chuvas de janeiro (no Carirí paraibano os meses mais chuvosos são março e abril) é possível que haja problemas na condução dessas culturas. Normalmente, as sementes precisam de umidade suficiente para germinar, desenvolver-se, florir, frutificar e chegar ao ponto de colheita. Não temos bola de cristal para fazer uma avaliação mais precisa do que irá acontecer com essas sementes lançadas ao solo fora da época de plantio. As que não se perderem por excesso de água (morte do embrião por encharcamento) correrão o risco de não concluírem o seu ciclo vegetativo, por descompasso na caída de novas chuvas. A quebra desse ciclo, com enormes prejuízos na produção, costuma ser um fato corriqueiro no Semi-árido, situação essa que recebe a denominação de seca verde.
Finalmente, lembraríamos o aspecto do abastec
imento das populações nordestinas. Verificamos que houve um certo alento, pois a situação era realmente calamitosa e desesperadora, com boa parte da região sendo assistida por frotas de caminhões-pipa, com os problemas financeiros e políticos disso advindos e conhecidos por todos os nordestinos. Precisamos reconhecer em primeiro lugar, como alternativa válida, a importância das grandes represas para o abastecimento das populações. Em Campina Grande, por exemplo, vai-se deixar de falar sobre racionamento d´água pelo menos nos próximos três anos. Alguns dias de fortes chuvas foram suficientes para fazer a represa sangrar e desativar o programa de distribuição de água com caminhões–pipa existente em toda a região. No entanto, as chuvas trarão novamente à baila as questões da transposição do rio São Francisco para o abastecimento de 6 milhões de pessoas no Nordeste. A certeza disso prende-se ao fato de que o ano de 2004 será eleitoral e, portanto, sujeito às espertezas de alguns candidatos que fazem desse polêmico projeto o seu palanque de luta, transformando as possibilidades de abastecimento em uma crescente fonte de votos provenientes do sedento povo nordestino. Seguramente haverá candidato que irá colocar até o mapa da transposição em sua propaganda eleitoral. Ao invés de esse gesto ser considerado um exemplo de uma boa plataforma política, o mesmo deveria ser enquadrado como crimes eleitoral e ambiental, além de uma incompetência econômica de graves conseqüências. O que seria mais viável técnica e economicamente, o uso do potencial hídrico existente em cada estado nordestino (o atual momento está muito propício para se fazer esse tipo de avaliação, tendo em vista os aqüíferos estarem praticamente cheios) ou a transposição das águas do São Francisco para locais distando cerca de 500 km das margens do rio?
Há anos estamos denunciando essas questões polêmicas e a impressão que temos é de que poucos as levam em consideração. Existe a tendência de se continuar a vender a ilusão de que a transposição é a única forma de resolver os problemas do abastecimento nordestino, e o povo, estupidamente, continua a acreditar nisso. Em 2004 abriram-se enormes voçorocas sobre essas questões cujo destino só se elucidará no futuro.
João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.