Cerca de 37% dos trabalhadores resgatados no País em 2005 encontravam-se em terras paraenses, segundo a OIT
ADRIANA MONTEIRO
O Pará lidera o ranking de Estados que aparecem na lista suja de trabalhadores
resgatados em regime de escravidão em todo o País, seguido do Mato Grosso, Tocantins e Maranhão. Cerca de 37% desse montante estão localizados em terras paraenses. Entre os indivíduos resgatados em 2005, o Pará é o segundo, com 1.128 pessoas, apesar de ser o que mais denuncia a prática junto aos órgãos competentes. De 1995 a 2006, o Estado representou 50% de todos os resgates ocorridos no Brasil. Mas, de acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), apenas 30% das denúncias conseguem ser atendidas pelo Grupo Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE),
em virtude da alta complexidade e da multiplicação de casos.
Os números preocupam sobretudo pela reincidência de casos. Apesar das altas multas indenizatórias trabalhistas e por danos morais aos quais os fazendeiros estão sujeitos, ainda são poucos os mecanismos de repressão para coibir essa prática de forma mais rigorosa. Com isso, o regime de escravidão se transformou num ciclo vicioso, principalmente por explorar a miséria e o desemprego dos migrantes de Estados vizinhos, como o Maranhão, de onde são originários 39,2% dos trabalhadores, e o Piauí, com 22%.
Perfil – Na maioria das vezes, o trabalhador sequer sabe onde está. O perfil dos
explorados aponta que os homens na faixa etária de 21 a 40 anos são os que mais se submetem ao trabalho forçado e, em geral, são analfabetos ou têm até dois anos de estudo. A falta de acesso ao ensino contribui para que desconheçam o sentido de cidadania e, a partir daí, todos os seus direitos básicos, como documentação e justiça. Apenas com a ação do Grupo Móvel do MTE é que os trabalhadores passam a existir, de fato. A carteira de trabalho acaba sendo o primeiro documento de identidade e muitas vezes, o único.
No Brasil, segundo dados da OIT, mais de 25 mil pessoas vivem em situação análogas à de escravidão, com destaque para as regiões Norte e Nordeste que, juntas, representam mais de 85% de todos os índices de exploração. Boa parte da estatística negativa reside na facilidade que os exploradores encontram para impor o regime de escravidão: a vulnerabilidade dos trabalhadores, as condições geográficas e a ausência de políticas públicas estaduais que reprimam a ação dos fazendeiros. O ramo de atividade econômica que mais adota o trabalho escravo é o da pecuária, que lidera com 80% dos casos. Segundo a OIT, cerca de 70% das fazendas sequer têm registro no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Carvoarias – No Pará, a atividade da carvoaria também tem chamado atenção. Para alimentar as grandes siderúrgicas, as carvoarias usam da prática do trabalho escravo para vender mais, sem despesas de pessoal. Este ano, três ações do Grupo Móvel do MTE e da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) – em Dom Elizeu, Rondon do Pará e Altamira – libertaram mais de 200 trabalhadores em fazendas no Sul e Sudeste do Estado. Os trabalhadores também receberam indenizações trabalhistas impostas pela Justiça do Trabalho.
A exposição dos nomes dos exploradores na chamada lista suja e o aumento da
cobertura jornalística em mais de 1.900% sobre o assunto nos últimos anos foram fundamentais para que a sociedade conhecesse a prática da escravidão em fazendas do interior de vários Estados. O Brasil é reconhecido mundialmente pelo esforço no combate ao trabalho forçado. No ano passado, foi lançado o Pacto Nacional contra o trabalho escravo, com parceria de vários representantes de organizações de trabalhadores, organizações não-governamentais (Ongs) e instituições públicas e privadas. Em maio, o programa fará um ano com significativa melhora nos números, mas com um vasto campo a ser trabalhado. Descobrimos que os produtos provenientes dessas fazendas estavam chegando aos grandes mercados consumidores brasileiros e internacionais. Propusemos
a essas empresas, que não sabiam da existência da cadeia produtiva do trabalho escravo como sua fornecedora, que fosse firmado um pacto nacional contra o trabalho escravo em que essas empresas se comprometem a não adquirir produtos vindos dessas fazendas , afirmou Patrícia Audi, coordenadora nacional do Projeto de Erradicação do trabalho escravo pela OIT.
Pacto – No ano passado, as grandes siderúrgicas de Carajás firmaram um pacto contra o trabalho escravo, no qual se recusam a adquirir carvão vegetal das fazendas em que se pratica o trabalho forçado. Elas criaram o Instituto Carvão Cidadão, que tem como função fiscalizar as carvoarias que fornecem a essas siderúrgicas. Já foram cancelados 125 contratos de fornecimento , declarou Patrícia. De acordo com dados da OIT, de 1995 – quando o governo federal reconheceu a existência do trabalho forçado no País – a 2005, houve um aumento no número de denúncias e no número de resgates, além de orçamento específico para o combate ao trabalho escravo no Tribunal Superior do Trabalho (TST). A Justiça do Trabalho do Pará foi pioneira em determinar ação condenatória no mundo. O juiz titular da 2ª Vara do Trabalho de Marabá acolheu ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e condenou a empresa Lima Araújo Agropecuária Ltda a pagar R$ 3 milhões por reduzir cerca de 180 pessoas a condições de escravas nas fazendas Estrela das Alagoas e Estrela de Maceió, em Piçarras, na região Sul do Pará. Pela primeira vez, o trabalho escravo deixou de ser um bom negócio. Se não existe sensibilização à questão social e às condições subumanas a que estão submetidas, que pelo menos exista algum tipo de restrição econômico-financeira. A principal causa
para a existência do trabalho escravo no Brasil e no mundo é a impunidade,
ressaltou.
Em 2005, o TRT da 8ª região julgou, por condenação ou acordo, 94 ações de
indenização por trabalho forçado. O município de Redenção totalizou 71 ações
individuais e 10 ações civis públicas. Marabá veio em segundo, com sete ações civis. O valor total da condenação por sentença foi de R$ 905.036,50, enquanto R$ 710.519,34 foram pagos mediante acordos entre empregados e empregadores.
Coordenadora aponta mapa da servidão e a crueldade com trabalhadores
Trabalho degradante mais a privação da liberdade. Essa é a equação que define o trabalho escravo, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT). O assunto, por se tratar de grave violação dos Direitos Humanos, vem sendo debatido no mundo todo como emergencial. Mais de 12,3 milhões de pessoas vivem
sob condições precárias de trabalho, privadas de liberdade e em situação degradante de vida em praticamente todos os continentes. Na África é onde a situação é mais penosa. O trabalho escravo não pode ser confundido com salário baixo, falta de assinatura em carteira e nem mesmo a condição de ilegalidade perante a Justiça do Trabalho. Quando falamos em trabalho escravo estamos nos referindo à falta de liberdade dos trabalhadores, ressaltou a coordenadora nacional do Projeto de Erradicação do trabalho escravo pela OIT, Patrícia Audi.
O mapa da servidão é cruel. Da chegada à fazenda até a possibilidade de serem
resgatados, os trabalhadores passam por todo tipo de privação. Os relatos feitos
pelos grupos móveis do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e da Delegacia
Regional do Trabalho (DRT) descrevem com detalhes as péssimas condições as quais a mão-de-obra é submetida nas fazendas. Normalmente, os trabalhadores ficam alojados em barracas de lona, localizadas em região de mata fechada, sem água potável, luz elétrica e com poucos alimentos. A difícil comunicação é estratégica, para evitar o contato com outras pessoas ou uma possível fuga. E as tentativas de fuga são observadas de perto por guardas armados, que fazem constantes ameaças. A restrição da liberdade se dá pelo isolamento geográfico em que essas fazendas se encontram, que é uma realidade do Pará e do Mato Grosso. Às vezes, essas pessoas chegam à noite e até mesmo embriagadas, por isso não conseguem saber onde estão. Muitas vezes, estão a quilômetros de distância da via de acesso mais próxima , declarou Patrícia.
Durante o processo produtivo, sobretudo na retirada e queima da madeira para
transformação em carvão vegetal, os trabalhadores atuam sem nenhum equipamento de proteção individual. O resultado são acidentes, nos quais perdem alguma parte do corpo. A jornada de trabalho é extensa. Chega a durar até 18 horas e começa cedo, às 5 horas da manhã. As instalações sanitárias também são precárias, sem condições de higiene.
Os trabalhadores já chegam às fazendas endividados, o que alimenta a servidão por dívidas. Eles já chegam devendo valores muito superiores ao salário acordado. São despesas de transporte e comida e isso se torna uma dívida impagável. Eles são muito humildes e acreditam realmente que devem e permanecem meses a até anos nessas condições , disse. Depois que são resgatados, os trabalhadores recebem por três meses o seguro-desemprego. O benefício foi concedido pelo Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador e está previsto na resolução nº 306, de novembro de 2002. Isso, de alguma forma, diminui a vulnerabilidade. Mas é necessário que medidas efetivas de prevenção sejam tomadas principalmente nos municípios já identificados como de aliciamento de mão-de-obra escrava , ressalta Patrícia.
O Pacto Nacional de Combate ao trabalho escravo promoveu uma iniciativa inédita de reinserção dos trabalhadores egressos da escravidão. Pela primeira vez no mundo, alguém se preocupou em admitir, qualificar e contratar esses trabalhadores. Isso já foi feito no Maranhão e deve ser feito no Pará , declarou. Quando se pergunta a essas pessoas se elas querem voltar aquela situação de escravidão, nenhuma delas quer. Acontece que a migração é uma coisa normal e, como elas são vulneráveis, nunca sabem se estão indo para uma empreitada que vão lhe gerar direitos mínimos e a possibilidade de renda para a sua família ou se estão indo para uma situação de escravidão. Muitas dessas pessoas são reincidentes, porque são vulneráveis e se sujeitam a correr o risco de ir para um caminho, talvez, sem volta .(A. M.)
Disputa política emperra as soluções e falta de leis permite a reincidência
Grande parte da reincidência nos casos de regime de escravidão ocorre em virtude da ausência de leis específicas que punam com rigor a prática de trabalho forçado por fazendeiros. Em 2001, o senador Ademir Andrade (PSB/PA) apresentou Projeto de Emenda Constitucional (PEC 438) que prevê a expropriação de terras (tomada pelo uso indevido) onde fosse constatada a ocorrência da prática de trabalho escravo. A proposta foi aprovada no Senado e emperrou na Câmara dos Deputados, já no segundo turno da votação. Acontece que existe uma forte resistência da bancada ruralista com relação à aprovação dessa PEC. Vários acordos políticos foram quebrados. A PEC passou pela aprovação da Comissão Especial da Câmara, foi aprovada em primeiro turno e agora só precisa da votação em segundo turno para ser aprovada. A bancada ruralista alterou o texto dessa PEC, firmou acordo dizendo que se o texto fosse alterado ela aprovaria em segundo turno, mas quebrou esse acordo. A PEC sequer foi pautada ou tem possibilidade de aprovação , declarou Patrícia Audi. Em ano eleitoral, isso é fundamental até porque nós, cidadãos, temos a obrigação de saber em quem vamos votar, completou.
Outro entrave está na discussão da competência para julgar os crimes, se federal ou estadual. Enquanto essas justiças estão discutindo de quem é a competência para julgar, os crimes estão prescrevendo e ninguém vai para a cadeia. Existe um processo que pode definir de uma vez por todas de quem é a competência que está no Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Gilmar Mendes pediu vistas há um ano e meio. Enquanto esse processo não for recolocado em pauta, haverá essa indefinição. Hoje, as formas de repressão estão nas mãos do Ministério do Trabalho, da Justiça do Trabalho e da sociedade civil. Após a divulgação da lista suja , instituída no atual governo federal e que apresenta 166 nomes de pessoas físicas e jurídicas que adotam o trabalho escravo em todo o País, várias instituições públicas e privadas fecharam o cerco financeiro a essas empresas. O Ministério da Integração não repassa mais recursos da Sudam ou Sudene ou quaisquer fundos constitucionais aos exploradores. O mesmo caminho foi tomado pelo Banco do Brasil, Banco da Amazônia e o BNDES, que restringiram os créditos a essas empresas. Em dezembro, foi sugerido pela Febraban (Federação Brasileira de Banco) que os bancos privados tomassem a mesma medida. Cada instituição tem um papel nessa ação de repressão, afirmou Patrícia. (A. M.)