Uma audiência pública na Câmara dos Vereadores marcada para discutir a polêmica dos catadores de materiais recicláveis de São Paulo foi cancelada de última hora nesta quarta-feira (28). A razão: a Prefeitura de São Paulo ainda não tinha fechado uma proposta para o novo plano de coleta seletiva do município – feita atualmente por caminhões da administração pública, por cooperativas e por catadores que trabalham autonomamente. No início de agosto, um comunicado oficial previa que, até o final de setembro, os catadores teriam que deixar de trabalhar no centro expandido da capital. Organizados, os catadores conseguiram pressionar o secretário municipal de Serviços e Obras e subprefeito da Sé, Andrea Matarazzo, e reverter o processo, criando uma comissão para dialogar com o poder público (leia matéria “Catadores temem entrada de empreiteiras em São Paulo”). A audiência na Câmara prevista para esta quarta fazia parte deste processo de discussão com a sociedade sobre um assunto que lhe é caro.
Inusitadamente, no entanto, o secretário Matarazzo convocou a grande imprensa para apresentar o novo plano – que teoricamente não estava pronto. O documento prevê a ampliação a partir de outubro de 52 para 66 os distritos com coleta seletiva. Atualmente, menos de 1% das 204 mil toneladas de lixo produzidas por mês pela população passa pela reciclagem (feita em 14 centrais de triagem, onde trabalham cerca de 700 catadores), e os caminhões da coleta seletiva funcionam com 20% de sua capacidade. A nova proposta é que as centrais sejam melhor equipadas, passem a trabalhar em três turnos e abriguem mais trabalhadores. A previsão da prefeitura é a de que este número poderia chegar a 2.700 pessoas.
São mudanças que afetam diretamente as cooperativas ligadas à administração pública, mas que em princípio não passam pelas cooperativas e catadores independentes. Segundo nota divulgada no próprio site da Prefeitura de São Paulo, “as cooperativas e catadores avulsos operam fora desse sistema em condições inadequadas de trabalho”. O novo modelo teria o objetivo de “atingir maior eficiência do sistema de coleta de lixo na cidade”.
Mas a proposta, apesar de estar sendo discutida em reuniões com as cooperativas conveniadas – nesta semana a Secretaria de Serviços e Obras realiza reuniões diárias divididas por zona da cidade analisando suas particularidades – está longe de ser um consenso. Uma das críticas dos catadores que participaram do anúncio do plano à imprensa nesta quarta é em relação às fusões que devem acontecer nas centrais de triagem.
“O contrato inicial, da época da gestão Marta, previa a abertura de 31 centrais. Foram abertas somente 14 e agora o Serra quer fundi-las em 7 para otimizar o espaço público. Acontece que isso acaba com a tradição autônoma de organização e trabalho dos catadores. Se a prefeitura quer incluir mais pessoas, que abra mais centrais. Não basta fundir as cooperativas porque assim novas pessoas não se agregam. O processo de encontrar novos atores não é simples”, pondera Márcia Abadia Martins.
Catadora há dois anos, cooperada da central que fica na Vila Cruzeiro, região de Santo Amaro, que deve ser fundida com a de Miguel Yunes, localizada na mesma região, Márcia conta que antes era auxiliar administrativa. Quando ficou desempregada, começou a coletar materiais recicláveis. Uma pesquisa divulgada recentemente pela Secretaria do Trabalho mostrou que cerca de 60% dos catadores tiveram por última ocupação um emprego com carteira assinada e 55,2% estão a menos de quatro anos na rua. Márcia é uma dessas 20 mil pessoas que aprederam a sobreviver da coleta seletiva.
Segundo ela, a cooperativa de Miguel Yunes é formada por agentes que faziam a coleta seletiva nas lojas do Pão de Açúcar e hoje enfrenta problemas de gestão. “Agora o prefeito quer que a gente se funda pra resolver este problema. É como se quisesse matar algo que já nasceu pra começar de novo. Nossa lógica é outra. As empresas querem atropelar o trabalho do catador; elas não conhecem o trabalho da gente. Queremos andar sozinhos, ser auto-suficientes. Nós conquistamos isso sozinhos”, afirma.
Na opinião de Igor Calheiros dos Santos, integrante do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, o poder público agora se mostrou sensível e está sentando para discutir o modelo do centro da cidade com as cooperativas. Alegando que atrapalhavam o trânsito e faziam sujeira, a decisão original dos tucanos era proibir inclusive a circulação das carroças de coleta na região central de São Paulo – o que inviabilizaria o trabalho das cooperativas e dos carroceiros independentes já que grande parte dos materiais recicláveis é produzida pelas empresas e escritórios que lá têm sede. Ainda que os trabalhadores não sejam expulsos do centro da cidade, eles acreditam que a atuação das empreiteiras pode deixá-los sem material disponível para a coleta.
“Em termos gerais, o que a prefeitura quer agora é unir o útil ao agradável. Acha que a gente deve triar mais, trabalhar mais, que é preciso colocar mais gente nas centrais. O que eles querem é uma triagem eficiente, mas nós chamamos a nossa de solidária”, explica Santos. “A gente já não tem nada. Se tirarem isso da gente, não sei o que acontece”.
Nesta quarta, o secretário Andrea Matarazzo afirmou que o modelo de gestão das centrais não é imposto, e sim aberto ao catador avulso que queira passar a participar. No entanto, não prevê como esses carroceiros e os moradores de rua podem se incluir neste processo. “O plano precisa continuar a ser discutido com essas pessoas, porque, além de não prever a inclusão de novos catadores, muita gente que já trabalha com isso vai sobrar neste processo de mudança e de fusões. A tentativa da prefeitura é controlar o mercado dos catadores, mas eles precisam resistir, organizadamente e passivamente. O fato do secretário colocar a possibilidade de adesão voluntária ao modelo passa um pouco por isso, por contar que alguns não vão querer ir para as centrais. Mas muitos vão sobrar e os catadores precisam se posicionar frente a isso”, acredita o Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua.
Da Agência Carta Maior