Um dos principais objetivos da transposição do rio São Francisco é o de possibilitar a segurança hídrica da região Nordeste, através do que está sendo chamado de sinergia dos seus principais reservatórios. A idéia das autoridades é abastecer esses reservatórios com as águas do Velho Chico e dar-lhes possibilidade de manter os volumes necessários ao pronto atendimento das demandas hídricas da região.
Sem deixarmos de reconhecer as boas intenções do atual governo ao querer transferir as águas do rio São Francisco, a todo custo, para uma região de suposta escassez, entendemos que esse processo é desnecessário, ambientalmente danoso e demasiadamente caro, diante das possibilidades existentes de acesso ao precioso líquido em cada um dos Estados nordestinos. Além do mais, qual seria a solução mais viável para o Nordeste em termos técnicos e econômicos: utilizar as águas já existentes na região, através de uma política adequada de gerenciamento desses recursos, ou retirá-las das margens do rio São Francisco, a 500 km de distância, para o abastecimento de boa parte de sua população? Na nossa ótica, a primeira alternativa é a mais sensata.
De acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), do total de precipitação pluviométrica caído anualmente no Nordeste, estimado em cerca de 700 bilhões de m³, 642 bilhões são consumidos pelo fenômeno da evapotranspiração e cerca de 36 bilhões são despejados no mar, em virtude do intenso escoamento superficial existente. O que resta desses quantitativos volumétricos são cerca de 22 bilhões de m³, os quais efetivamente são manejados pelos que habitam a região.
A esse respeito, o geólogo nordestino Aldo Rebouças afirma em seus trabalhos que bastaria o aproveitamento de 1/3 dos volumes escoados e manejados para o efetivo abastecimento de toda população nordestina (hoje estimada em 47 milhões de pessoas), com uma taxa de 200 litros por pessoa/dia e para a irrigação de cerca de 2 milhões de hectares, com uma taxa de 7.000 m³ por hectare/ano. Na lógica de Rebouças, a água no Nordeste existe, faltando apenas o seu indispensável gerenciamento para o atendimento das necessidades do povo.
A existência desses volumes é confirmada através do potencial acumulado nos açudes nordestinos. Estima-se em cerca de 70 mil o número de açudes no Nordeste, os quais acumulam um potencial de cerca de 37 bilhões de m³, considerado o maior volume represado em regiões semi-áridas do mundo.
O doutor em recursos hídricos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte João Abner, avaliando as disponibilidades hídricas dos estados que receberiam as águas do rio São Francisco (Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba), chegou à conclusão de que no Ceará, por exemplo, existe uma oferta hídrica potencial de 215 m³/s em suas bacias hidrográficas e uma demanda atual de 54 m³/s. No Rio Grande do Norte existe uma oferta potencial de 70 m³/s e uma demanda de 33 m³/s e, por sua vez, na Paraíba, um dos Estados mais problemáticos da região em termos de garantias hídricas, existe uma oferta potencial de 32 m³/s e uma demanda atual de 21 m³/s. Essas informações confirmam que não há escassez hídrica nos Estados receptores, não se justificando, portanto, o ingresso das águas do rio São Francisco naqueles Estados para fins de abastecimento.
No tocante aos usos das águas das principais represas nordestinas, o Ceará tem-se destacado, na região, como um dos Estados mais ricos em termos de reservas acumuladas em superfície, sendo pioneiro no trabalho de interligação de suas bacias hidrográficas, trabalho esse que reputamos da maior importância, e que deveria ser seguido pelos demais estados do Nordeste. A idéia, no Ceará, é abastecer regiões com problemas de falta d´água através do auxílio de outras bacias existentes no estado que estejam em melhores condições de fornecimento.
Além do mais, o Estado, detentor de cerca da metade dos volumes acumulados nas represas nordestinas, com cerca de 18 bilhões de m³, espalhados em 8.000 açudes, vem manejando suas águas de forma coerente e abastecendo as populações de acordo com as suas necessidades. O Estado possui a maior represa do Nordeste (Castanhão), com cerca de 6,7 bilhões de m³, a qual, sozinha, resolveria todos os problemas de abastecimento da Grande Fortaleza e do Baixo Jaguaribe, isso por gerações.
O Rio Grande do Norte possui a segunda maior represa do Nordeste (Armando Ribeiro Gonçalves), com cerca de 2,4 bilhões de m³. Essa represa tem condições de abastecer toda a população norte-rio-grandense nos próximos vinte anos.
A Paraíba, possui as represas Coremas / Mãe-d´água, as quais, juntas, acumulam um volume estimado em cerca de 1,3 bilhões de m³. Essas represas resolveriam os problemas de abastecimento das populações de todo o sertão paraibano por um bom período de tempo. Além do mais, o Estado da Paraíba possui o reservatório de Boqueirão, com capacidade máxima de acumulação de cerca de 438 milhões de m³, que abastece a cidade de Campina Grande e outras 8 pequenas cidades vizinhas. A região metropolitana de Campina Grande passou por sérios problemas de abastecimento, após o período de seca entre os anos de 1997 e 1999, agravados, ainda, pela falta de gestão do reservatório e da bacia do Alto Paraíba, com a implantação de sistemas de irrigação mal conduzidos (consumiam 1.000 l/s, no mínimo), além de uma descarga de fundo descontrolada de cerca de 200 l/s.
Esses problemas no abastecimento de Campina Grande justificaram, na época, o projeto de transposição das águas do rio São Francisco para o interior do reservatório de Boqueirão, através do eixo leste do projeto, proporcionando-lhe a sinergia hídrica necessária à garantia da água para o abastecimento da região. Resolvidos os problemas dos gastos d´água desnecessários, através de um gerenciamento coerente em toda a sua bacia, a represa se encontra, atualmente, com mais de 80% de seu volume preenchidos e tem uma capacidade de regularização, com 100% de garantia, de 1.781 l/s.
A população atual atendida pelo reservatório é de 470.000 habitantes, aproximadamente, dos quais 367.874 só em Campina Grande. Segundo a Cagepa, concessionária do serviço de abastecimento e esgotamento sanitário da Paraíba, a vazão bruta retirada do reservatório para abastecimento humano, à taxa de 200 litros por habitante por dia, oscila, hoje, em torno de 1.000 l/s. A projeção da demanda para o ano de 2023 (população total de cerca de 530.000 habitantes) atingiria 1.512 l/s. Portanto, Campina Grande e os demais municípios vizinhos atendidos
pela represa de Boqueirão têm água suficiente para beber pelo menos nos próximos 18 anos, não se justificando, portanto, a realização do projeto de transposição do rio São Francisco para aquela região.
Finalmente, circulou na internet a informação de que as autoridades estão pretendendo estender as transferências das águas do São Francisco até o Estado do Piauí. Fala-se em resolver os problemas de abastecimento da região de São Raimundo Nonato e beneficiar onze municípios vizinhos. Essa informação é absurda se levarmos em consideração a grande riqueza hídrica existente nesse Estado. O Piauí tem o Parnaíba, o segundo maior rio em importância no Nordeste (o primeiro é o Velho Chico); há 2 bilhões de metros cúbicos de água acumulada em represas que não estão tendo a mínima utilidade; possui a maior reserva de água de subsolo da região, estimada em cerca 70% de toda a água existente no sedimentário nordestino e existe, no município de Cristino Castro, no vale do rio Gurguéia, uma infinidade de poços jorrantes, não se sabendo ao certo o destino que é dado a essa água. Somadas, essas fontes dão ao Piauí o privilégio de ser o Estado hidrologicamente mais rico do Nordeste.
É evidente, após esse pequeno relato, que o Nordeste tem muita água, faltando apenas o indispensável gerenciamento para que se possa ter acesso a ela. Diante dessa constatação, parece-nos existir, na região, a contraditória impressão de se estar morrendo de sede no deserto com água no joelho.
João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordetina.