No dia 25 de outubro de 1975, quando o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado nos porões do Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna), um basta definitivo da sociedade foi dado à tortura promovida pelo regime militar. Num protesto silencioso, mais de 8 mil pessoas se reuniram na Catedral da Sé para lembrar o nome do diretor de jornalismo da TV Cultura, numa cerimônia que reuniu o rabino Henry Sobel, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e o pastor presbiteriano Jaime Wright. Ali, uma página foi virada em direção à reabertura e redemocratização do país.
No dia 17 de janeiro seguinte, outro suicídio forjado nas dependências do Doi-Codi. Desta vez, a vítima seria o operário Manuel Fiel Filho. O então presidente general Ernesto Geisel substitui o general Ednardo D’Ávila Mello, comandante do II Exército, e a ditadura dá mais um passo em direção ao seu fim. A tortura praticada pelo Estado, no entanto, não se encerrou. Ganhou outras formas e outras vítimas. Mas ainda é presente de maneira institucionalizada no país e lembrada na semana em que o Brasil homenageia os 30 anos da morte de Vlado.
“Através do Vlado, está sendo lembrada a memória de toda uma geração que lutou pela democracia, que entregou a vida inclusive. Mas hoje ainda temos muitos Vlados anônimos, ainda feitos pela polícia e pelos órgãos de repressão. A diferença é que hoje os Vlados são os despossuídos, jovens e negros”, acredita Rose Nogueira, do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo. O Grupo tem feito uma campanha solicitando que o presidente Lula diga publicamente que é preciso acabar com esta prática no país.
“Não podemos deixar isso ser esquecido. Nós continuamos na luta pela reabilitação desses mortos, pela procura dos corpos da época da ditadura, mas temos que lembrar que ainda existe tortura no Brasil. Da mesma forma que os direitos pelos quais Vlado lutava – como o direito à educação, à saúde, à alimentação, ao teto, à vida e à igualdade – ainda não foram conquistados para todos”, diz Rose, que foi presa na década de 60 e trabalhava com Vladimir Herzog na TV Cultura. Ela estava na redação quando Herzog a chamou para contar que a polícia estava em sua casa, com sua esposa Clarice e seus dois filhos pequenos.
Na opinião do jornalista Sérgio Gomes, que foi preso na mesma época em que Herzog e é um dos organizadores das homenagens desta semana, o que existe hoje é um processo silencioso de liquidação de muitas pessoas. Se antes havia a censura dos meios de comunicação, que foram, por exemplo, proibidos de noticiar o assassinado de Vlado, hoje a imprensa se cala diante dos crimes que ainda são cometidos pelo Estado.
“O Vlado não morre mais; deu sua vida e gerou vida. E hoje está encarnado numa criança de 13 anos que não tem ninguém por ele. Todos os dias nas delegacias de polícia, nas Febens, nas casas de custódia pessoas são torturadas pelo Estado. O governador Geraldo Alckmin devia ser cobrado por uma política que não admita tortura. Mas há uma insuficiência da sociedade brasileira, que não se mexe, e dos meios de comunicação, que não tratam disso”, afirma Gomes.
Silêncio quebrado
O silêncio cobrado pelos defensores de direitos humanos e amigos de Herzog foi quebrado por milhares de vozes que se reuniram no último domingo (23) na Catedral da Sé, em São Paulo, para reviver a missa que aconteceu após o assassinato de Vlado no dia 31 de outubro de 1975. O ato inter-religioso, pela paz e pela vida, foi coordenado pelo arcebispo emérito de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, e pelo presidente do rabinato da Congregação Israelita Paulista Henry Sobel, que 30 anos atrás participaram da celebração em homenagem ao jornalista. Desta vez, no lugar de um protesto silencioso, o Coral de 1.000 Vozes, sob a regência do maestro Martinho Lutero, encheu as naves da catedral. Vestidos de branco, os coristas cantaram músicas gospel, de tradição indígena e judia, lembrando a religião do jornalista.
Ao lado de Dom Paulo e Henry Sobel, representantes de outras 15 religiões e credos. Monges pediram respeito às diferenças; hare krishnas pediram paz na terra, nas águas, nas montanhas, florestas e entre seres humanos; budistas disseram que o caminho da paz é o da não violência; e luteranos e evangélicos se somaram para dizer que a fé não pode estar deslocada da luta pelos direitos humanos. “Lembremos os tantos mártires que lutaram e morreram pela sobrevivência de suas famílias. Não sabemos seus nomes, mas ainda hoje há muitos”, disse mãe Rita de Cássia, que falou em nome dos umbandistas.
A socióloga Fátima Jordão, amiga de Clarice e Vlado, contou emocionada que reviveu minuto a minuto a cerimônia de 30 anos atrás. “A importância dessa lembrança é que houve uma reação muito forte da sociedade e dos jornalistas. Aquilo foi uma virada de página, foi um basta e é um lembrete para as autoridades que abusos contra a liberdade são intolerados até hoje. Foi um ato de intolerância em relação à intolerância. Mas a tortura ainda é praticada hoje. Vivemos um clima de liberdade política e, ao mesmo tempo, um enorme clima de restrição de cidadania. E esse ato deve lembrar que essa cidadania deve ser ampliada nos horizontes que o próprio Herzog gostaria”, acredita Fátima.
Outro que reviveu e se emocionou com a cerimônia foi Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo em 1975. Na época com seis mil associados, o sindicato foi o ponto de partida do protesto e da reação pública ao assassinato de Herzog. Antes da morte de Vlado, onze jornalistas já haviam sido presos – e mais de 115 sindicalistas e militantes –, sem que nenhuma denúncia fosse feita.
“Não se reagia à altura às notícias de corpos entregues às famílias com o pedido para que o sepultamento fosse feito em silêncio. Os jornais eram coniventes e diversos apoiaram o golpe militar. Com a morte de Vlado, as coisas começaram a mudar. O sindicato divulgou uma nota dizendo que as autoridades eram responsáveis pela integridade do preso que tinham sob sua guarda. E na sequência todas as redações publicaram anúncios fúnebres. Seis dias depois, o culto na Sé aconteceu a despeito das 383 barreiras policiais que foram colocadas na cidade. A partir daquele momento, a ditadura começou a cair”, conta Audálio Dantas. “Hoje, no entanto, lembramos que, se naquele momento começaram a acabar com a tortura dos aparelhos políticos, milhões de pessoas inda hoje sofrem essa tortura nas delegacias de polícia. E a sociedade é responsável por isso”, acredita.
Antes da leitura emocionada por Clarice Herzog de um poema de Dom Hélder Câmara, arcebispo emérito de Olinda morto em 1999 – presente na celebração de 1975, mas silenciado na época pelo medo da repressão –, o rabino Henry Sobel reafirmou o compromisso de todas as religiões ali presentes de combaterem as violações de direitos humanos.
“Assumimos o compromisso de nunca mais calar-nos pois o silêncio é o mais grave dos pecados. Ele só beneficia o agressor e não a vítima. Aprendemos com Vlado que é preciso agir e reagir contra a injustiça. Preservar dentro de nós o sentimento de indignação e inconformismo perante a violação dos direitos alheios. Quer sejamos cristãos, judeus, muçulmanos ou até mesmo ateus, digamos não à violência institucionalizada. Inspirados pelo legado do Vlado, digamos sim à paz, aos direitos humanos, à dignidade de todos”, conclui Sobel.
Deste que pôde ser definido como um reencontro de velhos combatentes – estavam presentes Plínio de Arruda Sampaio, o deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh, João Batista de Andrade (diretor do documentário recém-lançado “Vlado – 30 anos depois”), os colegas de Vlado Luis Weiss e Frederico Pessoa da Silva, entre outros – ficou o pedido para que a juventude de hoje não abra mão de um combate que ainda precisa ser feito. Sempre precisará.
Na noite desta terça-feira (25) será entregue o XXVII Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Direitos Humanos. A Carta Maior receberá uma menção honrosa pelo trabalho que vem realizando na área.
Da Agência Carta Maior