Caracas – Há 25 anos, a hegemonia política, econômica e ideológica conseguiu apagar do cenário internacional o debate sobre uma reforma agrária que de fato garantisse o direito dos povos a produzirem seus alimentos. Em paralelo a isso, vimos o aumento dos trabalhadores rurais sem terra, da competitividade acerca dos recursos naturais, da não diminuição da concentração de terra – há países que apresentam situações iguais ou piores das que apresentavam na década de 60 – e da reduzida presença do Estado no meio rural. Os ventos do século XXI, no entanto, começam a soprar de forma a reverter este processo, pelo menos na América Latina, e a trazer o debate sobre a reforma agrária de volta para a agenda política internacional.
No ano passado, o Fórum Mundial da Reforma Agrária reuniu movimentos sociais de 60 países em Valência, na Espanha, pela defesa do reconhecimento dos direitos dos povos de terem acesso à terra, aos recursos naturais e a produzirem seus alimentos. As organizações camponesas passaram então a uma ofensiva global, com capacidade de lançar alternativas concretas para a temática.
“Defendemos uma reforma agrária integral, que venha a romper com o modelo de desenvolvimento em curso. Isso é extremamente importante para a continuidade na vida mesmo no meio urbano, para sobrevivência das culturas tradicionais, para a preservação do meio ambiente e para, sobretudo, garantir a soberania e segurança alimentar. Vai além da democratização da terra; é um novo paradigma de produção com valores humanos e não só produtivistas”, descreve Alberto Ercílio Broch, vice-presidente da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Agricultura).
Um balanço das experiências internacionais de políticas agrárias mostrou que uma reforma agrária não é sustentável sem o acesso à terra não for acompanhado de políticas de estímulo à permanência no campo, políticas ambientais, de acesso ao conhecimento e de renda. De políticas, portanto, que representem um passo em direção à cidadania.
“É impossível pensar em estratégias de desenvolvimento real para países como o Brasil enquanto não tivermos capacidade de oferecer uma forma de ocupação democrática da terra para a maioria do nosso povo”, afirmou o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto, no painel de que participou quinta-feira (26) no Fórum Social Mundial em Caracas. “Temos tarefas não resolvidas no Brasil, como a questão do acesso à terra das comunidades indígenas e quilombolas; ainda precisamos incorporar questões de gênero neste debate. Tudo isso faz parte do esforço que estamos fazendo e está presente na agenda que pretendemos seguir durante a Conferência Internacional em Porto Alegre”, disse Rosseto.
Em seis semanas, a capital gaúcha receberá delegados de todos os países participantes da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura para discutir temas como o acesso dos mais pobres à terra como forma de combate à fome, a capacitação das comunidades rurais visando a gestão sustentável dos recursos naturais, a relação entre reforma agrária e justiça social, e a soberania alimentar. Depois de 27 anos desde a última conferência da FAO sobre o tema, o encontro em Porto Alegre é uma tentativa para que a questão volte a fazer parte da agenda das Nações Unidas. Pela última vez, em julho de 1979, 145 países se encontraram para estabelecer os princípios a serem colocados em prática rumo ao desenvolvimento sustentável dos países. Princípios, no entanto, que foram deixados de lado na década de 80 no bojo dos programas de ajuste estrutural.
“O objetivo agora é que a FAO retome este papel e ajude a construir caminhos de convergência e propostas concretas para que os Estados recuperem seu papel e não deixem a regulação do mercado cuidar deste assunto. O tema da reforma agrária e do desenvolvimento rural está no centro da pobreza e dos problemas de fome no mundo”, disse Paolo Groppo, da Divisão de Desenvolvimento Rural da FAO.
A agenda técnica a ser debatida na Conferência será o resultado de um processo de consulta a diferentes atores que começou já há alguns meses. Há cinco documentos básicos a serem estudados, sendo um especificamente sobre a soberania alimentar, elaborado pela sociedade civil. Os governos também apresentarão informes voluntários, e a recomendação da FAO é para que esses relatórios sejam construídos em parceria com os movimentos sociais locais. A partir da próxima semana, os textos estarão disponíveis na página da Conferência – www. icarrd.org
Na opinião do ministro Rosseto, há ainda outra agenda que deve ser debatida no encontro: o mercado agrícola internacional. “Não é possível que a agenda do comércio agrícola internacional esteja restrita ao âmbito da OMC. Temos que pensar a produção de alimentos a partir de conceitos e de compromissos com o desenvolvimento, com a soberania alimentar e a garantia do direito fundamental à alimentação. Esta conferência, que se realiza pós Hong Kong, deverá dar uma contribuição forte e decisiva para que possamos assegurar aos países mais pobres as melhores condições para desenvolverem estratégias de desenvolvimento e superarem uma agenda que, nos últimos anos, baseada no neoliberalismo e em agendas unificadas, foi responsável pela destruição de política agrícolas em muitos nações e pelo empobrecimento dos agricultores”, avalia o representante do governo brasileiro.
A participação dos movimentos
Em paralelo à Conferência Internacional, também acontece em Porto Alegre, de 6 a 9 de março, o Fórum Terra, Território e Dignidade, com a participação de representantes de setores do meio rural de todos os continentes. A contrapartida da sociedade civil à reunião dos Estados pretende ampliar o intercâmbio entre as organizações e produzir contribuições à Conferência. Mas a participação dos movimentos não estará reduzida ao evento paralelo. Segundo a FAO, o que se busca neste momento é uma convergência de temas técnicos tanto dentro do encontro de governos como no espaço da sociedade civil.
“Não queremos que haja apenas um momento da Conferência para a sociedade civil apresentar suas propostas, mas queremos um verdadeiro diálogo”, disse Groppo. “Esperamos como um dos resultados da Conferência uma plataforma de diálogos para o desenvolvimento sustentável, centrada em iniciativas conjuntas. Além disso, devemos criar um observatório sobre a agricultura familiar, o desenvolvimento de sistemas e a reforma agrária”, descreve.
A Via Campesina, que reúne 200 milhões de camponeses em todo o mundo, deve usar o espaço para lançar uma Campanha Global pela Reforma Agrária, defendendo processos que venham da base e criticando outros de contra-reforma. O receio da articulação, no entanto, é que o Fórum Terra, Território e Dignidade não esteja ainda garantido, em termos estruturais e de recursos, assim como a presença dos movimentos no encontro oficial. Numa carta dirigida à diretoria da FAO e ao governo brasileiro, a Via Campesina afirma que ambos são responsáveis pela realização do encontro da sociedade civil.
“Uma reunião oficial dos governos do mundo no Brasil sem a presença dos camponeses seria um monólogo oficialista que não levaria em conta o principal ator que luta e necessita de reforma agrária”, disse Fausto Torres, da Via Campesina da Nicarágua e membro da Coordenação Latino-americana de Organizações do Campo. Nesta quinta, aqui em Caracas, o ministro do Desenvolvimento Agrário declarou que o governo brasileiro garantirá a participação da sociedade civil na Conferência mesmo que outros governos não contribuam no aporte de recursos.
Outra preocupação dos movimentos é acerca da correlação de forças interna à FAO. Segundo o representante da organização das Nações Unidas, são pouquíssimos os países que estão dispostos a retomar a agenda da reforma agrária nesta concepção.
“Graças ao Brasil e a Filipinas, o tema reapareceu. Mas não é automático que a posição tomada seja diferente da do Banco Mundial, por exemplo. Talvez seja pior. O conteúdo político do plano de ação será dos governos. Estamos criando pontes para a sociedade civil, mas há poucos apoiando o processo. Se não conseguirmos reverter este quadro, será um desperdício histórico”, acredita Paolo Groppo.
“O êxito da Conferência depende da pressão que a sociedade civil e os movimentos sociais fizerem sobre os Estados. Temos que aproveitar este momento rico da América Latina para que o processo da reforma agrária se realize e avance. Mas isso não vai acontecer se não voltarmos às ruas, fizermos ocupações, pressionarmos com ação”, conclui Alberto Ercílio Broch.
Integração sul-americana
Além de participar do lançamento do Banco Agrícola Venezuelano – criado pelo governo para financiar as atividades agropecuárias na Venezuela, que importa cerca de 80% da sua necessidade alimentar – o ministro Miguel Rosseto teve nesta quinta-feira uma reunião com o presidente Hugo Chávez para planejar uma reunião entre os dois países e o governo da Bolívia, que deve acontecer em abril, em La Paz. O encontro pós- conferência de Porto Alegre deve debater experiências de economia solidária, de desenvolvimento rural e produção agropecuária no continente.
*Bia Barbosa é membro da ONG Repórter Brasil
Da Agência Carta Maior